terça-feira, 11 de março de 2025

O caminho estreito da tradição liberal

Artgo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 10 de março de 2025

O caminho estreito da tradição liberal

Foi um erro enxergar o mundo dos direitos como um 'estorvo'. Fernando Schüler para a Veja:

“O liberalismo foi sempre um caminho estreito no Brasil.” A frase me foi dita em uma noite fria de Porto Alegre, nos anos 1990, em um debate sobre nossa (esta sim) longa tradição autoritária. Volta e meia lembro dela, no Brasil dos últimos anos. A lembrança veio de novo lendo o recém-divulgado Democracy Index 2024, relatório sobre a democracia global da Economist Inteligence Unit. O estudo diz que o Brasil foi o país que mais perdeu posições no grupo das “democracias frágeis”, com a previsível exceção da Coreia do Sul. O relatório fala da nossa polarização excessiva, da política convertida em jogo de soma zero, e a um momento toca na ferida: “O Supremo Tribunal Federal passou dos limites”. Desde 2019, ele vem conduzindo “investigações controversas” sobre a “suposta desinformação”. Suspendeu o X durante o debate eleitoral, algo “sem precedentes em países democráticos”. E criminalizou a opinião “com base em definições vagas, em um exemplo de politização do Judiciário”. Tudo isso, conclui o relatório, “tem um efeito inibidor sobre a liberdade de expressão”, criando “precedentes para os tribunais censurarem a opinião política”.

Achei certa graça lendo essas coisas. Logo imaginei uma matéria na TV sugerindo que algum hacker “bolsonarista” pode ter invadido a página da The Economist. Brincadeiras à parte, o relatório diz apenas o óbvio. É mais um sinal do que boa parte de nossa elite teima em não enxergar. Foram muitos sinais nas últimas semanas. Primeiro veio aquela equipe da OEA. Todos assistimos ao Pedro Vaca, com uma cara um tanto assustada, escutando histórias infinitas sobre a censura. Os empresários no grupo de WhatsApp, o Marcos Cintra, o Monark, o deputado Homero Marchese, a quebra da imunidade parlamentar, aquela matéria sobre um ministro, aquela publicação acusada de “golpista”, o episódio do “use a sua criatividade”. E por aí foi. Depois veio o projeto aprovado no Congresso americano por republicanos e democratas. De novo, saímos pela tangente. Dessa vez com um velho truque latino: o apelo nacionalista. Tudo para evitar a única pergunta relevante que deveríamos fazer a nós mesmos: estamos ou não praticando a censura, em especial a censura prévia, aqui no Brasil?

Para verificar como o diagnóstico da The Economist é real, basta observar a decisão recente do STF contra a plataforma Rumble. Em certo momento, o texto menciona os “crimes” cometidos por um cidadão, chamado de “pretenso jornalista”, na decisão. Seriam eles: “atacar integrantes de instituições públicas, desacreditar o processo eleitoral, reforçar o discurso de polarização; gerar animosidade na sociedade, promovendo o descrédito dos poderes da República, além de outros crimes”. Sejamos claros: rigorosamente nada disso é crime no mundo legal. Qualquer crítica mais dura a uma autoridade pode ser dita um “ataque”. Sobre o “discurso da polarização”, não é o que boa parte dos políticos e militantes fazem a todo momento? E sobre a “animosidade”. Alguma lógica nisso? Somos um mosteiro beneditino, por acaso? E qual crítica dura a uma decisão do Congresso ou do governo não será vista como trazendo algum “descrédito” para essas instituições? É exatamente esse pacote de “definições vagas” que vai servindo de base para a flexibilização do mundo dos direitos no Brasil. E, com ela, para a “corrosão por dentro” de nossa democracia. Isto pelo fato simples de que quanto mais maleáveis são nossos direitos, mais vulneráveis nos tornamos diante de quem ocupa posições de poder. Dias atrás escutava de um empresário: “Me retirei, não dou mais opinião, tenho medo”. Dizia aquilo com naturalidade. A mesma lógica se repete no jornalismo e mesmo na atividade parlamentar. Sem clareza sobre nossos direitos, nos retiramos. Na lógica do poder, pode ser tranquilizador. No sentido da vida republicana, é um desastre.

O curioso é observar como muita gente justifica tudo isto sob o argumento do “provisório”. A ideia de que é necessário algum atalho ou dose de “excepcionalidade” nas garantias da democracia, sabe-se lá até quando, para salvaguardar a própria democracia. O argumento vem do fundo de nossa tradição. Lembra a ideia do “autoritarismo instrumental” formulada pelo professor Wanderley Guilherme dos Santos, ainda nos anos 1970. De um modo simples, a ideia de que, dados o nosso atraso como sociedade e as mil e uma deficiências de nossa formação, acabamos sempre apostando em uma “terapêutica autoritária” para fazer valer, logo ali à frente, os predicados da democracia. O jurista Oliveira Vianna seria uma boa síntese dessa índole política nacional. Ele e sua visão de que nossa sociedade “parental e autoritária” demandaria por muito tempo um Estado tutor para se obter, lá na frente, uma ordem democrática. Daí seu apoio ao varguismo, nos anos 1930, e sua “modernização pelo alto”. Talvez ninguém tenha personificado melhor a tradição do atalho autoritário do que Carlos Lacerda e seu “golpismo democrático”, nos anos 1950 e 1960. Ele e seu apelo à “reação pelas armas para restaurar a ordem” meses antes do suicídio de Vargas. O mesmo que faria em 1964, com as consequências funestas que conhecemos.

Nosso autoritarismo instrumental é ecumênico. Se a esquerda hoje vibra a cada nova medida de censura prévia e relativização de direitos, “necessários” para a democracia, boa parte da direita não fica distante. Senão, o que faziam aquelas pessoas pedindo uma intervenção militar à porta dos quartéis, em 2022? O que fazia tanta gente sugerindo uma medida “cirúrgica” com a aplicação para lá de criativa do “artigo 142”? A própria The Economist menciona a “trama golpista” posterior à eleição presidencial e a persistência de uma “preocupante tolerância à violência política”. Pouca gente escapou dessa dualidade de visões. O mundo da política é dominado pelos afetos. E o pensamento de facção parece sempre mais sedutor do que a impessoalidade fria das regras e dos princípios. Precisamente os ingredientes que pavimentam o caminho estreito da tradição liberal. O caminho que sempre desconfiou da lógica fácil de que “os instrumentos da democracia são frágeis para defender a própria democracia”. A crença ingênua de que, uma vez postos em movimento, os mecanismos de exceção seriam capazes de produzir seus limites.

O ponto é que sempre foi um erro enxergar o mundo dos direitos e garantias individuais como um “estorvo” à democracia. O raciocínio confortável de que o respeito ao devido processo, ao contraditório, às instâncias adequadas da Justiça, ao juiz natural e tudo que conhecemos como ferramentas do direito republicano possam funcionar como matéria plástica, retorcida aqui e ali, ao sabor de uma vaga razão de Estado. Tudo isso que parece novo, e urgente, e capaz mesmo de produzir entusiasmo, é apenas parte de uma velha tradição. Se vamos superar estas coisas como país? Não sei. O caminho é estreito, como dizia a frase que escutei três décadas atrás e que hoje me parece mais atual do que nunca.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Publicado em VEJA de 7 de março de 2025, edição nº 2934

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Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

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