sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Intolerância, modos de combater

Texto compartilhado do site QUATRO CINCO UM, de 19 de setembro de 2024

Crítica cultural

Intolerância, modos de combater

Por Paulo Roberto Pires

Agente e alvo do ódio, Felipe Neto parte de sua história em livro que documenta a corrosão da democracia pela extrema direita

Como enfrentar o ódio tem título de autoajuda e foi escrito por um influencer. Talvez por isso a escalação de Felipe Neto para a 22ª Flip tenha provocado uma polêmica paroquiana de intermináveis oito minutos. Quem o rejeita como estranho no ninho de Paraty tem lá sua razão: diferentemente de parte expressiva de pessoas com voz no debate público — incluindo escritores, jornalistas e editores —, Felipe Neto encarou a extrema direita quando a responsabilidade e a decência mandavam fazê-lo.

Enquanto cosplays de cientistas políticos e sociólogos de aluguel discutiam se era permitido chamar fascista de fascista, Felipe Neto se engalfinhava com eles no inóspito ambiente digital. Não há portanto traço de pretensão intelectual em Como enfrentar o ódio, papo reto que se desdobra a partir de um depoimento pessoal sobre radicalização, tema que o autor conhece bem como vítima e, também, na posição perversa de agente. Povoado por gângsters travestidos de líderes religiosos, milicianos virtuais e reais, fanáticos de variadas extrações e cidadãos de bem, o livro é um documento vívido do processo de corrosão da democracia brasileira.

Nascido e criado no Engenho Novo, subúrbio do Rio de Janeiro, Felipe Neto não foi radicalizado por insidiosos professores esquerdistas, mas pela própria família. Um tio, a quem dispensa a inquietante — e compreensível — mistura de crítica feroz e afeto, o ensinou que meritocracia é valor essencial para se viver num país em que políticos quase sempre vagabundos só ligam para o povo na hora de se eleger. “Quando consegue sucesso, o mérito se deve inteiramente a seu esforço”, escreve Felipe Neto. “Contudo, quando fracassa, o meritocrata é o primeiro a não assumir a culpa. Foram os impostos, foi a burocracia, foi esse Estado inchado, foram os outros. Mas quando outra pessoa fracassa, nesse caso a culpa é só dela”.

No Brasil assim configurado para o adolescente que sonhava em fazer teatro, o melhor presidente havia sido Fernando Collor de Mello, que sofreu impeachment em 1992. E o pior, Luiz Inácio Lula da Silva, seguido de perto por sua sucessora, Dilma Rousseff, deposta por golpe em 2016. Ambos eram encarnações do inimigo maior, a odiosa “esquerda”, e por isso atacados com virulência sem limite nos vídeos de um Felipe que se consolidava como bem sucedido empresário. E de vez em quando temia ser processado ou preso por ter passado do ponto. A intimidação Felipe Neto só conheceria um pouco mais tarde. E não partiria daqueles que poderiam ser definidos como “de esquerda”.

Quando se discutia se era permitido chamar fascista de fascista, Felipe Neto se engalfinhava com eles

A campanha eleitoral de 2018 e a vitória do Cavalão e seus jagunços redefiniria para sempre as convicções do influencer, que incorporaria à sua rotina tentativas de criminalização de opinião, assédio judicial e, é claro, ataques difamatórios orquestrados no puxadinho do Planalto então conhecido como Gabinete do Ódio. Não era preciso um doutorado para perceber a diferença entre os dois momentos políticos; bastava não ser cínico ou covarde.

No que tem de mais interessante e original, Como enfrentar o ódio dá conta desse processo de desradicalização, percurso tortuoso, cheio de sutilezas. Não é de um dia para outro que Felipe Neto abandona um conjunto de valores e comportamentos afins ao bolsonarismo, numa improvável “conversão” à esquerda. Nem mesmo se pode dizer que sua importante atuação em favor de Fernando Haddad e Lula nas eleições de 2018 e 2022 configure uma militância clássica. E muito menos partidária.

Era de violência e ódio que se tratava, perceberia ele, quando se falsificava, a começar em sua própria casa, a memória da ditadura militar e os crimes cometidos em nome dela. Sempre foi violência e ódio, nunca zoeira, tratar gays e quem se queria ofender como “viadinhos”. Tampouco era zoeira o que Jair Bolsonaro destilava, sem sofrer constrangimentos, num cqc de 2011 — como, aliás, o confirmaria o destino de alguns dos proeminentes integrantes do programa.

Mais pragmático do que programático, Felipe Neto vai incorporando à sua atuação nas redes ataques cada vez mais cerrados às manifestações de intolerância — das miúdas, naturalizadas no dia a dia, às efetivas ameaças de morte que ele e sua família sofreram. Na prática, sua vida se transforma num inferno; porém, julga ele, não havia outra opção — a não ser, claro, a adesão à barbárie por silêncio ou participação ativa como o fizeram muitos de seus proeminentes pares no universo digital, todos citados nominalmente.

A conta da radicalização

A principal virtude de Como enfrentar o ódio é construir um ponto de vista independente da ideia de que o ambiente “polarizado” explica das delinquências do Centrão à crise climática. Insistir na ideia de polarização é, na prática, tentar dividir com as esquerdas e o campo progressista em geral a conta de um processo de radicalização protagonizado pela extrema direita. O raciocínio é, não se pode negar, sucesso absoluto de crítica e de público em sua repetição quase uníssona por parte expressiva de jornalistas e comentaristas.

Advertindo que os ataques à imprensa são parte importante da estratégia da extrema direita e ciente de que isentá-la é igualmente danoso ao debate democrático, Felipe não se furta em lembrar o papel no mínimo discutível que veículos e jornalistas assumiram a partir do momento em que passaram a atuar como porta-vozes informais da Operação Lava Jato. “Em retrospecto, parece inegável que em geral a grande mídia carregou nas tintas, deu pouca importância ao contraditório, a contextos específicos e à história”, observa ele. “Forjou uma narrativa maniqueísta que, ao demonizar o PT, se mostraria bastante perniciosa para a política brasileira.”

Enquanto for terra sem lei, o ambiente digital continuará transmissor dos discursos de ódio

Enquanto for terra sem lei, livre de qualquer tipo de regulação, observa Felipe Neto, o ambiente digital continuará a ser o melhor transmissor dos discursos de ódio. Trata-se, observa ele, de uma combinação insidiosa daquilo que chama de “natureza humana” (o irrefreável apelo emocional), “estrutura capitalista” (a conversão em dinheiro do engajamento nas redes) e, por último mas não menos importante, “a falha organizacional e estratégica na comunicação progressista e dos grupos moderados”.

Ainda que eivado aqui e ali de um certo triunfalismo, sobretudo nos relatos de ações, de fato contundentes, contra a escória da extrema direita, Como enfrentar o ódio é um relato circunstanciado. Aborda muitos temas e, é óbvio, muitos deles de forma superficial. Mira sobretudo os mais jovens, principal público de Felipe Neto, e a eles oferece uma utilíssima cronologia, documentada, dos movimentos do esgoto do ódio. Enfrentá-lo não está no espectro da meritocracia e envolve movimentos em diversas frentes. E o primeiro deles é, sem dúvida, a informação.

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Paulo Roberto Pires - É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #86 out em outubro de 2024.

Texto  reproduzido do site: quatrocincoum com br

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