domingo, 16 de março de 2025

O que realmente importa

John Rawls

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 15 de março de 2025

O que realmente importa

Geração de riqueza e redução da pobreza andam juntas. Fernando Schüler para a revista Veja:

“A desigualdade mata”, leio em um desses artigos de “combate”, que fazem a festa do ativismo político, baseado em um “relatório” sobre a desigualdade global. Dados impressionistas sobre disparidades econômicas, imagens dos bilionários da lista da Forbes e a sugestão de que é “deles” a culpa pelas nossas desgraças. Tudo se passa como se houvesse um estoque fixo de riqueza no planeta. Algo como bolinhas de gude em um pote. Se alguma criança pega bolinhas demais, sobram menos para os amiguinhos. A retórica é perfeitamente falsa. Sergey Brin, do Google, ficou rico não porque capturou algum dinheiro dos demais, agarrado ao Estado, mas porque as pessoas, por seu próprio juízo, melhoram a vida usando seus buscadores de informação. Vale o mesmo para os compradores de livros na Amazon (eu, por exemplo), os usuários do Whats­App, de Zuckerberg, os agricultores que usam a Starlink, de Elon Musk. Do outro lado do mundo, 200 000 pessoas são internadas, todos os anos, no Brasil, por falta de saneamento básico. E isso não porque o saneamento funciona bem em Maringá ou Uberlândia. Ou porque Bill Gates tem uma mansão com 24 banheiros. O sofrimento não deriva da diferença entre quem vive sob más condições e quem tem um bom serviço, mas dos erros de políticas públicas. Do atraso do modelo estatal e da falta de investimento ao longo dos anos. É disso que seria vital tratar, se houvesse uma preocupação real com a vida dessas pessoas.

Ainda agora li uma teoria estranhíssima sobre o tema. O “limitarismo”, da filósofa holandesa Ingrid Robeyns. A teoria diz que é preciso pôr um teto na riqueza que cada um pode ter. Nossa cantora Anitta já havia sugerido algo assim. E arriscado até um valor: 1 bilhão de dólares. À época, me perguntei o que a pessoa deveria fazer quando sua grana chegasse a esse patamar. Doar o dinheiro e ir morar na Praia da Pipa? Continuar trabalhando por esporte? Por que os incentivos de mercado deveriam valer até o ponto “X”, para logo depois serem jogados pela janela? Seus argumentos me soaram frágeis. Um deles diz que “ninguém precisa de tanto dinheiro assim”. Sob certo aspecto, é verdade. Musk costuma dormir num colchão em suas empresas. Alguns vivem melhor, é verdade. O ponto é que grandes empreendedores usam seu capital para investir, criar negócios, fazer filantropia (sugiro pesquisar The Giving Pledge). Não porque “precisam”, em algum sentido popularesco. Outro argumento diz que muitos ricos são perigosos porque podem usar o dinheiro para lobby político. É verdade. Mas isso depende de muito dinheiro? Os maiores lobbies no Congresso vêm das altas carreiras do setor público, contra o teto salarial; dos militares, contra reformar sua previdência; da Zona Franca de Manaus, para manter os incentivos; dos sindicatos e agregados da educação estatal, mantendo o monopólio. É sobre isso que deveríamos perguntar: a riqueza foi ganha em um ambiente aberto, no mercado, ou via pressão, no mundo político?

Para ter uma boa pista sobre como a economia está longe de ser um jogo de soma zero, vale observar o que se passou com os dois maiores casos de redução da pobreza nos últimos quarenta anos: China e Índia. A China reduziu a pobreza extrema virtualmente a zero, depois que se livrou do maoismo e fez sua guinada para o mercado. A Índia foi de metade da população na extrema pobreza, no início dos anos 90, para menos de 1%, por agora. E aqui vem o detalhe: foram os dois países com maior crescimento de bilionários nesse mesmo período. Enquanto a miséria despencava, os bilionários chineses foram de nenhum a 408; os indianos, de 3 para 209, no ano passado. Não passa de um mito a ideia de que exista alguma contradição entre a geração de riqueza, de um lado, e a redução da pobreza, de outro. Ao contrário: são dois lados do mesmíssimo fenômeno de abertura e dinamização da economia.

O filósofo austríaco Helmut Schoeck escreveu um livro provocativo, ainda nos anos 60 (e hoje um tanto esquecido), tentando entender (entre muitas coisas) de onde vem o “ódio aos mais ricos”. O título da obra: A Inveja: uma Teoria da Sociedade. Ele vê a inveja tanto como uma força positiva como negativa em nossa vida. O lado positivo surge quando ela é “domesticada”, no mercado. Do sujeito que diz: “Vou mostrar a eles do que sou capaz”, e age dentro da regra, trabalhando duro. Quando mal direcionada, é força destruidora. Se torna Salieri, o bom músico, ainda que não genial, e sua relação tóxica com Mozart. Ou quem sabe um bocado de gente gastando energia em odiar empreendedores globais, em vez de se preocupar com o que realmente pode fazer a diferença na vida dos mais pobres.

A melhor resposta a esse dilema foi dada por um tranquilo professor de Harvard, John Rawls. Sua tese: em vez de combater a desigualdade, por si só, por que não fazer com que ela funcione em benefício dos que estão na pior? Ele nos pede para imaginar a seguinte situação: estamos reunidos para escolher as regras de justiça na sociedade. Temos muitas opções. Renda mínima? Mais ou menos desigualdade? Limitarismo? Livre mercado? Detalhe: ninguém sabe o lugar que vai ocupar nesta mesma sociedade. O que cada um escolheria: a sociedade “A”, mais igualitária, mas onde os mais pobres, vamos supor, ganham em média 1 000 reais? Ou a sociedade “B”, mais desigual (vamos imaginar: com Musk e Bezos na vizinhança), mas onde os mais pobres têm uma condição duas vezes melhor? Ou quem sabe: viver na China mais pobre e igual, por volta de 1980? Ou na China fortemente desigual, mas virtualmente sem pobreza, em 2025? Resumo da ópera: apenas a inveja, ou ao menos seu lado sombrio, identificado por Schoeck, faria com que as pessoas escolhessem a sociedade “A”. Uma escolha coletivamente irracional. O ponto não é que não seja natural ambicionar a posição dos outros. O ponto é que usar esse sentimento como parâmetro para as escolhas sociais fará com que todos se tornem perdedores. Algo como: “Eu aceito perder, desde que os outros percam mais do que eu”. O que nunca fez nem fará o menor sentido.

O melhor é mudar o foco. Em vez de gastarmos tempo e energia esbravejando com os resultados de Larry Page, no Google, ou de Larry Ellison, na Oracle, deveríamos nos preocupar com o que realmente importa. Se o ponto é universalizar o saneamento, por exemplo, por que não dar segurança para atrair investimento e fazer uma boa modelagem, com metas e bons contratos? Coisas que já se faz em muitos lugares, que avançaram com uma boa política, como o marco do saneamento. E que rigorosamente nada têm a ver com o valor das ações da Tesla ou da Amazon. É previsível que coisas como segurança jurídica, incentivos e investimento não sejam propriamente excitantes. São temas “a favor”, e não “contra”. Não polarizam, não geram likes e são impróprios para a guerra política, como é o tema da “desigualdade”. E quem sabe exatamente aí resida o problema sobre o qual valeria pensar.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Publicado em VEJA de 14 de março de 2025, edição nº 2935

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com 

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