Martin Ravallion, fotografado em um hotel da Cidade do
México.
Foto: Gladys Serrano
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 05 de agosto de 2019
“É preciso apagar a ideia de que reduzir a desigualdade é
coisa de comunista”
Ex-economista do Banco Mundial, Martin Ravallion agora dá
aulas em Georgetown. De família humilde, sofreu em primeira pessoa o impacto da
pobreza antes de lutar contra ela
Por Ignacio Fariza
Uma hora de conversa com Martin Ravallion (Sidney, 1952) é o
mais parecido a um livro de macroeconomia aberto em duas páginas: a da
desigualdade e a das falhas do capitalismo do século XXI. Pai da tabela de um
dólar (4 reais) diário como linha global de pobreza quando era economista do
Banco Mundial — onde anos depois dirigiu seu prestigioso grupo de pesquisa para
o desenvolvimento —, é desde 2013 professor da Universidade Georgetown (EUA).
Ravallion, instalado há anos entre os 100 economistas mais reconhecidos do
mundo de acordo com a classificação do Ideas-Repec, sabe bem o significado da
desigualdade: nasceu em uma família pobre, sofreu na própria carne o que
significa viver com dificuldades e decidiu que “não queria ser pobre” nunca mais,
como disse quando recebeu o prêmio Fronteiras do Conhecimento BBVA, em 2016.
“Todos os meus papers são muito chatos”, diz rindo ao EL PAÍS pouco depois de
dar uma conferência organizada pela Oxfam no Colégio do México. Não é verdade:
o australiano é um dos especialistas que melhor explicam, com palavras ao
alcance de todos, por que a iniquidade é um dos grandes problemas globais de
nosso tempo.
Pergunta. A pobreza extrema caiu bastante nas últimas
décadas, mas a desigualdade ofuscou essa boa notícia.
Resposta. A desigualdade global, entendida como aquela entre
todos os habitantes do planeta e em termos relativos, também caiu. Não tanto
como a pobreza, mas caiu. E isso é algo que costuma confundir as pessoas.
P. Cito um recente estudo do Banco Mundial, que o senhor
conhece bem: “A queda na taxa de pobreza desacelerou, aumentando dessa forma a
preocupação sobre a consecução do objetivo de acabar com a pobreza extrema em
2030”. O que está acontecendo?
R. Parte disso tem a ver com a desaceleração (econômica) na
África e com o fato de que a redução da pobreza teve a ver em boa medida com o
boom das matérias-primas, que se deteve. Mas são coisas que flutuam, e acho que
não deveríamos ver isso como um grande problema: estamos no caminho, desde que
não ocorra outra crise financeira global, para cumprir com o objetivo do
próprio Banco Mundial de diminuir a 3% a pobreza extrema global em 2030. Ainda
que, claro, não sou isento porque colocar esse número foi uma das últimas
coisas que fiz no Banco Mundial (risos). Se traçarmos como meta o objetivo de
desenvolvimento sustentável (das Nações Unidas) de “eliminar a pobreza”
chegando a 0%, isso não ocorrerá sem uma grande mudança nas políticas: ao ritmo
atual levará 200 anos.
P. Mas mesmo eliminar a pobreza extrema não quer dizer que
deixarão de existir milhões de pessoas em situação de miséria.
“Gostaria que o capitalismo funcionasse para todo mundo. Não
vejo isso acontecer”
R. De forma alguma. A linha de 1,90 dólares (7,5 reais) por
dia é realmente baixa: imaginemos o pouco que se pode comprar com essa
quantidade.
P. A desigualdade irrompeu na agenda, mas fala-se o
suficiente dela?
R. Não, deveríamos falar mais e fazê-lo de maneira mais
específica. Devemos nos centrar menos nas estatísticas e mais em aspectos
concretos que possam atrair a atenção (da sociedade) e nos mobilizar à ação.
Ainda que a desigualdade atraia maior atenção, a pobreza sempre dominou o
debate. “Pobreza” é uma palavra popular e “desigualdade” não, mas, em parte,
isso está mudando: a pobreza está se transformando em uma questão respeitável
na literatura acadêmica e a sociedade é cada vez mais consciente.
