SEM DIREITOS Francisco Rodrigues dos Santos, trabalhador rural de Roraima: condições degradantes em regime análogo à escravidão (Crédito: Mario Tama)
Publicado originalmente no site da revista ISTOÉ, em 11/05/18
Continuamos escravos
130 anos após a abolição da escravatura, população negra
permanece sofrendo com a desigualdade, a violência e o abandono social
Vicente Vilardaga e Giorgia Cavicchioli
Passados exatos 130 anos da sanção da Lei Áurea pela
princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, os brasileiros ainda convivem com a
escravidão ou com uma condição análoga a ela rotineiramente e a desigualdade
entre negros e brancos continua escandalosa. A lei imperial 3.353 solucionou o
grande problema da liberdade dos escravos, mas manteve os indivíduos das duas raças
profundamente desiguais e sem condições de competir, com permanente desvantagem
para os negros — empurrados para o ponto mais baixo da pirâmide social. O
Brasil foi o último país americano a abolir a escravidão — o penúltimo foi
Cuba, em 1885. E também foi o lugar que mais recebeu escravos africanos ao
longo de sua história. Calcula-se que entre 1550 e 1860 cerca de 4,8 milhões de
pessoas tenham sido trazidas contra a vontade da África para o Brasil. As
relações de poder do velho sistema se entranharam na cultura nacional e
deixaram um passivo gigantesco de injustiça e preconceito, encoberto pelo mito
da democracia racial, que até hoje não foi superado.
SOFRIMENTO Trabalho desumano em minas de carvão em Rondon do
Pará:
maioria de negros (Crédito:Mario Tama)
“A Lei Áurea foi uma lei muito breve, muito conservadora,
não veio acompanhada de nenhum projeto de inclusão social e nem foi capaz de
redimir desigualdades assentadas ou apagar hierarquias naturalizadas”, diz a
historiadora Lilia Moritz Schwarcz, organizadora, junto com Flávio dos Santos
Gomes, do “Dicionário da Escravidão e Liberdade” (Companhia das Letras),
lançado a propósito da efeméride abolicionista. “E o racismo estrutural que
experimentamos hoje no Brasil não é só herança — novas formas de racismo estão
sendo construídas e se expressam na educação, na saúde ou nos números da violência
contra os jovens.” Em muitos aspectos, a Lei Áurea condenou uma grande parte da
população a permanecer nas margens da sociedade. A condição de trabalho do
liberto continuou extremamente precária e para o negro não houve nenhum tipo de
proteção legal, trabalhista e social.
PRECARIEDADE Cortadores de cana em caminhões na Bahia:
desamparo e insegurança (Crédito:Brazil Photos)
A situação atual do mercado de trabalho é exemplar da
desigualdade entre brancos e negros e escancara um preconceito racial na
ocupação das vagas de emprego, na distribuição dos cargos e na remuneração.
Segundo os últimos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD),
os salários dos trabalhadores brancos são, em média, 80% superiores ao dos
negros. Considerando todas as ocupações, enquanto um branco tem um ganho real
de R$ 2 660, a renda do negro é de R$ 1 461 e a dos pardos, R$ 1 480. Mais
grave: a escolaridade não basta para equiparar renda de brancos e negros.
Conforme ela aumenta, maior a diferença salarial, de acordo com pesquisa da
Fundação Seade/Dieese. Entre os trabalhadores com ensino médio completo, na
região metropolitana de São Paulo, por exemplo, os negros receberam 85% do
valor ganho pelos brancos, em 2016. Segundo o relatório “A distância que nos une”,
realizado pela Oxfam, ONG dedicada ao combate da pobreza e da desigualdade no
mundo, em 2017, 67% dos negros brasileiros receberam até 1,5 salário mínimo,
enquanto menos de 45% dos brancos estão nessa faixa salarial. Mantido o ritmo
de inclusão observado no período, a equiparação da renda média de brancos e
negros acontecerá somente em 2089, duzentos anos depois da abolição.
Violência
“Além de acentuar desigualdades, o racismo também traz
consequências violentas”, diz Tauá Pires, coordenadora de programas da Oxfam.
