Domingo, abril 15, 2018
Dois minutos - J.R. GUZZO
REVISTA VEJA - edição nº 2578
As leis são feitas, tanto quanto se saiba, para melhorar a
vida das pessoas. Que sentido poderia ter uma lei que piora a existência do
cidadão? Nenhum, e por isso mesmo é francamente um espanto a quantidade de leis
em vigor neste país que não melhoram coisa nenhuma e, ao mesmo tempo, conseguem
piorar tudo. Um dos mais notáveis exemplos práticos dessa espécie de tara, tão
presente no sistema legal e jurídico do Brasil, é o apaixonante debate atual
sobre a “segunda instância” e o “trânsito em julgado”. Quase ninguém, mesmo
gente que foi à escola, conseguiria dizer até outro dia que diabo quer dizer
isso; dá para entender as palavras “segunda” e “trânsito”, mas daí pouca gente
passa. No entanto, tanto uma como outra coisa são o centro da questão mais
decisiva da vida política do Brasil de hoje. Trata-se, muito simplesmente, de
saber quantas vezes o sujeito precisa ser condenado na Justiça para pagar pelo
crime que cometeu. Duas vezes parece de ótimo tamanho, na cabeça de qualquer
pessoa sensata e no entendimento de todos os países livres, civilizados e
bem-sucedidos do mundo. Se houve um erro na primeira sentença, dada por um
juiz só, um segundo julgamento, feito por um conjunto de magistrados, pode
corrigir a injustiça; se não corrigir é porque não houve nada de errado. Uma
criança de 10 anos é capaz de entender isso. Mas as nossas altíssimas
autoridades, aí, conseguiram transformar um clássico “não problema” num tumulto
que tem infernizado como poucos a estabilidade política do país — e enchido a
paciência de muitos, ou quase todos os habitantes do território nacional.
Os artigos, parágrafos, incisos, alíneas e sabe lá Deus
quanto entulho legal os doutores, políticos e magnatas deste país invocaram
para pôr em discussão se a Terra é redonda ou é plana mostram bem a
extraordinária dificuldade, para os que mandam no Brasil, de aceitar o
princípio pelo qual uma lei só fica de pé se fizer nexo — e só faz nexo se vem
para tornar mais segura, mais cômoda ou mais compreensível a vida do cidadão
comum. Não faz o menor nexo sustentar que o bem-estar das pessoas melhora, ou
que elas ficam mais protegidas, se for proibido colocar um criminoso na cadeia
quando ele é condenado duas vezes em seguida; é incompreensível que a punição
para um crime só deva acontecer quando o autor perder na “última instância”,
que ninguém sabe direito qual é. Eis aí o raio do “trânsito em julgado” — o
momento em que não há mais o que inventar em matéria de trapaça legal para
manter o malfeitor fora do xadrez. É algo tão raro quanto a passagem dos cometas.
O deputado Paulo Maluf começou o seu corpo a corpo com a Justiça Penal em
1970; só foi para a penitenciária 47 anos depois, em dezembro do ano passado,
já aos 86 anos de idade. O ex-governador de Minas Gerais Eduardo Azeredo está
sendo processado há onze anos e até agora não viu o lado de dentro de uma cela.
O veto à prisão “na segunda instância” é ameaça ao
brasileiro que cumpre a lei
Vamos falar sério dois minutos: alguém é capaz de achar que
os direitos civis do cidadão brasileiro estão sendo protegidos por um negócio
desses? Quem ganha com isso a não ser criminosos tamanho GGGG-plus, que têm
poder e dinheiro para pagar sua defesa durante anos a fio, e os escritórios de
advocacia que sonham com processos que lhes rendam honorários pelo resto da
vida? Não há absolutamente nenhum interesse coletivo beneficiado por esse tipo
de entendimento da lei. O que acontece é justamente o contrário: o veto à
prisão “na segunda instância” é uma ameaça ao brasileiro que cumpre a lei. Não
é um “direito”, como dizem advogados e demais sábios da ciência jurídica — o
direito, respeitado em todas as democracias, à “presunção de inocência”.
Inocência como, se o indivíduo já foi condenado duas vezes?
Teve todo o direito de se defender, sobretudo se conta com milhões. O acusador
teve de apresentar provas, e o juiz teve de considerar que as provas eram
baseadas em fatos. O que há na vida real, isso sim, é uma violação do direito
que as pessoas têm de contar com punição para os criminosos que as agrediram —
por exemplo, roubando o dinheiro que pagam em impostos, ou o patrimônio que
possuem legalmente nas empresas estatais.
Os “garantistas”, que defendem em latim essas aberrações,
garantem apenas a impunidade. Utilizam dúvidas que existem na Constituição e
que podem ser mal interpretadas — só foram colocadas ali, aliás, com o exato
propósito de ser mal interpretadas. Constroem, esses heróis da liberdade, um
monumento às leis que foram escritas para fazer mal ao Brasil e aos
brasileiros.
Artigo reproduzido do blog: avaranda.blogspot.com.br
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