Legenda da foto: Teatro Darma de Mariupol
Artigo compartilhado do site SIBILA, de 12 de abril de 2022
O que a Rússia faz na ucrânia
Por Timofey Sergeytsev
Nota à edição ucraniana
O estrategista político russo Timofey Sergeytsev publicou recentemente, na principal publicação estatal russa, RIA Novosti, o artigo a seguir, que é, na verdade, um pequeno análogo do Mein Kampf versão Vladimir Putin. O texto explica a necessidade da destruição sistemática dos ucranianos e do estado da Ucrânia, com base nos objetivos monstruosos da política de Putin. Acreditamos que o mundo deve conhecer esse plano. Por isso oferecemos aqui uma tradução para o inglês desse texto (Timofey Sergeytsev. “What should Russia do with Ukraine?”. The Ukranian Post. Disponível em: shorturl.at/bqNY4).
Explicação à tradução brasileira
Na longa véspera da Segunda Guerra Mundial, véspera que se iniciou em 1933, com a ascensão de Adolf Hitler ao poder na Alemanha, as elites ocidentais, do Leste da Europa à costa Oeste norte-americana, incluindo políticos, economistas, historiadores, sociólogos, escritores, jornalistas, artistas etc., à direita, ao centro e à esquerda (Stálin faria um pacto de não agressão com Hitler), discutiram à exaustão as reais intensões do novo chanceler alemão, seus prováveis movimentos futuros, o que fazer e o que não fazer: para apaziguá-lo, satisfazê-lo, “compreender” suas alegações etc. (uma das exceções foi Winston Churchill, que passou os anos 1930 denunciando a ameaça nazista – e seu real significado – como um profeta clamando no deserto).
A história mostrou de forma cabal que a vasta maioria errou de forma cabal. E, de certo modo, errou voluntariamente. Porque Hitler não escondeu nada desde os anos 1920, quando iniciou sua carreira política, até afinal invadir a Polônia e levar o mundo à guerra em 1º de setembro de 1939 – depois de ocupar a Renânia, a Tchecoslováquia e a Áustria.
Em seus discursos e no livro Mein Kampf, toda sua ideologia e toda sua política, incluindo sua geopolítica, estavam explícitas, reiteradas, repetidas, detalhadas. Mas a intelligentsia ocidental encontrou mil razões bizantinas para descobrir sutilezas, complexidades e subsentidos onde havia completa clareza de propósitos.
Os motivos desse autoengano foram tema de bibliotecas inteiras. Vão desde a vontade genuína, apesar de inútil, de tentar evitar uma nova guerra mundial, depois de 1914-18 (o “apaziguamento” de Hitler através de concessões), até mais ou menos inconfessadas e inconfessáveis simpatias pelo nazismo (por criptofascismo e antissemitismo compartilhado), passando pela crença agradável de que o principal alvo da crescente máquina de guerra da Alemanha seria a URSS de Stálin, não as democracias europeias.
Guardadas todas as muitas e muito grandes diferenças, algo muito semelhante, em vários aspectos, acontece agora. Tanto na clareza das razões de Vladimir Putin para a invasão e a deliberada destruição da Ucrânia, quanto no autoengano e na “dificuldade” de compreensão dessas razões claras e declaradas por parte importante da intelligentsia ocidental.
