Publicado originalmente no site MSN, em 15 de janeiro de 2019
Em Paris, FHC diz que é oposição ao governo Bolsonaro
Por Paloma Varón
Presidente do Brasil entre 1995 e 2002, Fernando Henrique
Cardoso, fundador e presidente honorário do PSDB, está em Paris, onde
participou do diálogo com o sociólogo e seu ex-professor, Alain Touraine. O
ex-presidente concedeu entrevista exclusiva à RFI logo antes de entrar na sala,
lotada, para debater com o colega, com quem mantém um diálogo que já dura cinco
décadas.
No debate intitulado “Ordem contra a democracia?”,
organizado pelo Colégio de Estudos Mundiais, da Fundação Casa das Ciências do
Homem (FMSH, na sigla em francês) e que teve lugar na Casa da América Latina,
em Paris, os dois sociólogos discutiram a crise dos sistemas democráticos
ocidentais. Dando continuidade a este ciclo de debates, a Fundação organiza, no
dia 31 de janeiro, também na capital francesa, uma conferência intitulada
“Brasil: as raízes da vitória da extrema direita”.
Na entrevista para a RFI, FHC, como é conhecido no Brasil,
explica por que, mesmo não tendo votado no presidente Jair Bolsonaro e sendo
“oposição”, não apoiou Haddad em outubro de 2018. Fala também da crise da
democracia brasileira, do fim de um ciclo iniciado com a Constituição de 1988 e
de suas expectativas quanto ao novo governo.
No final do evento, membros do coletivo Alerta
França-Brasil, criado em Paris em 2016 por ocasião do processo de impeachment
da presidente Dilma Rousseff, abriram uma faixa em frente à mesa onde aconteceu
o debate e chamaram o ex-presidente de “golpista”. Perguntado se tinha se
incomodado com o protesto, Cardoso disse que não, pois “estava acostumado”.
RFI - O que aconteceu com o Brasil?
FHC - Uma transformação muito grande, porque o sistema
político tal como ele foi montado por nós mesmos com a Constituição de 1988
chegou ao fim de um ciclo. Houve uma desmoralização da vida política, houve
também um processo de corrupção que corroeu bastante o poder no Brasil e um
desencantamento do povo. E o povo reagiu elegendo um candidato que era pouco
conhecido, mas que aparecia como se fosse uma ruptura com tudo o que tinha sido
feito anteriormente. Não acho que isso signifique o fim da democracia – na
França muitas pessoas acreditam que foi –, é mais complexo que isso, é um ciclo
que chega ao fim. É preciso refazer o sistema político, recriar confiança nas
pessoas. Quem vai ser capaz de fazer isso é a questão.
RFI - Mas se não é o fim da democracia, como alguns pregam,
é o sinal de uma crise da democracia?
FHC - Bom, as democracias estão em crise em geral. Onde há
democracia representativa, mesmo aqui na França, penso que há um certo
desencontro entre a vontade das pessoas e a representação delas na vida
política. Então neste sentido sim, porque você tem hoje novas formas de
comunicação que são fundamentais, que conectam as pessoas com muito mais
velocidade, independentemente das instituições sociais e tudo o mais. Então,
neste sentido, é uma transformação. Se a gente chamar de crise, é uma crise. No
nosso caso, a gente tem um problema mais sério, que é a desmoralização. Não só
uma crise de desajuste das regras democráticas na vida social, mas também de
corrupção no próprio poder, que ficou visível, gerando repulsa da população. Há
risco para a democracia? Sempre há risco para a democracia. Eu acho que era o
Sérgio Buarque de Holanda que dizia que a democracia é uma plantinha tênue, que
tem que regar todo dia, tem que molhar para poder vicejar, para florescer.
Então eu não vou dizer que não haja sempre o perigo de uma tentativa de
autoritarismo. Eu já passei por momentos bem difíceis no Brasil e sei como é
isso, mas por enquanto temos bastante liberdade na imprensa, na movimentação
social. Vamos ver como o governo vai se posicionar. Eu, pessoalmente, tenho
discrepâncias grandes com a visão de alguns setores do governo, mas isso faz
parte do jogo, às vezes você ganha e às vezes você perde. Quando as pessoas que
ganham querem evitar que haja a mudança de governo, que haja eleições, que haja
liberdade de imprensa, aí complica. Aí você tem uma crise mais profunda. Nós
não chegamos a este ponto, ao meu ver.
