Publicado originalmente no site JLPolítica, em 16 de agosto de 2018
Opinião - Na crise do jornalismo, a ética é primeira vítima
e a primeira saída
Por José Cristian Góes *
Ao escolher a ética no jornalismo para escrever, certamente
desperto o passar instantâneo de olhos pelo título e o imediato pular dessa
página em sinal de rejeição ao tema. De alguns, mesmo sem ler o texto, ganharei
xingamentos de praxe. De outros, a repulsa pela chatice e a perda de tempo. De
alguns poucos, a paciência solidária em algum frio “curtir”.
Isso é reflexo da própria condição da ruína espiralada do
jornalismo, questão que abordei em um texto anterior. Nele, defendi que a crise
não é apenas do modelo de negócio em razão das novas tecnologias, mas da
própria experiência social do jornalismo, das tensões inerentes das relações
humanas, para além do moderno e do pós-moderno.
Aqui continuo nessa trilha, mas olhando a ética, que
atravessa todo esse processo, que aparece entre as causas, as consequências e
como um dos meios de destacar os dilemas identitários do jornalismo. No título,
tomei emprestada a ideia de Ésquilo, um dramaturgo grego que teria vivido entre
525 a.C. até 456 a.C., e dito: “Na guerra, a verdade é a primeira vítima”.
Mobilizo esse pensamento em um jogo de palavras para pensar
o jornalismo, objeto de uma crise permanente, uma tensão sem fim, onde a ética
é o alvo e uma primeira vítima de atores privilegiados que se propõem à tarefa
do contar o cotidiano. No seria a verdade a primeira vítima?
A verdade não se sujeita ao juízo de vítima ou de algoz, do
bem ou do mal, do certo ou do errado. A verdade é a verdade. Tudo a mais ou a
menos é causa e consequência dela. Já a ética é um movimento da consciência
para a verdade, um caminho difícil, uma direção incerta, um deslocamento à
força.
No jornalismo - mas não somente nele -, a verdade sempre
estará em estado precário, em suspensão, no horizonte possível, resultado de
intrincadas projeções nas relações sociais, de negociações sutis e de jogos de
força para revelar e/ou ocultar. Entretanto, seja claro ou escuro, a verdade é
uma presença incontestável.
Assim, a verdade não nasce e não morre no jornalismo, não
está pressa nele, entretanto é a condição para sua existência. Não há
jornalismo sem verdade. Essa impossibilidade é tão nítida que não é rara a
utilização da mentira travestida de verdade, apenas como artefato retórico.
A verdade irrompe a experiência social em meio a uma disputa
desigual com a dissimulação. Entretanto, ao varar o jornalismo, a verdade pode
desestabilizar a realidade construída, denunciando o próprio jornalismo
proposto, deixando-o nu.
Por isso, a verdade não se subordina ao jornalismo. Ao
contrário, é ele que se torna vítima em um encontro inevitável. Manipulações,
omissões, distorções, invenções até podem perdurar por um período, mas as
brechas, fissuras, os rastros da batalha entre verdade e mentira no jornalismo
estarão sempre aí, como um convite ao desvelamento. Não estamos tratando da
verdade em si, mas de um trajeto sob tensão no ambiente da experiência social,
um caminho incontornável de embates. No jornalismo, a ética é o método para a
verdade.
É nesse ponto que retomamos a frase de Ésquilo para pensar
no colapso do jornalismo, mas por esse prisma. Com a crise da experiência
social, isto é, com a perda da referência dos meios como um lugar do
verdadeiro, a ética é a primeira vítima da ruína desse jornalismo, impedindo -
pelo menos temporariamente - a emergência da verdade.
O aniquilamento da ética é um sinal de que o engodo tem
assumido formas mais definidas nas superfícies do jornalismo, derrotando as
próprias organizações, os jornalistas e a sociedade. As fake news são os
sintomas mais na moda, mais visíveis do desprezo do jornalismo pela ética, de
uma militante desistência e apagamento ao longo dos anos.
Essas fraudes em forma de notícias são resultado das fraudes
éticas processuais, e não são estranhas ao jornalismo. As fake news emergem das
entranhas de uma experiência torta com os acontecimentos, onde a ética é a
primeira vítima. A chacina ética deliberada ou através de sua transformação em
uma retórica vazia, distante e chata é uma ação política que resultou na
incerteza dos fatos e na disseminação de “verdades alternativas” e da
“pós-verdade”, ambos subterfúgios da mentira.