As razões, as motivações e os objetivos de Putin e de sua camarilha para a invasão e a destruição da Ucrânia (incluindo os ucranianos) são conhecidos. E são conhecidos pelas palavras do próprio Putin e de seus ideólogos, através de inúmeros discursos, textos e livros. Mas, repita-se, parte importante da intelligentsia ocidental recusou-se, ao longo dos últimos anos – e recusa-se ainda – a reconhecer o conhecido sobre Putin, sua ideologia e sua geopolítica. Começando por Angela Merkel – que, como Chamberlain, quis acreditar poder apaziguar Putin (integrando-o à economia europeia via gasodutos russos e, óbvio, também pela compra de seu produto barato) e terminando no vasto “campo da esquerda”, acadêmico ou não, sempre imerso em seu eterno sonho de ver o fim do “império” americano e ávido por acreditar que Putin desafia a OTAN. O nonsense agora chega ao ponto de se “desconfiar” de que não são os agressores que estão agredindo suas vítimas, ou seja, massacrando os ucranianos, mas estes que estão matando a si mesmos, para “culpar” a “pobre” Rússia…
O texto a seguir, escrito originalmente em russo e de autoria de um influente ideólogo russo contemporâneo, explicita e sintetiza a visão distorcida, homicida e etnocida da atual geopolítica russa, e expõe os reais motivos da invasão da Ucrânia: o nacional-imperialismo xenófobo russo.
Se, para a racionalidade política “normal”, as motivações a seguir apresentadas parecem inverossímeis, a mobilização de um exército de 200 mil homens e a invasão e destruição da Ucrânia deveriam ser mais do que suficientes para demonstrar qual é de fato a geopolítica russa atual. Afinal, ela está sendo realizada monstruosidade às claras, em tempo real. Mas, de modo paradoxal, os fatos da invasão servem para muitos no Ocidente argumentarem que esses mesmos fatos demonstram não serem o que parecem ser… A própria pantomima verbal orwelliana de Putin, de chamar a invasão da Ucrânia de “operação militar especial”, deveria bastar para que o resto do discurso de Moscou fosse descartado como aquilo o que é: sofisma, mentira e engodo (apesar mesmo da contraditória exposição de seus reais motivos e motivações em vários textos, como o que se lerá aqui; não será a primeira vez na história: um dos motivos de todo esse ruído chama-se contradição; o outro, tentativa de gerar confusão).
Mas, afinal, e a “ameaça” da OTAN à “pobre” e acuada Rússia, via Ucrânia?, evocam os bem-pensantes da fria realpolitik. Em primeiro lugar, a Ucrânia nunca esteve sequer perto de se tornar membro da OTAN: nenhum trâmite neste sentido foi jamais iniciado. Em segundo lugar, Letônia e Estônia fazem fronteira com a Rússia. Letônia e Estônia fazem parte da OTAN há mais de uma década. A OTAN está na fronteira da Rússia há mais de uma década.
A mentira tem pernas curtas. E a grande mentira, pernas curtíssimas:
“Em entrevista ao jornal britânico The Telegraph, o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, disse que a OTAN está ‘no meio de uma transformação muito fundamental’ que refletirá ‘as consequências de longo prazo’ das ações do presidente russo, Vladimir Putin”.[2]
Ou seja, trata-se exatamente do contrário:
“Desde o fim do nazismo, o rearmamento alemão era tabu. A invasão da Ucrânia mudou tudo. Ficou claro que guerras convencionais não são coisa do passado”, diz o professor da Fesp-SP, Bernardo Wahl, especializado em segurança e defesa pelo William J. Perry Center for Hemispheric Defense Studies, dos EUA. A Alemanha acaba de destinar US$ 113 bilhões para as Forças Armadas e mais de 2% do PIB para a defesa. A Romênia ampliou em 25% os gastos militares. A França fala em aumentar até US$ 66 bilhões em 12 anos. Na Estônia, 2,5% do PIB será destinado à defesa. Bélgica, Itália, Polônia, Letônia, Lituânia, Noruega e Suécia também anunciaram mais gastos no setor.[3]
E continua. A Finlândia, como a Ucrânia, possui uma extensa fronteira com a Rússia:
A Finlândia entra nesta semana na fase decisiva sobre sua candidatura à OTAN. Esta possibilidade, impensável até o começo deste ano, voltou a ser cogitada depois do início da guerra na Ucrânia.[4]
E continua…
O governo social-democrata da Suécia anunciou hoje o início de um debate interno sobre a situação estratégica do país e a possibilidade de uma adesão à Otan, um cenário aberto desde o início da invasão russa à Ucrânia.[5]
A Rússia atacará então toda a Europa? Ou o espantalho da OTAN não passou disto, de um espantalho costurado à medida da ingenuidade ou má-fé antiocidentalista de parte importante da opinião pública russa e também de parte significativa da intelligentsia ocidental, essa multidão de órfãos da Guerra Fria e de ex-simpatizantes da URSS que, agora, correm para “compreender” as razões russas, ou seja, as alegações de Moscou para tentar justificar o injustificável, a invasão e destruição da Ucrânia e sua pretensa e absurda “desnazificação” que, apesar de absurda, ou porque absurda, foi facilmente “comprada” por essa mesma intelligentsia?
