sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Na crise do jornalismo, a ética é primeira vítima e a primeira saída


Publicado originalmente no site JLPolítica, em 16 de agosto de 2018

Opinião - Na crise do jornalismo, a ética é primeira vítima e a primeira saída

Por José Cristian Góes *

Ao escolher a ética no jornalismo para escrever, certamente desperto o passar instantâneo de olhos pelo título e o imediato pular dessa página em sinal de rejeição ao tema. De alguns, mesmo sem ler o texto, ganharei xingamentos de praxe. De outros, a repulsa pela chatice e a perda de tempo. De alguns poucos, a paciência solidária em algum frio “curtir”.

Isso é reflexo da própria condição da ruína espiralada do jornalismo, questão que abordei em um texto anterior. Nele, defendi que a crise não é apenas do modelo de negócio em razão das novas tecnologias, mas da própria experiência social do jornalismo, das tensões inerentes das relações humanas, para além do moderno e do pós-moderno.

Aqui continuo nessa trilha, mas olhando a ética, que atravessa todo esse processo, que aparece entre as causas, as consequências e como um dos meios de destacar os dilemas identitários do jornalismo. No título, tomei emprestada a ideia de Ésquilo, um dramaturgo grego que teria vivido entre 525 a.C. até 456 a.C., e dito: “Na guerra, a verdade é a primeira vítima”.

Mobilizo esse pensamento em um jogo de palavras para pensar o jornalismo, objeto de uma crise permanente, uma tensão sem fim, onde a ética é o alvo e uma primeira vítima de atores privilegiados que se propõem à tarefa do contar o cotidiano. No seria a verdade a primeira vítima?

A verdade não se sujeita ao juízo de vítima ou de algoz, do bem ou do mal, do certo ou do errado. A verdade é a verdade. Tudo a mais ou a menos é causa e consequência dela. Já a ética é um movimento da consciência para a verdade, um caminho difícil, uma direção incerta, um deslocamento à força.

No jornalismo - mas não somente nele -, a verdade sempre estará em estado precário, em suspensão, no horizonte possível, resultado de intrincadas projeções nas relações sociais, de negociações sutis e de jogos de força para revelar e/ou ocultar. Entretanto, seja claro ou escuro, a verdade é uma presença incontestável.

Assim, a verdade não nasce e não morre no jornalismo, não está pressa nele, entretanto é a condição para sua existência. Não há jornalismo sem verdade. Essa impossibilidade é tão nítida que não é rara a utilização da mentira travestida de verdade, apenas como artefato retórico.

A verdade irrompe a experiência social em meio a uma disputa desigual com a dissimulação. Entretanto, ao varar o jornalismo, a verdade pode desestabilizar a realidade construída, denunciando o próprio jornalismo proposto, deixando-o nu.

Por isso, a verdade não se subordina ao jornalismo. Ao contrário, é ele que se torna vítima em um encontro inevitável. Manipulações, omissões, distorções, invenções até podem perdurar por um período, mas as brechas, fissuras, os rastros da batalha entre verdade e mentira no jornalismo estarão sempre aí, como um convite ao desvelamento. Não estamos tratando da verdade em si, mas de um trajeto sob tensão no ambiente da experiência social, um caminho incontornável de embates. No jornalismo, a ética é o método para a verdade.

É nesse ponto que retomamos a frase de Ésquilo para pensar no colapso do jornalismo, mas por esse prisma. Com a crise da experiência social, isto é, com a perda da referência dos meios como um lugar do verdadeiro, a ética é a primeira vítima da ruína desse jornalismo, impedindo - pelo menos temporariamente - a emergência da verdade.

O aniquilamento da ética é um sinal de que o engodo tem assumido formas mais definidas nas superfícies do jornalismo, derrotando as próprias organizações, os jornalistas e a sociedade. As fake news são os sintomas mais na moda, mais visíveis do desprezo do jornalismo pela ética, de uma militante desistência e apagamento ao longo dos anos.

Essas fraudes em forma de notícias são resultado das fraudes éticas processuais, e não são estranhas ao jornalismo. As fake news emergem das entranhas de uma experiência torta com os acontecimentos, onde a ética é a primeira vítima. A chacina ética deliberada ou através de sua transformação em uma retórica vazia, distante e chata é uma ação política que resultou na incerteza dos fatos e na disseminação de “verdades alternativas” e da “pós-verdade”, ambos subterfúgios da mentira.

