O ex-ministro da Justiça Sergio Moro, em julho de 2019.
Foto: Eraldo Peres/AP
Texto publicado no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 16 de junho de 2020
Sergio Moro: “A popularidade é irrelevante, com o tempo a
verdade prevalece”
Ex-ministro, que teve imagem desgastada pela Vaza Jato e por
sair do Governo, encara resistência em manifestos pró-democracia. Para ele, não
há risco de ruptura no Brasil
Por Carla Jiménez/Naiara Galarraga Gortázar/Afonso Benites
Quando o ex-juiz Sergio Moro (Maringá, 1972) aceitou seguir
o ultradireitista Jair Bolsonaro no Governo fez uma aposta arriscada. Entregava
o seu capital político como símbolo anticorrupção a um deputado veterano e
incendiário, um nostálgico da ditadura. A lua de mel acabou no fim de abril,
como um divórcio ruim, não consensual e uma acusação bomba contra o mandatário:
ele queria trocar o diretor-geral da Polícia Federal e interferir na corporação
por interesses pessoais. O Supremo Tribunal Federal abriu uma investigação
contra Bolsonaro e contra o próprio Moro.
Em uma entrevista por videoconferência desde Curitiba, onde
está confinado com a família, por conta da pandemia de coronavírus, Moro
critica os arroubos autoritários de Bolsonaro mas diz que não vê riscos de uma
ruptura democrática. Perguntado se o vídeo podia ser exibido, negou o pedido,
embora tenha feito Lives para outros veículos, e para o movimento Vem pra Rua.
Ele, que já teve bonecos infláveis gigantes com seu rosto
exibidos em todo o país, diz que não se importa com sua queda de popularidade.
Saiu de uma imagem positiva entre 60% dos entrevistados em maio de 2019 para
42% no mês passado, segundo o Atlas Político. A série de reportagens da Vaza
Jato, que revelou bastidores da Lava Jato, e sua saída do Governo, contribuíram
para essa mudança de percepção. Moro não vê relação entre a sua atuação como
juiz da Lava Jato e o Estado de Direito fragilizado atualmente, como apontam
seus críticos. “Ao contrário, o combate à corrupção fortalece o Estado de Direito”,
defende. Também revela que depois de quase 24 anos como servidor público, sendo
22 na magistratura federal, terá de se reinventar profissionalmente,
provavelmente no setor privado. Já começou a assinar uma coluna na revista
Crusoé, ferrenha defensora da Lava Jato.
Pergunta. O senhor saiu do governo 16 meses após assumir o
ministério com ataques ao presidente. Ele o enganou ou o senhor cometeu um erro
de avaliação?
Resposta. Quando entrei no Governo foi uma decisão difícil,
largar a magistratura. O que disse publicamente é a pura verdade. As pessoas às
vezes tendem a acreditar em conspirações, motivações ocultas. Minha intenção
era ir ao Ministério da Justiça para consolidar os avanços [contra a corrupção]
dos últimos anos, além de realizar um trabalho de combate ao crime organizado e
à criminalidade violenta. Progressivamente, minha percepção foi que essa
agenda, principalmente anticorrupção, não estava tendo a prioridade necessária
e ao final, por conta dessa interferência na Polícia Federal… Sou um ex-juiz,
temos uma formação, para nós, o rule of law, o estado de direito é fundamental.
Para mim foi o momento em que entendi que já não fazia mais sentido minha permanência
no Governo. Saí não porque queria prejudicar o Governo em meio à pandemia.
Entendi que precisava, que tinha o dever de revelar os feitos que envolviam a
minha saída, inclusive para proteger a Polícia Federal.
P. Sente-se decepcionado com o presidente com o compromisso
dele de lutar contra a corrupção?
R. Eu permaneci fiel aos compromissos que me levaram ao
Governo. Se ele permaneceu ou não é uma questão que tem de ser feita a ele.
P. O senhor se arrepende de ter assumido o Ministério da
Justiça?
R. Não. Acho que fui fiel aos meus compromissos. Quando
entrei a bolsa [de valores] subiu, as pessoas gostaram. Eu recebi muito apoio.
Claro que tinham críticas também, mas em geral foi algo muito positivo. Tivemos
queda expressiva em 2019 dos principais indicadores criminais, inclusive de
assassinatos, que caíram 19%, algo que nesse percentual não tinha esse
precedente histórico. Foi implementada uma série de políticas, mas infelizmente
não foi possível ir adiante.
