Publicado originalmente no site GABEIRA, em 22.02.2019
BRASIL, UMA VISÃO DE TEMPO
Por Fernando Gabeira
A longo prazo estaremos todos mortos. Essa frase, atribuída
a lorde Keynes, é verdadeira. Mas prefiro ficar com as dimensões de tempo
descritas pelo grande historiador Fernand Braudel: o tempo imediato é local, a
convergência de fatos que produzem uma nova conjuntura é a extensa linha do
longo prazo. Naturalmente, estaremos todos mortos, mas existe uma linha de
longo prazo e devemos interrogá-la para definir uma estratégia.
No meu entender, a vitória de Bolsonaro é uma convergência
de fatos que produziu uma nova conjuntura. Mas continuo achando que na linha do
tempo, no longo prazo, o Brasil não pode fugir de seu destino de detentor de
grandes riquezas naturais que são um trunfo econômico e diplomático.
O governo Bolsonaro foi eleito pela maioria, de forma
democrática. Alguns de seus ministros, Agricultura e Meio Ambiente, consideram
que o controle ambiental sobre a produção é coisa de comunista fantasiado de
defensor do meio ambiente. Melancias, verdes por fora, vermelhas por dentro. O
chanceler Ernesto Araújo classifica o aquecimento global como uma invenção do
marxismo globalizante.
Isso não corresponde à realidade. Eles não conhecem um país
comunista. Não visitaram o Leste Europeu, não viram a devastação ambiental
deixada pelo regime. Os desastres por lá, a julgar por Chernobyl, eram piores
que os nossos. Aqui, contaminamos com lama e minério dentro de nossas
fronteiras. As usinas nucleares espalham a radiação por todo o continente, às
vezes além dele.
Os ministros de Bolsonaro ignoram até o debate nacional. Em
2003, quando saí do PT, afirmei que o partido tinha uma visão ambiental
atrasada e replicava a visão dos velhos partidos comunistas. A ideia dos
antigos quadros era de que o essencial era o crescimento econômico, a melhoria
de condições dos trabalhadores. Era preciso competir e vencer o Ocidente.
Por mais que Bolsonaro deteste os comunistas, nada se parece
mais com eles do que suas posições sobre crescimento e meio ambiente. Na
realidade, seu ponto de partida é diferente. Bolsonaro defende a propriedade
privada e acha que está sendo tolhida pelo controle ambiental. Pelo menos é
isso que depreendo de seus discursos de campanha.
A defesa da propriedade privada é uma boa causa. No entanto,
ela tem nítidos limites. Um rio que passa na sua fazenda não pode ser usado de
qualquer maneira. Há pessoas a jusante, comunidades que dependem dele.
Por causa disso, afirmamos em lei que os rios são de
responsabilidade dos Estados ou do governo federal. E criamos um instrumento
democrático para geri-los: o comitê de bacia, no qual os usuários são também
representados.
Seria fácil descartar a visão de Bolsonaro e seus ministros,
afirmando só que ignoram os fatos. Eles, ao que parece, têm uma visão de longo
prazo. Acreditam que o meio ambiente pode ser explorado com menos limites se
avançamos em ciência e tecnologia. É uma suposição muito frequente a de que as
principais tarefas da natureza podem ser substituídas por descobertas
científicas. Ainda que isso fosse possível, estaríamos construindo uma
civilização solitária, a mais solitária que existiu até hoje, dispensando plantas,
animais, fontes de água limpa.
No meu entender, a linha decisiva de longa prazo vai
prevalecer. Governos passam. E ainda que não passassem (há os que duram
demais), a realidade acabará por se impor.
Os exemplos estão aí. Dilma fazia um governo próximo do
marxismo. Mas após o desastre de Mariana ela não mandou fechar as barragens
existentes nem proibiu as que são construídas a montante. O governo Bolsonaro,
que odeia ecologistas e acha que o controle ambiental deveria ser relaxado em
nome da produtividade e do respeito à propriedade privada, fez exatamente o que
o chamado marxismo não fez: proibiu as barragens a montante e deu um prazo para
que fossem esvaziadas.
Isso foi depois de Brumadinho. Mas não desmonta o argumento
de que os fatos acabam produzindo uma aproximação do que chamo de linha
estratégica de longo prazo.
O ministro do Turismo de Bolsonaro compreendeu também que a
melhor tática para salvar Brumadinho é estimular o turismo, sobretudo o baseado
no grande museu a céu aberto de Inhotim. Na verdade, o museu é só uma das
atrações da área, rica em águas, no pé da Serra do Rola-Moça, com grandes
pedaços de Mata Atlântica ainda preservados.
Ao desenvolver essas ideias, não quero dizer que exista uma
história pré-escrita, nem aconselhar que as pessoas cruzem os braços e deixem
de lutar por melhores condições ambientais. Ao contrário, quero dizer apenas
que existem fortes tendências determinadas por nossa rica biodiversidade que
abrem um caminho para o Brasil num mundo assustado com a degradação planetária.
Não importa tanto, aqui, se o ministro gosta de laranjas ou
tangerinas, neste caso específico o importante é que faça a coisa certa. Não
importa, ainda, se Bolsonaro atribuiu ao PT a defesa de nosso meio ambiente ou
se o chanceler confere ao marxismo a constatação de que o planeta esquenta de
forma perigosa. Karl Marx compartilhava o otimismo burguês com a exploração
ilimitada dos recursos naturais.
Quem vai conter a realidade quando ela se revela em eventos
extremos, furacões e tempestades, quando a barragem mineral desce na forma de
um tsunami de lama? Não tem nenhuma importância que continuem a combater um
comunismo desenhado na cabeça deles, nem mesmo que nos mandem prender por
criticá-los com acidez. Conjunturas, convergência singular de alguns fatos, são
ebulições que nos deixam pensar tudo, sobretudo fantasiar a realidade como um
produto de nossa ideologia. Mas a longa linha do tempo, as grandes tendências
históricas acabam nos trazendo ao mundo concreto.
Esta é minha interpretação livre da visão de tempo de
Braudel. Não sei se ele autorizaria minha tosca leitura. Pelo menos estou lendo
e tentando entender.
Artigo publicado no Estadão em 22/02
Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira.com.br
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