P. A evolução recente na América Latina deve nos preocupar?
R. Sim. A situação da pobreza é muito melhor do que em
outras regiões, como a África subsaariana, mas sua evolução está sendo pior. A
desigualdade na América Latina é muito alta e isso é um problema, tanto ao
crescimento econômico como à luta contra a pobreza. E a falta de consenso em
relação a esse ponto é um grande problema: há muita complacência e muita falsa
retórica. Toda a desigualdade é sempre ruim? Não, não é verdade. Há níveis de
desigualdade que são positivos em termos de incentivos, ao crescimento e à
própria redução da pobreza. Mas esse grau de desigualdade, como a desigualdade
racial e de gênero, é inaceitável e devemos construir um consenso em torno
disso.
P. Como?
R. É preciso mostrar mais às pessoas como a desigualdade é
custosa. Não é somente ética e moralmente repulsiva: também é uma má notícia ao
crescimento econômico. Se a desigualdade não é bem gerida não ocorre muito
crescimento e não será possível aproveitar seus benefícios. Tudo está
conectado.
P. Há um consenso quase total em torno à ideia de que a
pobreza é negativa e deve ser combatida, mas não existe o mesmo consenso em
relação à desigualdade. Por que alguns ainda veem na desigualdade um
catalisador do crescimento?
R. Muita gente apela à ideia de que em um mundo sem
desigualdade não haveria incentivos e, como dizia, há uma certa verdade nessa
afirmação. Mas o objetivo não deve ser a desigualdade zero, e sim a pobreza
zero. O objetivo deve ser um nível de desigualdade manejável, aceitável, que
não se perpetue. Continuam existindo economistas que não prestam atenção às questões
de distribuição de renda: nunca será possível fazer com que todos os
economistas da academia concordem em algo. Mas não acho que alguém possa
consultar a literatura disponível hoje e discordar do fato de que a
desigualdade é um freio ao crescimento. Há 15 ou 20 anos, a maioria dos
economistas pensava unicamente na eficiência e dizia que a desigualdade era
positiva ao crescimento: novamente, depende dos níveis de desigualdade de que
estamos falando, mas agora já são poucos. É significativo que o livro de
economia mais vendido de todos os tempos seja um sobre desigualdade, O Capital
no Século XXI, de Thomas Piketty.
“Continuam existindo economistas que não prestam atenção à
distribuição de renda”
P. Qual seria a desigualdade “aceitável”?
R. Não sei: sabemos quando é muito alta, como em muitos
países latino-americanos hoje, e quando é muito baixa, como na extinta União
Soviética, na China anterior aos anos oitenta. E quando nos movemos na direção
correta.
P. Pensemos em um índice como o de Gini. Em que ponto
deveria estar a iniquidade para que fosse “manejável”?
R. Não focaria tanto nos índices, e sim nas causas: é
preciso existir boas condições de saúde, creches e escolas decentes, os jovens
devem poder estudar na Universidade e desenvolver todo o seu potencial... Essas
são as coisas que verdadeiramente importam: é preciso focar mais nas políticas
do que nos índices e nas taxas. Também apagar a ideia de que querer reduzir a
desigualdade é coisa de comunista: eu gostaria que o capitalismo funcionasse para
todo mundo. E não vejo isso acontecer.
P. A pergunta de um milhão: como podemos fazer com que o
capitalismo funcione para todos?
R. Principalmente, assegurando que o campo de jogo fique
muito mais nivelado: tentando minimizar a desvantagem das crianças que nascem
em famílias pobres. E isso requer uma intervenção a partir das menores idades:
precisamos de políticas que corrijam essa iniquidade desde o começo.
P. Mas acha possível um capitalismo que funcione para todos.
R. Sem dúvida. Não disseram que o capitalismo é uma ideia
terrível, mas melhor do que as outras? Não adoro o capitalismo, mas acho que
não há nenhum outro sistema que possa se equiparar à economia de mercado. Dito
isto, o capitalismo de hoje não é o mesmo do qual falava Adam Smith: se tornou
menos competitivo e muito mais dominado por monopólios. Deveríamos nos
preocupar por isso: como é a concorrência na indústria tecnológica, por
exemplo? As coisas que um capitalismo verdadeiramente competitivo pode
conseguir são incríveis, mas para isso precisamos nos assegurar de que a
concorrência se mantenha e que se lide bem com a desigualdade. E para isso são
necessárias boas políticas.
P. Aprendemos com os erros de políticas públicas cometidos
no passado?
R. Não. É muito frustrante ver a falta de atenção dada à
avaliação das políticas. Em parte, porque quase todos os políticos não querem
escutar que seus programas não funcionam bem e em parte porque muitas vezes os
programas são muito inflexíveis. Avançamos muito nos programas de avaliação de
impacto desses planos nos últimos 20 anos, mas o maior desafio é que isso
chegue ao processo político.
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