RFI - Em uma entrevista recente, o senhor falou que, se este
governo for de extrema direita, seria oposição. Ainda existe esta dúvida se é
ou não um governo de extrema direita?
FHC- Não, não tenho dúvidas. Eu seria oposição de qualquer
maneira, eu não votei nele. E eu não votei nesse porque tinha um outro
candidato [em quem votar], de um outro partido, e também porque eu não concordo
com as ideias que ele expressou durante a campanha. Agora isso não me leva a
dizer que o governo vá ser um governo que quebre as regras democráticas, isso é
outra coisa. Eu discordo da orientação política e acho que o que eu tentei
dizer foi o seguinte: na eleição, não houve uma votação de escolha entre
esquerda e direita, entre democracia e ditadura. Isso não estava em jogo. O que
estava em jogo era esta irritação da população com a corrupção e pela
existência de uma violência espraiada no país. Eles queriam ordem. Foi mais em
função de simbolizar a ordem e não estar vinculado a processos corruptivos que
levou Bolsonaro à eleição. O que não quer dizer que o governo não tenha dentro
dele elementos de direita. Tem.
RFI – E de extrema direita?
FHC – De extrema direita. Com visão bastante reacionária, em
alguns setores. Agora, isso vai prevalecer? Aí depende, depende do jogo da
sociedade, depende da resistência do Parlamento, da imprensa, não é tão simples
assim. As pessoas quando ganham, não fazem tudo o que querem. Eu fui presidente
eu não fiz tudo o que eu queria. Não se consegue, a sociedade existe. Então eu
acho que a oposição precisa sempre existir. Na democracia, é necessário que
exista oposição. Agora oposição, ao meu ver, o que não pode é ser destrutiva,
no sentido de dizer que tudo o que vai ser feito pelo governo é errado porque
vem do governo. Eu não sei, o que fizer errado eu sou contra. O que não tiver
errado, por que eu vou ficar contra? Eu digo errado no sentido do bem-estar do
povo, do crescimento da economia, da manutenção das regras democráticas. Se
houver e quando houver atentado quanto a estas questões, eu acho que quem está
na condição deve protestar, deve reagir.
RFI – O senhor acabou de dizer que não votou em Bolsonaro.
Por que não declarou voto ou apoiou a Haddad, num momento tão decisivo da
História do Brasil?
FHC – Isso é outra coisa, porque eu nunca estive de acordo
também com as posições do PT, que levaram à situação, a este descalabro em que
nós estamos. Eu me dou com o Haddad, pessoalmente, e não tenho nada contra ele,
pelo contrário. Agora, ele botou uma máscara de Lula. Bom, o Lula fez coisas
positivas, sem dúvida, mas ao mesmo tempo é responsável pelas transformações
negativas ocorridas na vida política brasileira. Então há momentos em que a
gente tem que ter noção de que “pô, eu não tô nem cá, nem lá”, não é a minha
escolha, eu não sou obrigado a optar. Se houvesse o risco de quebra da
democracia, aí sim. Depende da avaliação. Eu avaliei que não, que nós temos
capacidade de resistência. Não vi nestes termos. Eu sei que muitas pessoas do
PT dizem: “É o fascismo”. Mas eles não conhecem a História. Não tem fascismo,
assim como não tem comunismo. Os dois lados têm esta visão um pouco antiquada.
Então eu não sou obrigado a fazer uma escolha, eu não estou escolhendo entre a
liberdade e a ditadura, entre o fascismo... Bom, também entre o fascismo e o
comunismo fica difícil fazer uma escolha.
RFI – Esta questão se deve ao fato de que aqui na França
eles estão acostumados a ver os partidos tradicionais fazerem uma frente
republicana contra a extrema direita cada vez que ela chega ao segundo turno de
uma eleição. E, poucos dias antes do segundo turno no Brasil, eu fui à
Assembleia Nacional francesa e falei com deputados de diversos partidos e
tendências que não entendiam por que não houve isso no Brasil.