Mas e a economia, os gasodutos, as terras raras…?, ecoa então o marxismo vulgar que se tornou o mantra dos “espertos” e de muitos experts.
As motivações de Hitler jamais foram primária ou predominantemente econômicas. Tratava-se, em primeiro lugar, de poder, de hegemonia, de cumprir o “destino” imperial alemão, ou seja, de submeter a Europa e criar o Lebensraum, o “espaço vital” que o nacionalismo germânico reivindicava para o povo alemão. É o caso da Rússia de Putin, trocando-se Europa por Leste europeu.
Suas ambições territoriais, suas ambições imperiais, são muito mais importantes do que qualquer outra coisa, incluindo o sustento da população russa e a situação financeira do país [Andrei Illarionov, principal conselheiro econômico de Putin de 2000 a 2005, hoje exilado].[6]
Enquanto a mesma OTAN estabelecida em suas fronteiras estonianas e letãs não era ameaça alguma, a Rússia de Putin (a verdadeira ameaça à Europa), à maneira de Hitler na Renânia, na Tchecoslováquia e na Áustria, já em seu primeiro ano de governo (1999), esmagou de modo selvagem os separatistas da Chechênia, incluindo reduzir a pó (além de sangue e coágulos) sua capital, Grósny. Em 2008, foi a vez da Geórgia, país independente, de ser invadida para frear sua aproximação com o Ocidente – isto é, seu afastamento e sua independência de Moscou. Finalmente, após o “inverno de fogo” de 2013-2014, quando os ucranianos derrubaram, apesar da repressão sangrenta, o governo de Viktor Ianukovitch, subserviente a Putin, este invadiu a Crimeia e instigou e armou os separatistas do Donbass, iniciando o processo de submissão e destruição da Ucrânia que agora tenta completar.
Nas guerras de agressão (há as de defesa, como a ucraniana), além dos “espertos” e dos experts, vale a velha consciência moral: “Tome partido. A neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, nunca o torturado” (Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto e Prêmio Nobel da Paz).
Cem imagens dizem mais que um milhão de palavras: o documentário Winter of Fire (Netflix), todo com imagens da revolta popular em Kiev em 2013-2014, é tão imprescindível para entender o que se passa quanto a filmagem do sufocamento de George Floyd para compreender o Black Lives Matter.
De fato, não se pode entender nada do que agora acontece na Ucrânia sem ver as manifestações massivas de 2013-2014 em Kiev, com a população nas ruas gritando “Somos europeus” e agitando bandeiras de União Europeia ao lado das ucranianas. O movimento popular ucraniano de 2013-2914 visava tão-somente isto: integrar a Ucrânia à UE, promessa de campanha de Ianukovitch depois traída por um acordo com Putin. Ianukovitch foi derrubado pela revolta popular (ao custo de centenas de mortos pelas forças de segurança) e fugiu para Moscou. O resto é história. A história das ações de Putin visando manter, a partir de então, a qualquer custo, a Ucrânia na órbita do Império Russo, digo, da União Soviética, digo, da Federação Russa. Tudo mais é ilusão, propaganda, engano, autoengano e mentira. A “deseuropização” da Ucrânia – além de sua “desucranização” [!] – é um dos temas principais do texto a seguir. A OTAN, por outro lado, salvo uma única a rapidíssima exceção, no contexto de uma referência à EU, é a grande ausente.
