sábado, 24 de maio de 2025

Ainda faz sentido falar em esquerda e direita?

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, 23 de maio de 2025

Ainda faz sentido falar em esquerda e direita?

Espaço para acordos com os partidos da direita tradicional para amplas transformações do sistema é muito reduzido, apesar da aparente maioria de direita. Um ensaio de Patrícia Fernandes para o Observador:

Quando o intelectual italiano Norberto Bobbio publicou o seu popular Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política clássica, assinalou no prefácio:

“Nunca se escreveu tanto como hoje contra a distinção tradicional entre direita e esquerda, considerada como uma distinção que já teria tido a sua época mas que atualmente não tem qualquer sentido.”

Estávamos em 1994, o que é revelador de como a discussão sobre a pertinência da clássica dicotomia é quase tão antiga como a própria dicotomia – embora possa acontecer por diferentes motivos.

Pode constituir uma fuga ao juízo negativo que decorre de nos identificarmos com a categoria que não é hegemónica, como parece resultar da muito citada frase de Alain (Émile Chartier): “Quando me perguntam se a divisão entre direita e esquerda ainda faz sentido, a primeira ideia que me vem à cabeça é a de que quem faz essa pergunta certamente não é de esquerda.” Neste caso, ser de esquerda seria uma etiqueta política que se usaria com orgulho, pelo que alguém de direita teria vantagem em invocar a irrelevância da dicotomia.

Pode acontecer também porque certas temáticas – e, por extensão, certos partidos – são politicamente transversais, sendo redutor e mesmo impossível categorizá-las como de esquerda ou de direita. É o caso das questões ambientais e animalistas, o que levaria os partidos que têm este foco a fugir à categorização, e é essa a razão invocada, entre nós, pelo PAN para se colocar ao centro no hemisfério parlamentar.

A direita esteve entre nós, e durante muito tempo, perdida em combate: o lugar do PSD no espectro político continua a dar origem a dissertações de mestrado

Poder-se-ia ainda argumentar que a distinção teria sido ultrapassada com o “fim da história” e o caminho traçado por uma terceira via de compromisso entre mercados livres e estado social, como foi defendido e aplicado por parte da esquerda a partir dos anos de 1990, na senda do trabalho de Anthony Giddens.

Ainda assim, a velha dicotomia tem persistido.

1 Utilidade cognitiva e identidades afetivas

Podemos apontar duas razões para essa persistência. A primeira delas resulta, como chama a atenção João Cardoso Rosas, da sua utilidade cognitiva:

“O espaço político dos regimes liberais-democráticos é plural. A divisão em direita e esquerda permite uma simplificação mental desse espaço e facilita a constituição de alternativas aos detentores do poder. Por isso, a dicotomia é mais resistente do que as múltiplas e cambiantes designações de grupos, movimentos ou partidos.”

Aqueles conceitos ajudam a interpretar as diferentes manifestações deste pluralismo político, em particular na sua expressão partidária, oferecendo-nos um vocabulário simplificado para falarmos de tendências e dinâmicas políticas que são sempre complexas.

Mas há uma segunda razão para que a dicotomia tenha subsistido apesar de todas as dúvidas: é que ela carrega consigo uma forte carga emocional, que se foi sedimentando em torno dessas duas palavras, transformando-as em identidades políticas. Estão, neste sentido, carregadas de afeto – ao ponto de serem usadas tanto como ferramenta de autoexaltação, como de ofensa ao adversário político.

Encontramos esta dimensão afetiva com muita frequência, embora ela tenha, na realidade, uma dimensão caricatural. Afinal, a origem das palavras esquerda e direita é inteiramente casual, como recorda Rui Tavares, em Esquerda e Direita: Guia Histórico Para o Século XXI:

“Por muito que nos custe admitir, porque estas coisas se colam à pele, se, na Assembleia Nacional de 1789, os constituintes ‘de esquerda’ tivessem ido para o outro lado da sala trocando de lugar com os ‘de direita’ (ou se o ponto de referência fosse a vista a partir da sala e não a partir do olhar do presidente da assembleia), as pessoas de direita seriam hoje orgulhosamente ‘de esquerda’ e vice-versa.”

2 Uma casualidade histórica

A história é conhecida: no dia 28 de agosto de 1789, e em plena revolução francesa, discutia-se o direito de o rei vetar as deliberações aprovadas pela Assembleia Constituinte. Como diz Rui Tavares:

“Alguns deputados consideravam que, sendo a Assembleia Constituinte a representante do povo francês, seria ilegítimo opor-lhe um poder superior; outros consideravam que os deputados eram apenas representantes transitórios do povo, ao passo que o rei era o símbolo permanente do reino.”

Os deputados que eram contra o direito de veto encontravam-se, nesse dia, à esquerda do presidente da sessão, estando os deputados que eram a favor do lado direito – posição que foi retomada quando a Assembleia se voltou a reunir. Mas a divisão só ganharia o sentido político que lhe damos hoje com a Restauração, tornando-se uma prática regular que opunha, desta vez, liberais e ultrarrealistas. A partir de 1848, com a instituição do sufrágio universal masculino, as ideias de esquerda e direita entraram na política de massas, assumindo-se como identidades políticas.

Este é um aspeto central da dicotomia: ela conforma-se aos acontecimentos históricos e varia com o contexto nacional. Permitiu, primeiro, contrapor os que estavam a favor e os que estavam contra o veto do rei e, depois, os ultrarrealistas e os liberais; e com o avançar do século XIX e o triunfo das ideias socialistas, que defendiam a intervenção do Estado para resolver a “questão social”, o liberalismo foi empurrado para o centro – e até para a direita, como defensor da propriedade privada contra a ofensiva redistributiva –, deixando, no novo mapeamento do cenário político, o socialismo à esquerda. Como chama a atenção João Cardoso Rosas, é precisamente por esta razão que se continua a associar, nos Estados Unidos, o liberalismo à esquerda: como as ideias socialistas nunca tiveram ali êxito, o liberalismo manteve a sua posição e foi, progressivamente, convertido em liberalismo social.

A dicotomia revela, assim, grande volatilidade e muitos autores consideram que os termos “esquerda” e “direita” acabam por ser significantes livres, vazios de conteúdo concreto: embora possam constituir referências posicionais, não teriam um conteúdo ideológico definido.

Significa isto que não existem critérios analíticos para definir o que é esquerda e direita?

3 A esquerda

É aqui que o livro de Norberto Bobbio se torna uma referência académica: ele estabelece um critério concreto para identificar a esquerda, apesar de toda a variedade política, e que, por exclusão, nos permite também identificar a direita. Que critério é esse?

De acordo com Bobbio, a razão fundamental dos movimentos de esquerda é o desejo de igualdade. Muito embora o contexto, os desafios e os problemas possam mudar, “enquanto houver homens cujo empenho político se inspira num profundo sentimento de insatisfação e de sofrimento perante as iniquidades das sociedades contemporâneas (…), esses homens manterão vivos os ideais que desde há mais de um século têm caracterizado todas as esquerdas da História.”

É claro que, como Jaime Nogueira Pinto nota em A direita e as direitas, muitas igualdades fazem já hoje parte do património da direita – nomeadamente a igualdade perante a lei, a igualdade de oportunidades ou a eliminação de privilégios de casta. E, por isso, convém esclarecer que o posicionamento da esquerda em relação à igualdade decorre de uma específica conceção filosófica que Bobbio capta bem:

“A direita está mais disposta a aceitar o que é natural, e essa segunda natureza que é o costume, a tradição, a força do passado. O artificialismo da esquerda não cede nem perante as evidentes desigualdades naturais, aquelas que não podem ser atribuídas à sociedade. A par da natureza madrasta, há também a sociedade madrasta. Contudo, a esquerda tem, em geral, tendência para considerar que o homem é capaz de corrigir tanto uma como outra.”

O espírito da esquerda passaria, desta forma, pela “tendência para remover os obstáculos que tornam os homens menos iguais” e, nessa medida, também pode ser traduzido pelo princípio de retificação apresentado por Steven Lukes: a esquerda tende a considerar que a maior parte das desigualdades pode ser corrigida e por isso adota uma prática de retificação política constante – garantindo que é possível falar em progresso.

Já a direita tende a recear, como diz Cardoso Rosas, “os efeitos perversos ou contraproducentes que este ativismo retificativo pode ter para a liberdade e para a própria preservação do tecido social no qual a vida humana tem sentido”. É a direita, assim, mais reativa?

4 A direita

Jaime Nogueira Pinto reconhece a natureza reativa da direita, o que justificaria a maior dificuldade em definir um critério único e nos levaria à necessidade de estudá-la a partir das suas diferentes manifestações, como faz no seu recente De que falamos quando falamos de Direita?

Mas podemos recorrer ao já referido A direita e as direitas para aprofundar as bases teóricas e filosóficas que nos oferecem uma orientação para este lado do espectro político, e cujo primeiro princípio é o pessimismo antropológico:

“Uma das notas características e constantes do pensamento político de direita é a conceção pessimista do homem, que fundamenta as doutrinas direitistas e aristocráticas, como a conceção otimista fundamenta as doutrinas esquerdistas e igualitárias.”

É deste pessimismo antropológico que resulta não só o ceticismo da direita quanto à possibilidade de criar modelos políticos perfeitos, como o seu realismo quanto às limitações e perigos do desejo de retificação. Deste pessimismo antropológico decorreria igualmente a convicção de que a civilização é incerta: devemos, por isso, desconfiar da ideia de progresso e reconhecer a necessidade de ordem e de boas instituições, que podem melhorar a sociedade e os homens, embora não consigam transformar a natureza humana.

Nogueira Pinto identifica outros traços da direita – direito de propriedade, nacionalismo, organicismo, elitismo, que podemos encontrar em graus variáveis em diferentes direitas –, mas é o direito à diferença, com inspiração em Alain de Benoist, que nos faz regressar a Bobbio e validar o seu critério: se a esquerda luta pela igualdade, a direita valoriza a diferença.

5 A ameaça progressista

Duzentos anos após a sua origem e já lançados no século XXI, continuará a fazer sentido usar a velha dicotomia?

Há um aspeto importante que devemos ter em conta nesta reflexão: a dicotomia é pensada a partir de um consenso democrático e liberal que reconhece a interdependência dos dois termos. Como diz João Cardoso Rosas, “num regime liberal-democrático, não podemos dispensar nem a direita, nem a esquerda. Ambas veiculam ideias importantes, embora em competição” e sabem que há limites para a sua concretização. Esta interdependência simboliza, de acordo com Steven Lukes, a institucionalização do desacordo – a aceitação de que o conflito é inseparável da democracia e não um desvio patológico que deve ser superado.

Neste sentido, uma ameaça importante à dicotomia resulta do atual clima de polarização política que tem posto em causa este acordo implícito de discordância legítima: progressivamente, tem-se vindo a instalar a convicção de que existem formas ilegítimas de pensar e que, como tal, devem ser eliminadas.

Esta transformação política prende-se, provavelmente, com o fim da guerra fria, a crise das grandes ideologias, o consenso em torno das políticas de mercado livre e o quase-desaparecimento daquilo que antes era conhecido como proletariado – alterações que levaram as grandes divisões políticas para o domínio cultural e das questões fraturantes.