FHC – Eu sei, eu conheço bem a vida francesa. Mas não houve
também nenhum esforço, o PT nunca se mostrou aberto neste sentido, então é
difícil encontrar razões [para apoiar]. Fizeram tantas coisas erradas, será que
o meu voto vai fortalecer estas coisas erradas? Mas também não vou votar
naquele em quem eu não acredito. Eu não vi como uma situação de que o novo
governo é uma ameaça à democracia. Neste caso, teria de se fazer uma frente
democrática. Mas não foi posto assim lá. Foi posto depois ou na hora do
desespero da campanha final. Mas não é o que estava em jogo, eram outras
questões que estavam em jogo. Talvez eu esteja equivocado, vamos ver daqui a
pouco. Se eu estiver é ruim, porque aí vamos ter de lutar pela liberdade. Eu já
lutei outras vezes, eu não teria nenhuma dificuldade, ainda mais agora, a esta
altura da vida, eu digo o que eu penso. Eu não achei que valesse a pena
comprometer minha posição de pensamento por uma candidatura que se dizia progressista,
mas que tem em si as marcas do desastre que houve no Brasil: a estagnação da
economia, pauperização, não intencionada, mas como consequência de muitos
malfeitos e muita corrupção. A corrupção não era pessoal só, mas das
instituições, o que é mais grave.
RFI - Esta corrupção das instituições já não existia antes?
Não é um caso crônico do Brasil?
FHC - Não, aí é que está a diferença. Você pode dizer que
sempre houve corrupção, sempre haverá, aí é outra coisa. Não é isso não: é a
organização da corrupção como base do poder. É outra coisa, muito mais grave.
Não é corrupção de A, de B ou de C que é má-conduta pessoal, que está errado,
mas além disso você tem aqui a corrupção de um sistema que passava pela
utilização de empresas públicas para financiar empresas privadas que
financiavam partidos de maneira sistemática. Isso é algo muito contra a democracia,
contra a liberdade. E eu não posso escolher este lado contra o outro.
RFI - Qual a sua opinião em relação à Operação Lava Jato, o
senhor a apoiou?
FHC – Eu sempre apoiei, mesmo se há exageros. Vou dar um
exemplo: um governador do meu partido, do estado de Minas Gerais, foi condenado
a 21 anos. O que ele fez? Ele eu não sei se fez, mas algumas pessoas que
trabalhavam com ele fizeram um contrato com o governo, que na verdade era para
usar dinheiro para a campanha dele. Foi condenado a 21 anos, é um exagero. Como
é que você resolve isso? Apelando. Porque a Justiça funciona. Você não pode
dizer que há uma perseguição política no Brasil. Há muita gente na política que
está sendo condenado, por acusações de corrupção, de mau uso do dinheiro
público. Você pode discutir isso na Justiça, pode discutir se a pena é correta.
Os juízes da Lava Jato são da primeira instância, depois você recorre à segunda
instância e ainda tem o Supremo Tribunal Federal. Então, se todas instâncias
dizem que é culpado, o que que eu vou fazer? Ou eu acredito que a Justiça e a
democracia existem ou eu faço o quê?
RFI – Voltando ao governo Bolsonaro, já estamos no 14º dia
de seu governo, qual a sua avaliação destes primeiros dias? O senhor acha que o
fato de o Brasil ter eleito um presidente de extrema direita vai afetar
negativamente a imagem do país no exterior e particularmente na França?
FHC – Vamos começar por aí. Afeta. É claro que afeta. A
percepção do resto do mundo e particularmente na França é negativa. O governo
começou complicado, com a recusa do pacto de imigração, dizer que vai sair da
convenção sobre o clima, são posições difíceis de imaginar que o mundo aceite
com aplausos. Dentro do governo, tem setores ultraliberais, na parte econômica,
setores que são culturalmente atrasados, reacionários, e setores que são fora
do mundo, “démodé”.
RFI – E como fazer com que isso funcione? Para que eles se
entendam para governar?
FHC – Este é o ponto, é difícil ver. Você vê que, no começo
do governo, estão dando muitas cabeçadas, um diz uma coisa, o outro diz outra
coisa e tal. Eu sou prudente, eu fui presidente, eu sei que é difícil, não
gosto de jogar pedra toda hora e às vezes no começo as pessoas custam a se
ajeitar. Mas aí é mais do que isso, são setores muito desencontrados. Eu sou
brasileiro em primeiro lugar; o meu partido, para mim, vem depois. Eu quero o
bem-estar do povo e tenho uma visão de mundo. Acredito na humanidade, acho que
tem valores universais, direitos humanos, essa coisa toda, então eu torço para
que não façam erros, não torço para que errem. Deixa ver o que vai acontecer.
Mas que estão dando cabeçada, estão.
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