Em anos recentes, vários termos político-ideológicos foram vulgarizados e descaracterizados à exaustão. Entre eles fascista, nazista, genocida e genocídio. Qualquer oponente do “campo da esquerda” ou dos autodeclarados “progressistas” são fascistas, nazistas ou ambos. Putin apenas imitou esse cacoete ao afirmar insanamente que a Ucrânia é um país “nazista”. Mais insanamente, muitos quiseram acreditar.
Quanto a genocídio, todo assassinato de um grupo de pessoas passou a ser um. Trata-se, ainda mais objetivamente, de um uso impróprio, pois seu significado etimológico, histórico e jurídico não corrobora minimamente essa vulgarização. O sufixo –cídio em português (parricídio, infanticídio etc.) é sinônimo de assassinato. E gens (geno-cídio) referre-se a grupo étnico, ou, mais genericamente, a povo. Genocídio é a destruição física de um povo (assim definido nos dicionários e na jurisprudência da ONU).
O texto abaixo defende o genocídio do povo ucraniano e a eliminação da Ucrânia. Neste caso, o qualificativo de genocida aplicado ao texto não é descabido, ao contrário. Assim como à geopolítica de Putin.
Como Hitler, em sua época, representou uma ameaça existencial aos valores diretamente derivados do iluminismo e do humanismo, hoje Putin representa algo equivalente. Quem ainda quiser se enganar, leia o texto a seguir com um mínimo de vagar e atenção – e espanto. Depois, lembre que o autor é um dos porta-vozes ideológicos de um poder instalado em um Estado nuclear.
Adendo: Como subproduto dos incontáveis metamitos que hoje proliferam e se retroalimentam no Ocidente, há os que não se cansam de “questionar” e “denunciar” certa “Mídia” maiúscula e singular: trata-se de uma entidade um tanto metafísica que, sediada em algum lugar nos EUA e/ou na UE, manipularia corações e mentes de todos que se deixam manipular… pela “Mídia”. Claro, é um argumento circular. Se não bastasse, tal entidade não existe. Ao menos, no Ocidente. Porque a internet é aberta. Pode-se navegar por todas as fontes do planeta, em qualquer meio, língua e origem. O que existe, obviamente, são mídias minúsculas (de todos os tamanhos) e múltiplas. A ironia é que apenas em regimes totalitários, como o russo e o chinês, o Estado tenta criar uma Mídia única, oficial, através de censura e da repressão. No Ocidente, não. Pode-se ler o New York Times, mas também sites anarquistas, defensores do “Sul global”, stalinistas, trotskistas, islamitas, europeus, africanos, asiáticos… Há, na verdade, tantas mídias na grande mídia que é a internet aberta que não é possível sequer apreender sua dimensão. No mais recente movimento do nacional-imperialismo russo, que é a invasão e a destruição da Ucrânia independente, o mito da “Mídia” é usado e abusado por ingênuos e por nada-ingênuos a fim de criar ruído metainformacional: acatam-se certas informações, atacam-se outras, e também a “origem” de muitas informações, que seria a própria grande e maiúscula “Mídia”, literalmente ao gosto ou à má-fé de cada um. Não era assim no Vietnã: ninguém ousaria questionar quem era o agressor e quem o agredido. A Ucrânia é o Vietnã da Rússia. Eis, na verdade, o que “complica” tudo: afinal, o “Mal” não é ocidental?
Mas, apesar de tudo, as informações estão aí. Tão visíveis e inquestionáveis quanto cadáveres ucranianos espalhados pelas ruas de Butcha. Ou quanto o verdadeiro pequeno Mein Kampf da atual geopolítica russa que se lerá a seguir.
Luis Dolhnikoff
Texto e imagem reproduzidos do site: sibila.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário