segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Esquerda apagada

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 25 de outubro de 2024

Esquerda apagada

Como o PT e seus aliados perderam a conexão com os brasileiros. Duda Teixeira para a revista Crusoé:

O resultado pífio nas eleições municipais escancarou o apagão que a esquerda brasileira está atravessando. Incapaz de atualizar suas bandeiras, essa corrente perdeu a conexão com boa parte da população, principalmente com os mais pobres. O fenômeno tem causas internas e externas, e vem se delineando há vários anos, mas tem sido sistematicamente desprezado pelos seus líderes. Essa dificuldade em encontrar uma solução para ele faz com que o PT e seus aliados mais próximos, como o Psol, tenham um futuro incerto pela frente.

No plano mais geral, o fim do bloco soviético, em 1989, expôs a ineficiência do centralismo econômico e das ideologias comunistas. Foi uma vitória clara do poder do capitalismo e da democracia em prover o bem-estar das pessoas e atender aos seus anseios por liberdade. Mas o PT de Lula, em vez de embarcar em um novo rumo mais liberal, como fizeram os partidos de esquerda europeus, fundou o Foro de São Paulo, em parceria com o ditador cubano Fidel Castro. De lá para cá, a correção de rota nunca aconteceu.

O PT manteve-se atrelado às suas principais características, que estavam presentes desde sua fundação, em 1980. “O partido cresceu fincado em três estacas: os sindicatos, os movimentos sociais e, em terceiro lugar, as comunidades eclesiais de base e pastorais Igreja Católica”, diz o sociólogo e cientista político Antonio Lavareda, presidente do Conselho Científico do Ipespe. “Foi essa a rede que deu enorme capilaridade ao partido no campo e na cidade. Acontece que o chão em que o PT apoiou suas estacas não existe mais.”

O país se desindustrializou, concentrando-se na área de serviços e na produção rural. As fábricas que restaram se automatizaram, o que reduziu em muito o número de operários. As cenas de Lula discursando para milhares de trabalhadores nos pátios das montadoras no ABC hoje seriam impraticáveis. Não foi sem motivo que, quando o presidente foi comemorar o Primeiro de Maio em São Paulo, o local escolhido foi o estacionamento do estádio do Corinthians. E o público, apesar dos esforços da organização, não compareceu.

A penetração da esquerda nos movimentos sociais hoje conta pouco e pode até gerar repulsa. Ações violentas e ilegais elevaram a rejeição ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Além disso, a sociedade passou a se organizar principalmente pelas redes sociais, área em que o PT e o resto da esquerda não tem conseguido domar.

A atuação junto às organizações de base Igreja Católica também perdeu relevância. Desde 1980, a porcentagem de evangélicos na população subiu de 6% para 22%. Nos bairros mais carentes, são as igrejas evangélicas de diversas dominações que entram em contato com as pessoas e prestam serviços diversos. Em lugares em que o Estado não está presente, mas com o apoio dessas igrejas e de seus pastores, muitos brasileiros conseguiram subir na vida.

Empreendedorismo em alta

Essas mudanças sociais trouxeram maneiras diferentes de ver o mundo, com a disseminação de novos valores. Aqueles que ascenderam socialmente valorizam o trabalho e o mérito pessoal. Muitas se tornaram pequenos empreendedores, abrindo pequenos negócios, como salões de beleza ou lojas de conserto de celular. Outras são motoristas e entregadores. “O Brasil tem hoje 11 milhões de pessoas cuja principal fonte de renda vem dos aplicativos. Esse contingente inclui tanto os motoristas e entregadores como os que vendem camisetas no Mercado Livre ou bolos de pote no iFood”, diz o cientista político Renato Meirelles, fundador do Instituto Locomotiva. “Em geral, essas pessoas estão contentes em poder gerenciar o próprio tempo e em terem prosperado na vida sozinhas, sem terem tido um patrão, um chefe”, diz Meirelles.

Discursos políticos que veem as pessoas como dependentes do Estado, que prometem benefícios dos empregos formais ou programas de transferência de renda têm baixa reverberação nesse público. Haja vista que todas as iniciativas do governo de Lula para regulamentar o trabalho por aplicativo sofreram resistência dos motoristas e entregadores. Além disso, um levantamento feito pelo cientista político Murilo Medeiros, da Universidade de Brasília, mostrou que, nas 17 cidades brasileiras em que mais de 40% da população depende do Bolsa-Família, o PT não venceu em nenhuma. O PSB, também de esquerda, só conseguiu uma cidade: Camaru, em Pernambuco. “A independência econômica não estava nos planos dos governos de esquerda, que argumentavam servir aos pobres. Muitos brasileiros não estão dispostos a perpetuar a lógica da gratidão e da lealdade. Eles acham que chegou a hora de desmamar, de sair para o mundo e conquistar coisas novas”, diz a cientista política Juliana Fratini.

Só muito recentemente algumas vozes da esquerda entenderam essa mudança de paradigmas. Em entrevista para a rádio O Povo, de Fortaleza, o presidente Lula falou: “Houve mudança substancial e nós precisamos adequar o nosso discurso ao mundo do trabalho, que não é só carteira profissional assinada”. O candidato Guilherme Boulos, que é do Psol e apoiado pelo PT, divulgou uma Carta ao Povo de São Paulo nesta semana, em que fala brevemente em uma “periferia que quer empreender”. O documento só saiu seis dias antes da eleição. “É uma iniciativa que vai no caminho correto, mas que chega de maneira tardia e atabalhoada, o que não gera autenticidade”, diz o cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getúlio Vargas.

Identitarismo em baixa

Em vez de prestar atenção aos pobres, a esquerda entrou nas reuniões da elite cultural brasileira, que tem importado conceitos e práticas da esquerda americana. O Psol, que nasceu do PT, está na vanguarda dessa onda, tendo encampado como nenhum outro o identitarismo e os discursos de raça e gênero. Mas esses temas não têm gerado simpatia entre a maior parte da população, que lida com problemas mais imediatos. “Em algumas áreas da periferia de Brasília, o maior problema é a gravidez precoce. O remédio para esse problema não é o Psol, mas as propostas da senadora Damares Alves”, diz o cientista político Leonardo Barreto, sócio da consultoria Think Policy e colunista de Crusoé.

Muitos eleitores não entendem a legitimidade da segmentação por raça, sexo e gênero, como ainda se sentem excluídos ao ver esses grupos de interesses brigando por seus espaços. “O identitarismo é atomizante, porque fala com o negro, com a mulher, com o portador de deficiência. Mas essa segmentação para vários grupos específicos exclui todos os que não fazem parte deles. Quando a Universidade de Brasília, UnB, cria cotas para pessoas trans, todos os que não são incluídos nas cotas reagem negativamente”, diz Barreto.

O fiasco identitário pode ser constatado nas eleições municipais deste ano. Nenhum partido teve tanto apoio de artistas quanto o Psol. Mas a pauta identitária, que ao mesmo tempo defende uma visão estatizante da economia, foi um fiasco. Nos 5.570 municípios brasileiros, a sigla não emplacou um único prefeito. A última esperança é o segundo turno na cidade de São Paulo, onde Boulos está a mais de dez pontos atrás de Ricardo Nunes, do MDB. O PT, por sua vez, concorre em quatro capitais e tem sua maior chance em Fortaleza, no Ceará. No estado de São Paulo, berço do PT, a sigla só levou três prefeituras. Sem uma mudança substancial de agenda, essa situação periclitante só poderá piorar.

Texto e imagem reproruzidos do blog: otambosi

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