Protesto a favor dos caminhoneiros em São Paulo, semana
passada.
Foto: Fernando Bizerra Jr. EFE.
Publicado originalmente no site Brasil El País, em 03/06/2018
Decifra-me ou te devoro
Não basta defender a democracia e as instituições, é preciso
torna-las facilitadoras da obtenção das demandas do povo
Por Fernando Henrique Cardoso
A semana que acaba hoje foi plena de tensão demonstrando a
quem não percebera antes a profundidade das dissensões que vêm de há muito
tempo. As incongruências da política econômica dos governos de Lula e Dilma, em
sua fase final, já haviam levado a economia à paralisação e o sistema político
a deixar de processar decisões. Daí o impeachment do último governo, ainda que
baseado em arranhões de normas constitucionais.
Todo impeachment é traumático. Fui ministro de um governo
que resultou de um impeachment, o do presidente Itamar Franco. Este, com
sabedoria, percebeu logo que precisaria de um ministério representativo do
conjunto das forças políticas. Como o PT, que apoiara o impeachment do
presidente Collor, se recusava a assumir responsabilidades de governo (com olho
eleitoral), Itamar conseguiu a aceitação de uma pasta por Luiza Erundina, então
no PT. Mesmo eu, eleito presidente por maioria absoluta no primeiro turno sem
precisar buscar o apoio do PT, tive como um de meus ministros um ex-secretário
geral do PT.
De lá para cá os tempos mudaram. A possibilidade de algum
tipo de convivência democrática, facilitada pela estabilização econômica graças
ao Plano Real, que tornou a população menos anti-governo quando viu em marcha
uma política econômica que beneficiaria a todos, foi substituída por um estilo
de política baseado no “nós”, os supostamente bons, e “eles”, os maus. Isso
somado ao descalabro das contas públicas herdado pelo governo atual, mais o
desemprego facilitado pela desordem financeira governamental, levou a uma
exacerbação das demandas e à desmoralização dos partidos. A Lava Jato, ao
desnudar as bases apodrecidas do financiamento partidário pelo uso da máquina
estatal em conivência com empresas para extrair dinheiro público em obras sobre
faturadas (além do enriquecimento pessoal), desconectou a sociedade das
instituições políticas e desnudou a degenerescência em que o país vivia.
A dita “greve” dos caminhoneiros veio servir uma vez mais
para ignição de algo que estava já com gasolina derramada: produziu um contágio
com a sociedade, que sem saber bem das causas e da razoabilidade ou não do
protesto, aderiu, caladamente, à paralisação ocorrida. Só quando seus efeitos
no abastecimento de combustíveis e de bens essenciais ao consumo e mesmo à
vida, no caso dos hospitais, tornaram-se patentes, houve a aceitação, também
tácita, da necessidade de uma ação mais enérgica para retomar a normalidade.
Mas que ninguém se engane: é uma normalidade aparente. As
causas da insatisfação continuam, tanto as econômicas como as políticas, que
levam na melhor das hipóteses à abstenção eleitoral e ao repúdio de “tudo que
aí está”. Portanto, o governo e as elites políticas, de esquerda, do centro ou
da direita, que se cuidem, a crise é profunda. Assim como o governo Itamar
buscou sinais de coesão política e deu resposta aos desafios econômicos do
período, urge agora algo semelhante.
Dificilmente o governo atual, dado sua origem e o
encrespamento político havido, conseguirá pouco mais do que colocar
esparadrapos nas feridas. Nada de significativo será alcançado sem que uma
liderança embasada no voto e crente na democracia seja capaz de dar resposta
aos atuais desafios econômicos e morais. Não há milagres, o sistema
democrático-representativo não se baseia na “união política”, senão que na
divergência dirimida pelas urnas. Só sairemos da enrascada se a nova liderança
for capaz de apelar para o que possa unir a nação: finanças públicas saudáveis
e políticas adequadas, taxas razoáveis de crescimento que gerem emprego,
confiança e decência na vida pública.
É por isso que há algum tempo venho pregando a união entre
os setores progressistas (que entendam o mundo e a sociedade contemporâneos),
que tenham uma inclinação popular (que saibam que além do emprego é preciso
reduzir as desigualdades), que se deem conta que o mundo não mais funciona
top/down, mas que “os de baixo” são parte do conjunto que forma a nação e que
ao invés de se proporem a “salvar a pátria” devem conduzi-la no rumo que
atenda, democraticamente, com liberdade, os interesses do povo e do país.
Não se trata de formar uma aliança eleitoral apenas, e muito
menos de fortalecer o dito “centrão”, um conjunto de siglas que mais querem o
poder para se assenhorarem de vantagens, do que se unir por um programa para o
país. Nas democracias é natural que os partidos divirjam quando as eleições
majoritárias se dão em dois turnos, quando os “blocos sociais e políticos”
podem ter mais de uma expressão partidária. Mas é preciso criar um clima que
permita convergência. E, uma vez no caminho e no exercício do poder, quem
represente este “bloco” precisará ter a sensibilidade necessária para unir os
que dele se aproximam e afastar o risco maior: o do populismo, principalmente
quando já vem abertamente revestido de um formato autoritário.
No quadro atual, entre o desemprego e a violência cada vez
mais assustadora do crime organizado, a perda de confiança nas instituições é
um incentivo ao autoritarismo. O bloco proposto deve se opor abertamente a
isso. Não basta defender a democracia e as instituições, é preciso torna-las
facilitadoras da obtenção das demandas do povo, saber governar, não ser
leniente com a corrupção e entender que sem as novas tecnologias não há como
atender às demandas populares crescentes. E, principalmente, criar um clima de
confiança que permita investimento e difundir a noção de que num mundo
globalizado de pouco vale dar as costas a ele.
Tudo isso requer liderança e “fulanização”. Quem, sem ser
caudilho, será capaz de iluminar um caminho comum para os brasileiros?
“Decifra-me ou te devoro”, como nos mitos antigos.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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