P. A questão dos homicídios dolosos depende dos governos
estaduais. O enfrentamento é feito por eles diretamente, não pelo governo
federal.
R. Ao contrário. O combate ao crime envolve muito a questão
do simbolismo. Boa parte dos homicídios no Brasil, nas periferias, estão
relacionados ao crime organizado. Não estou dizendo que não tem o mérito dos
Estados e mesmo dos municípios. Tenho certeza se tivesse tido um movimento
contrário, um incremento do número de assassinatos a responsabilidade iria se
recair sobre o governo federal.
P. Na segunda-feira, ativista bolsonarista Sara Winter foi
presa por atos antidemocráticos. Há uma escalada nos conflitos contra o
Judiciário. Como os avalia?
R. No Brasil e em algumas partes do mundo vemos uma
polarização excessiva, que dificulta o bom funcionamento da democracia, o
diálogo, e isso gera falta de tolerância e impede que questões de construção de
políticas públicas, por exemplo, sejam tratadas de uma maneira racional. Esses
radicais, em particular, representam o extremo dessa polarização. Evidentemente
há que preservar a liberdade de opinião. Agora essa liberdade de opinião não
abrange a prática de crimes incluindo as ameaças explícitas contra instituições
ou pessoas. Foi essa a situação que surgiu e infelizmente o Supremo teve de
decretar a prisão pelos excessos cometidos.
P. O senhor se viu como alvo desses extremistas?
R. O que eu vi, principalmente depois da minha saída do
Governo, são ataques dessa natureza nas redes sociais. Não sei até que ponto
espontâneas ou não.
P. O senhor encarnou um desejo pela ética nas relações
políticas. Havia quase uma unanimidade, era um apoio pouco visto para alguém da
magistratura. Mas o senhor perdeu popularidade . Está sendo mal compreendido ou vê que alguns
pontos de sua trajetória poderiam ter sido diferentes?
R. Minhas opções foram tomadas sob a perspectiva de fazer a
coisa certa. Às vezes, fazer a coisa certa envolve consequências. Nunca foi um
objetivo a questão da popularidade. Se houve alguma incompreensão dos motivos
de minha saída, principalmente por uma parte dos apoiadores do presidente, eu
lamento, mas isso não mudaria nada. A popularidade é irrelevante, não estou em
concurso de popularidade. Existe também essa rede de desinformação que muitas
vezes prejudica a percepção adequada dos fatos por parte das pessoas.
Sinceramente não estou preocupado com essa questão. Com o tempo, a verdade
acaba sempre prevalecendo.
P. Existem três manifestos em defesa da democracia. Dois
deles colocam barreiras ao seu nome. Como se posiciona diante disso?
R. Parte um pouco da incompreensão do que foi a Lava Jato.
Ela foi uma grande operação que revelou casos disseminados de subornos no
âmbito do Governo federal durante a gestão dos presidentes eleitos pelo PT.
Algumas pessoas têm essa visão de que houve um viés político, mas o fato é que
se fizeram investigações e foram condenados agentes políticos da esquerda e da
direita. Existe esse rancor que vem de longe. Estamos em um momento difícil com
essa pandemia, as dificuldades econômicas, não penso que deveríamos estar discutindo
defesa da democracia, embora se compreenda porque esteja se fazendo isso. A
democracia se tem como pressuposto, é algo que não precisaríamos estar
defendendo em um contexto normal.
P. Mas o senhor reconhece que é necessária essa defesa, não?
R. Sim, absolutamente. Considero necessário, mas é
lamentável que tenhamos de estar discutindo isso.
P. Aceitaria estar com o ex-presidente Lula, com o PT, se
eles quisessem em uma frente pela democracia?
R. Isso é uma questão desnecessária. Eu tenho definido o governo
Bolsonaro como populista com arroubos autoritários. Temos uma democracia e
instituições sólidas, não acredito que ela esteja de fato ameaçada, mas esse
tipo de arroubo evidentemente é indesejável.
P. O presidente Bolsonaro foi deputado por 28 anos. Em
várias ocasiões demonstrou esse flerte com o autoritarismo. Achava que ia ser
diferente?
R. A grande maioria não pensava que isso ocorreria. Minha
entrada no Governo na época foi vista por muitos que seria um elemento de
moderação. Também eu teria esse papel dentro do Governo. Como tenho esse
histórico de juiz também me via ali como uma espécie de um garante, em certa
medida, de que não haveria esses arroubos autoritários. O mais relevante é que
há uma reação forte da sociedade e temos instituições que estão reagindo. Em
que pese todos os alarmes, temos um Supremo que está atuando com independência.
