domingo, 31 de março de 2024

1964 – O ano que não acabou

Milton Coelho

Publicado originalmente no site do JORNAL DO DIA SE, de 29 de março de 2024

1964 – O ano que não acabou

Por Rian Santos 

 Os livros de História não deixam margem para dúvida. No dia 01 de abril de 1964, a cúpula militar verde e amarela pegou carona na paranoia inflada pela guerra fria e aplicou um golpe de Estado clássico, com a dissolução do congresso e a suspensão das liberdades civis, coletivas e individuais. Sob o pretexto de salvar a brava gente dos horrores do comunismo, fez-se de tudo. A censura, a tortura, eraum prato servido todo santo dia, sem nenhuma cerimônia, simples feijão com arroz.

Em Sergipe, no entanto, apesar dos pesares da liberdade pouca, o pau só cantou mesmo no carnaval de 1976. A Operação Cajueiro deixou uma marca indelével na história política do estado. Milton Coelho, personagem involuntário de um verdadeiro circo de horrores, o sabe bem.

Milton Coelho concorda com o jornalista Zuenir Ventura, para quem o ano de 64 ainda não acabou. Ele argumenta que não é possível admitir mácula de sombra sobre a História. 

“Eu sou partidário de que é preciso identificar todas as ocorrências. É preciso identificar todos os que participaram daquelas atrocidades para que as novas gerações sejam municiadas e não permitam que tudo se repita”.

As atrocidades que Milton Coelho menciona eram praticadas com método. Ele conta que os jagunços envolvidos no desbaratamento da célula sergipana do Partido Comunista Brasileiro (PCB), objetivo maior da Operação Cajueiro, se esmeravam numa espécie de ritual.

“Quando levados pelos sequestradores e entregues aos responsáveis pela fase que antecedeu a formalização do Inquérito Policial Militar, os presos políticos, que na maioria já tinha uma fita de borracha sobre os olhos, receberam “tratamento” de impacto, começando pela troca da roupa que vestiam por um macacão com um número no peito e um capuz. Aqueles que eram considerados mais comprometidos com a organização da resistência à ditadura militar recebiam o que era chamado de “tratamento especial”, incluindo torturas com a cabeça submersa em depósito com água, por várias vezes, pontapés nas costelas, choques elétricos nas mãos e no pênis, além da ameaça de assassinato. A estes, os milicos informavam que iriam suicidá-los”.

O próprio Milton foi vítima de tortura e carrega na carne as marcas da violência. Além de ganhar cicatrizes e ter uma costela quebrada, ele foi condenado a tatear o mundo pelo resto de seus dias. A retina deslocada, responsável por uma deficiência visual que até hoje não conheceu cura, lhe impôs prejuízos econômicos e dificuldades pessoais.

Atento e forte, no entanto, Milton acompanha as transformações da conjuntura política e acredita que, a despeito de incoerências pontuais, o campo político da esquerda precisa se manter unido para garantir os avanços necessários à manutenção da democracia.

Nas palavras do próprio: “Nós temos uma população que, infelizmente, ainda não tem consciência política. Isso pode facilitar o retrocesso. A minha preocupação consiste em não dar chance aos inimigos dos trabalhadores e da liberdade”.

O depoimento de Milton foi colhido por este jornalista há um bom par de anos, a serviço da Central Única de Trabalhadores. O temor então declarado com todas as letras, no entanto, tem agora contornos mais bem definidos do que antes. Hoje, é preciso levantar a voz, sob pena de ter a palavra cassada para sempre.

Foi ditadura, sim!

Para a maior parte dos sergipanos, o nome de Jorge Carvalho é associado ao poder público. Convidado a assumir a secretaria de educação pelo governador Jackson Barreto, ele não se fez de rogado e permaneceu a postos, mangas arregaçadas, até o fim daquela gestão. A sua maior vocação, no entanto, talvez seja mesmo a de um pesquisador criterioso. Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Jorge Carvalho tem mania de fuçar o passado. Municiado de depoimentos colhidos de corpo presente e documentos de outros tempos, o estudioso vira e mexe nos convida a refletir sobre o destino coletivo dos nascidos bem aqui.

O percurso do autor é longo, já rendeu 15 livros publicados. Entre estes, ‘Memórias da resistência’ resgata a experiência  dos militantes sergipanos reunidos no MDB, com coragem suficiente para se opor aos governos da ditadura militar em Sergipe, no período de 1966 a 1984. Trata-se, como a descrição sugere, de uma declaração de compromisso não apenas com uma legenda partidária. Mas, sobretudo, com o exercício político em si.

O momento para realizar tal debate não poderia ser mais oportuno. Em primeiro lugar, a criminalização da política, legado perverso da operação Lava Jato, redundou em vale tudo, com consequências ainda imprevisíveis para o futuro do País. Depois, não menos importante, percebe-se hojeum esforço notório, com o fim de divulgar uma versão alternativa da história do Brasil. Dependesse dos reaças, as páginas manchadas de sangue seriam arrancadas por força de mentira, feito pa fleto apócrifo, varrendo as atrocidades perpetradas pela ditadura militar de 1964 para baixo  do tapete.

Segundo o golpista Jair Bolsonaro, um mito com pés de barro, o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra é um herói nacional. Já o livro de Jorge Carvalho, por outro lado, evoca a trajetória de lideranças como Jaime Araújo, Seixas Dórea, Viana de Assis, Jackson Barreto, Rosalvo Alexandre, Wellington Paixão, Benedito de Figueiredo, João Augusto Gama, Bosco Mendonça, Carlos Alberto Menezes, Francisco Dantas e outros tantos.

Um livro puxa outro. Nas estrelinhas, a história contada agora por Jorge Carvalho rima com a pesquisa do jornalista Laurentino Gomes, um autor debruçado sobre o trauma violento da escravidão, dos primórdios aos dias atuais. Segundo este, a história é um enunciado prenhe de vida, escrito a todo momento. “Serve para construirmos a identidade do presente e a ideia de um futuro”. 

Portanto, será sempre necessário lembrar com todas as letras: Foi ditadura, sim!

Texto e imagem reproduzidos do site jornaldodiase com br

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