Considerar que a ética é uma teoria acadêmica, uma
imaginação filosófica, algo longe da realidade, um ideal inatingível, uma perda
de tempo, uma limitação à liberdade, um aparato burguês, ou seja, buscar
inúmeras justificativas para a sua negação e remoção é reconhecer a derrota da
possibilidade da verdade, antes mesmo de vislumbrar um ambiente de necessários
enfrentamentos contra a mentira.
Disse Gabriel García Márquez que a ética deve acompanhar
sempre o jornalismo como o zumbido acompanha o besouro. Com a crise do
jornalismo, esse zumbido é o primeiro som que não queremos escutar, fazemos de
conta que não existe. Todavia, assim como a perseguição da verdade é uma
imposição vital para o jornalismo, o percurso ético também não é facultativo.
Jornalistas e organizações, independentemente de sua natureza, não têm o
direito de escolher se observam ou não os princípios éticos, mas estão obrigados
a eles.
Lembremos que o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros
(2007), um farol a ajudar nesse movimento, ressalta-nos que a divulgação da
informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação, uma obrigação
social que não pode ser impedida, distorcida, manipulada por nenhum tipo de
interesse que não seja o público.
Nesse mesmo lugar está o jornalista e o seu compromisso
inquebrantável com a verdade no relato dos acontecimentos. Mais uma vez: não é
uma opção. E isso exige a mais precisa e cuidadosa apuração e correta
divulgação, um processo que se obriga à transparência, como um imperativo
irrenunciável.
Parte da crise do jornalismo passa exatamente pela não
revelação dos procedimentos diante dos fatos, pela ocultação dos vínculos, a
dissimulação dos interesses, o uso da mentira ornamentada de verdade. Os
princípios éticos precisam ganhar luz como procedimento cotidiano, um jogo
jogado às claras, sem artimanhas, revelando-se como um método límpido para a
verdade. É isso que compromete radicalmente o jornalismo como uma experiência
narrativa social libertadora, e não escravizadora.
A velha e requentada retórica de política editorial, de
carta de compromisso, que jura considerar os princípios éticos do jornalismo,
já não se sustenta por si só. Não bastar dizer, mostra-se e parecer ético.
Precisa ser. Com a complexidade das relações sociais e as mobilizações
tecnológicas, as fissuras, os rastros nas experiências com os acontecimentos
ficam mais nítidos, prontos a emergir neles as faíscas de verdade nas
superfícies de uma realidade fingida.
Todavia, se a ética é a primeira vítima da crise do
jornalismo, ela também é uma primeira saída. Não no sentido de solução ou
superação, de estabilização e atingimento de um estágio de ideal perfeição, mas
para colocar em jogo as contradições do jornalismo proposto, acendendo o método
para a verdade. É urgente radicalizar a ética em todo processo de formação dos
jornalistas, do primeiro ao último período e, depois, produzir uma série de
iniciativas de luta contra esse esquecimento.
O jornalismo não é uma experiência social narrativa reduzida
em organizações e profissionais. Muito longe disso, ela somente tem sentido na
coletividade como ação aberta e participativa. Por isso, a sociedade não é
agente passivo, receptor, mas também construtor do jornalismo.
A ética jornalística precisa ultrapassar os limites
institucionais e ingressar como elemento estruturante no estágio das críticas
sociais que são feitas em círculos acadêmicos, sindicais, populares. Por
exemplo, discutir as fake news à luz das mesmas empresas jornalísticas que
contribuíram para que elas ganhassem vida não altera o placar. O remédio, desde
o antídoto, para as fake news é, antes da verdade, a rigorosa observância
ética.
Se a verdade está comprometida na crise do jornalismo, isso
ocorre porque o percurso ético já foi destruído. Contudo, para reverter esse
quadro e a verdade sinalizar sua presença, a saída é reconstruir a estrada da
ética, tomando-a como método.
[*] É jornalista, mestre e doutor em Comunicação, membro da
Comissão Nacional de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas e membro do
Coletivo Carolina Maria de Jesus de Pesquisa em Jornalismo e Cultura.
Texto e imagem reproduzidos do site: jlpolitica.com.br
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