Temos um Congresso que está funcionando normalmente. A democracia brasileira é
consolidada, essas turbulências vão passar.
P. Então, não vê risco de uma ruptura constitucional?
R. Não vejo esse risco, mas isso não justifica os arroubos
autoritários. Passaríamos melhor sem eles.
P. No ano passado o jurista espanhol Baltasar Garzón
expressou críticas sobre sua atuação na condução do processo do ex-presidente
Lula e por ter aceito ir ao Governo Bolsonaro. O que diria a ele?
R. Não quero entrar em um debate com Baltasar Garzón. Acho
que existe uma certa incompreensão. No caso do ex-presidente eu o condenei em
um processo e a sentença foi confirmada em outras duas instâncias. Logo foi
condenado em outro processo. Tem toda uma realidade de uma prática sistemática
de suborno no Governo dele. Temos a corrupção envolvendo agentes do Partido dos
Trabalhadores, antes revelada no julgamento da ação penal 470 (caso Mensalão).
Nunca teve nada a ver questão ideológica ou pessoal. É um álibi que foi tentado
se vender no exterior em relação ao ex-presidente que ele seria vítima de uma
de perseguição política e aí tenta levar para esse lado pessoal. Simplesmente
cumpri meu papel como juiz.
P. The Intercept e outros meios, incluindo o EL PAÍS,
cobrimos a Vaza Jato em que apareceram algumas movimentações que podem ser
levadas na ação de suspeição que o envolve.
R. Essa é outra ilusão. Nada do que foi decidido nos
processos, nas provas, nada é afetado por essas situações específicas. Acho que
esse episódio aconteceu no passado, tem os hackers que estão respondendo aos
processos. Isso não invalida nada do que foi abordado pela operação Lava Jato.
P. Na Lava Jato o senhor tinha uma comunicação estreita com
os procuradores. O senhor acha que cometeu alguma falha ali?
R. Temos um modelo brasileiro em que o juiz que atua mesmo
na área de investigação quanto na fase de julgamento. Tem gente que critica
isso, mas é o que está previsto na legislação. Numa investigação como a
operação Lava Jato, falar com o Ministério Público, com os advogados, com a
polícia é algo usual. Sem querer reconhecer a autenticidade daquilo [a Vaza
Jato], não existe nada que aponte alguma fraude, alguma coisa imprópria ou
indevida. Sinceramente, acho que esse assunto é história antiga.
Temos uma democracia e instituições sólidas, não acredito
que ela esteja de fato ameaçada, mas esse tipo de arroubo autoritários
evidentemente é indesejável
P. Mas a questão é um julgamento do ex-presidente. Há uma
corrente na comunidade jurídica que diz que a Lava Jato fragilizou o que o
senhor mesmo defende, o Estado de Direito. Essas críticas não lhe...
R. Ao contrário, o combate à corrupção fortalece o Estado de
Direito. Tem muita manipulação de discurso. Alguns dizem no Brasil fala que a
Lava Jato representou a criminalização da política. Não, o político que comete
um crime de corrupção o regular é essa conduta ser punida pelas Cortes de
Justiça. Isso não tem nada de criminalização da política.
P. Como ex-juiz, como analisa os indícios, as provas, contra
os filhos do presidente? Acredita que há material para levá-los a julgamento?
R. Esse tipo de avaliação entendo que não cabe a mim.
P. O senhor tem mais provas dessa suposta interferência do
presidente na PF?
R. Essas questões estão sendo discutidas lá no Supremo.
P. Teme que essa investigação volte contra o senhor, de que
se torne o alvo?
R. Não. Eu fiz o que era certo e o que eu disse era
absolutamente verdade.
P. O senhor é visto como um nome para a eleição 2022. Onde
se encaixa no espectro político?
R. Temos uma pandemia, um problema econômico muito sério com
pessoas perdendo o emprego, pessoas sem renda, empresas fechando e acho que é
absolutamente inconveniente qualquer debate envolvendo essas questões
políticas. Existe uma agenda urgente no país a ser enfrentada e que não permite
esse tipo de debate fora de hora. Não tem nenhuma discussão pertinente de
esquerda ou direita ou sobre o que vai acontecer em 2022, 2026, 2030 ou
eleições futuras. É muito cedo para esse tipo de conversa. Tudo seria
especulativo.