Considerar que a ética é uma teoria acadêmica, uma imaginação filosófica, algo longe da realidade, um ideal inatingível, uma perda de tempo, uma limitação à liberdade, um aparato burguês, ou seja, buscar inúmeras justificativas para a sua negação e remoção é reconhecer a derrota da possibilidade da verdade, antes mesmo de vislumbrar um ambiente de necessários enfrentamentos contra a mentira.

Disse Gabriel García Márquez que a ética deve acompanhar sempre o jornalismo como o zumbido acompanha o besouro. Com a crise do jornalismo, esse zumbido é o primeiro som que não queremos escutar, fazemos de conta que não existe. Todavia, assim como a perseguição da verdade é uma imposição vital para o jornalismo, o percurso ético também não é facultativo. Jornalistas e organizações, independentemente de sua natureza, não têm o direito de escolher se observam ou não os princípios éticos, mas estão obrigados a eles.

Lembremos que o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (2007), um farol a ajudar nesse movimento, ressalta-nos que a divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação, uma obrigação social que não pode ser impedida, distorcida, manipulada por nenhum tipo de interesse que não seja o público.

Nesse mesmo lugar está o jornalista e o seu compromisso inquebrantável com a verdade no relato dos acontecimentos. Mais uma vez: não é uma opção. E isso exige a mais precisa e cuidadosa apuração e correta divulgação, um processo que se obriga à transparência, como um imperativo irrenunciável.

Parte da crise do jornalismo passa exatamente pela não revelação dos procedimentos diante dos fatos, pela ocultação dos vínculos, a dissimulação dos interesses, o uso da mentira ornamentada de verdade. Os princípios éticos precisam ganhar luz como procedimento cotidiano, um jogo jogado às claras, sem artimanhas, revelando-se como um método límpido para a verdade. É isso que compromete radicalmente o jornalismo como uma experiência narrativa social libertadora, e não escravizadora.

A velha e requentada retórica de política editorial, de carta de compromisso, que jura considerar os princípios éticos do jornalismo, já não se sustenta por si só. Não bastar dizer, mostra-se e parecer ético. Precisa ser. Com a complexidade das relações sociais e as mobilizações tecnológicas, as fissuras, os rastros nas experiências com os acontecimentos ficam mais nítidos, prontos a emergir neles as faíscas de verdade nas superfícies de uma realidade fingida.

Todavia, se a ética é a primeira vítima da crise do jornalismo, ela também é uma primeira saída. Não no sentido de solução ou superação, de estabilização e atingimento de um estágio de ideal perfeição, mas para colocar em jogo as contradições do jornalismo proposto, acendendo o método para a verdade. É urgente radicalizar a ética em todo processo de formação dos jornalistas, do primeiro ao último período e, depois, produzir uma série de iniciativas de luta contra esse esquecimento.

O jornalismo não é uma experiência social narrativa reduzida em organizações e profissionais. Muito longe disso, ela somente tem sentido na coletividade como ação aberta e participativa. Por isso, a sociedade não é agente passivo, receptor, mas também construtor do jornalismo.

A ética jornalística precisa ultrapassar os limites institucionais e ingressar como elemento estruturante no estágio das críticas sociais que são feitas em círculos acadêmicos, sindicais, populares. Por exemplo, discutir as fake news à luz das mesmas empresas jornalísticas que contribuíram para que elas ganhassem vida não altera o placar. O remédio, desde o antídoto, para as fake news é, antes da verdade, a rigorosa observância ética.

Se a verdade está comprometida na crise do jornalismo, isso ocorre porque o percurso ético já foi destruído. Contudo, para reverter esse quadro e a verdade sinalizar sua presença, a saída é reconstruir a estrada da ética, tomando-a como método.

[*] É jornalista, mestre e doutor em Comunicação, membro da Comissão Nacional de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas e membro do Coletivo Carolina Maria de Jesus de Pesquisa em Jornalismo e Cultura.

Texto e imagem reproduzidos do site: jlpolitica.com.br

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