Homens jovens e negros são as maiores vítimas de homicídios no país, segundo o
Atlas da Violência 2017 produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública: de cada 100 pessoas
assassinadas no Brasil, 71 são negras. O feminicídio, o assassinato de mulheres
por razões de gênero, atinge principalmente mulheres negras.
“Me sinto como todos os negros do mundo: injustiçado. Não
vejo a hora de esse pesadelo acabar” Luiz Henrique da Silva, empresário
(Crédito:Gabriel Reis)
Negros e negras também são vítimas frequentes de ofensas e
injúrias raciais. É o caso do empresário Luiz Henrique da Silva, 33 anos, que,
em abril de 2017, foi com a família fazer compras em um mercado de Pirituba e
foi violentamente ofendido. Ele vestia um agasalho da torcida Gaviões da Fiel e
precisava comprar ingredientes para fazer cachorro quente na casa de amigos.
Porém, os planos dele mudaram quando, na fila do caixa, ele foi xingado por uma
mulher branca que estava na frente dele por ter supostamente batido o carrinho
na perna dela. Ele pediu desculpas, mas isso não impediu que a mulher se
virasse para a caixa do mercado e falasse: “Além de corintiano, é preto.”
Depois de digitar a senha, ela teria, então, dito para ele: “Preto, macaco,
filho da p…, ladrão.” A polícia foi chamada e Luiz registrou um boletim de
ocorrência contra a mulher por injúria racial. Mais de um ano depois, o
empresário afirma que o caso ainda o abala: “Me sinto como todos os negros do
mundo: injustiçado. Não vejo a hora desse pesadelo acabar”, afirma.
CULTURA ENRAIZADA Cenas da escravidão reforçam a ideia de
inferioridade (Crédito:Divulgação)
Estima-se que 160 mil pessoas no Brasil sofram, atualmente,
com condições de trabalho análogas à escravidão. Negros e pardos, de acordo com
dados do Ministério Público do Trabalho, representam mais de 64% das cerca de
43 mil pessoas que foram resgatadas dessa situação degradante entre 2003 e
2017. Segundo a procuradora da República Ana Carolina Roman, é possível
identificar o trabalho escravo contemporâneo quando o trabalhador tem jornadas
de trabalho exaustivas, servidão por dívidas, retenção de documentos, confusão
do local de moradia com o de trabalho, ameaças e muitas outras situações que
tiram a dignidade do ser humano.
“Ainda há segmentos da sociedade que não consideram a
população negra como humana. É por isso que a submete a condições de trabalho
análogas à escravidão”, afirma Juarez Xavier, professor da Universidade
Estadual Paulista. (Unesp), que vê no País uma situação de “apartheid social”.
Essa visão é compartilhada por Leci Brandão (PC do B), segunda mulher negra na
história a se eleger deputada estadual em São Paulo. “A princesa assinou a lei
no dia 13 e no dia 14 os negros estavam com uma mão na frente e a outra atrás.
Vai fazer o que sem condição nenhuma de política pública para que estivesse
realmente liberta?”
Divulgação
A abolição da escravidão trouxe liberdade, mas ignorou a
igualdade: a Lei Áurea não veio acompanhada de nenhum projeto de inclusão
social
A implantação do sistema de cotas foi um ponto importante na
luta pelos direitos da comunidade negra. A Escola Politécnica da Universidade
de São Paulo (USP), por exemplo, formou apenas sete mulheres negras em mais de
120 anos de existência. Larissa Mendes, que estuda na faculdade, faz parte da
Poli Negra, grupo que trouxe a discussão sobre cotas para a instituição e mostrou
por meio de um plebiscito que 70% dos alunos as apoiavam em 2017. Por conta da
iniciativa, no mesmo ano, o Conselho Universitário da USP aprovou cotas sociais
e raciais. Segundo Larissa, a luta por cotas é uma forma de reparação
histórica. “São medidas importantes para a gente conseguir se preservar com
aquela chama de esperança que pelo menos através do conhecimento a gente pode
chegar a alguma coisa”, afirma. Para a estudante, essa é uma solução
temporária. “[As cotas] não têm como objetivo ser para sempre, mas é para durar
enquanto a gente tiver uma diferença entre negros e brancos nas universidades e
em todos os outros espaços da sociedade”, diz.
Texto e imagens reproduzidos do site: istoe.com.br
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