P. Quais são os seus planos? Está procurando um trabalho?
R. Como consequência da saída do Governo, tem um período de
quarentena jurídica para evitar conflitos de interesses. Nesses seis meses eu
preciso me reinventar, provavelmente no âmbito do setor privado. Mas essas
questões ainda estão em andamento. Agora, o desejo, de fato, é permanecer
contribuindo para o debate público.
P. A ideia é continuar no Brasil?
R. Puxa vida! As coisas ainda estão muito prematuras. Talvez
sair. Talvez ficar. Essa pandemia também complica todos os cenários. É uma
situação um pouco difícil no momento.
P. Recentemente, o senhor tuitou que o governo Bolsonaro
estava criando um ministério da propaganda. Esse é um termo que ficou forte
entre nazistas. Crê que a gestão Bolsonaro tenha essa característica?
R. Não. Aí é exagero. Era uma crítica. Houve a transferência
da Secretaria da Comunicação e me pareceu que o perfil principal era a área da
propaganda. Mas propaganda que, de alguma maneira, todos os governos fazem.
Isso não tem nenhum nada a ver com nazismo ou fascismo, necessariamente.
P. O senhor está de acordo com a presença de tantos
militares no Governo? Não acha que isso fere um pouco a imagem das Forças
Armadas? O tempo todo parece uma gestão de medo. Não vê isso como um elemento
que colocou a democracia do Brasil em xeque?
R. A presença de militares no Governo não, necessariamente,
é negativa. Eles têm um papel a desempenhar e isso acontece também em outros
países sem que se cogite que isso envolva algum risco à democracia. Agora,
essas invocações constantes das Forças Armadas e a necessidade de estar
reafirmando nossos compromissos democráticos é ruim para o país. Traz
instabilidade, afugenta investimento. A minha avaliação é que temos uma
democracia consolidada, as instituições estão funcionando, estamos passando por
momentos de turbulência.
P. Essa tensão permanente tem aumentado o número de pedidos
de impeachment do presidente. O senhor apoiaria um processo de impeachment do
Bolsonaro?
R. (Risos, seguidos de negativas com a cabeça). Não me cabe
fazer essa avaliação. Veja, eu sou um cidadão comum hoje.
P. Mais ou menos. Uma coisa sou eu, somos nós aqui
[entrevistadores] levantarmos uma bandeira. Outra coisa é o senhor. É
diferente.
R. Não cabe a mim esse tipo de postura no momento. Essa é
uma questão que depende do Congresso, se sim ou se não. O que eu fiz, já me
trouxe bastante problemas. Saí do Governo, me expus a uma situação delicada.
Perdi, não posso mais voltar para a magistratura.
P. Como o senhor avalia a gestão que Bolsonaro faz da
pandemia?
R. Esse foi um dos motivos subjacentes à minha saída do
Governo. Não me sentia confortável. Não é a minha área, a saúde, mas causava-me
incômodo estar dentro do Governo e o presidente ter essa postura negacionista.
Assim como o PT nega a ocorrência dos crimes na Petrobras, o presidente nega a
existência de uma pandemia, o que dificulta qualquer política em nível nacional
de combate ao vírus. Não se enfrenta a pandemia negando a gravidade dela. Isso
faz com que nós tenhamos hoje 43.000 óbitos pelo coronavírus, o que é muito grave.
Talvez, parte desses óbitos teria sido evitada com uma política mais racional
por parte do Governo federal.
P. Algo que está claro é que o presidente quer armar a
população. O senhor era um desarmamentista no Governo?
R. Parte dos apoiadores do presidente defende uma maior
flexibilização sobre o porte de armas. É uma reivindicação, em certa medida
legítima, mas ela tem de ter os seus limites. Facilitar a posse de armas em
casa, já que era uma promessa eleitoral do presidente, não é nenhum absurdo.
Agora, tem sempre que se discutir até que ponto se vai. Em alguns momentos esse
limite tem sido ultrapassado. Evidentemente, não é aceitável o discurso de
armar a população para se opor às medidas sanitárias. Isso não tem como.
P. O senhor falou com o presidente desde que saiu do
Governo?
R. Não.
P. Nem com a deputada bolsonarista Carla Zambelli [afilhada
de casamento de Moro]?
R. [Risos constrangidos] Não.
Texto e foto reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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