Neste domínio, a velha dicotomia é substituída pela divisão entre progressistas e conservadores, o que é revelado pelo número crescente de pessoas que se tem vindo a identificar como progressista. Trata-se de um rótulo que, embora devedor da tradição anglo-americana, é modificado no contexto europeu continental: ser progressista não é, entre nós, ser de esquerda – é mais do que isso. Significa querer estar do lado certo da história, ser portador das Luzes e acreditar que o progresso implica expandir ao máximo o entendimento individualista de igualdade e liberdade.

É, assim, um rótulo que se aplica a uma certa esquerda, mas também a uma certa direita – e que considera o conservadorismo o inimigo principal das sociedades atuais. Assemelham-se, neste sentido, aos “fundamentalistas” que Rui Tavares refere no seu livro: “Só descansarão quando toda a gente tiver abandonado os seus princípios para adotarem os fundamentos deles”.

A consequência desta transformação no discurso político é a de que, ao contrário do que acontecia com a velha dicotomia, esta não pressupõe a legitimidade do adversário. (Basta pensar nos textos recentes sobre a “natureza” do novo Papa e em como a palavra “conservador” aparece sempre com sentido pejorativo.) Pelo contrário, o adversário torna-se aqui um obstáculo a eliminar, o que leva à perda de sentido da velha dicotomia: a esquerda pressupõe a existência da direita, mas os progressistas podem correr sozinhos pela imaginada estrada do progresso.

O PS viu o seu espaço ser invadido pelo Chega com o esvaziamento do movimento centro-esquerda

6 A ameaça populista

Associado a esta identidade progressista, encontramos geralmente um espírito globalista e cosmopolita, que as elites, intelectuais e políticas, da esquerda internacionalista e do centro-direita globalista têm coroado como o modo moralmente correto de ver o mundo.

A contrarresposta, que tem marcado a política eleitoral da última década, tem sido dada pelos movimentos populistas de pendor nacionalista e que crescem contra este globalismo económico e esta elite cosmopolita, promovendo uma postura antissistema, baseando-se em valores de soberania nacional e identidade cultural e defendendo a prioridade da política sobre a economia.

Neste domínio, a desconfiança perante o sistema e as elites supera a velha dicotomia e torna-se uma motivação transversal, numa postura defensiva e reativa que procura recuperar o poder do cidadão comum.

7 Em Portugal

Todos estes aspetos constituem tendências internacionais, embora devam ser interpretados no contexto das particularidades históricas e sociais de cada país. Em Portugal, importa ter em consideração que a velha dicotomia só se afirmou com a consolidação democrática: a seguir ao 25 de Abril, a hegemonia política da esquerda era de tal forma radical que o nosso espectro político terminava no centro-democrático e, desde então, Portugal constituiu sempre um caso sério de “sinistrismo”, como diz Rui Tavares – ou como lamenta Jaime Nogueira Pinto em 2018, aquando da reedição da sua obra:

“A situação não mudou muito: há portugueses de direita, há eleitores de direita, há até intelectuais de direita, mas não há partido ou líder político que se diga de direita.”

Com a exceção que Nogueira Pinto reconhece a certos momentos do CDS-PP, a direita esteve entre nós, e durante muito tempo, perdida em combate: o lugar do PSD no espectro político continua a dar origem a dissertações de mestrado e a Iniciativa Liberal, recuperando as origens históricas do liberalismo, recusa um posicionamento fixo. Foram os oito anos de governação socialista – marcados, primeiro, pela “geringonça”, depois, por uma agenda progressista e, por fim, por um legado calamitoso na imigração – a transformar o panorama político português, ao abrir caminho para que o Chega se afirmasse no espaço político da direita.

No entanto, a matriz ideológica do Chega não pertence à tradicional direita liberal e globalista: antes deve ser encontrada na linha do populismo nacionalista, tendo o partido procurado dar voz a um protesto antissistema, contra a corrupção e crítica da classe política, ao mesmo tempo que se opõe ao globalismo económico e às elites cosmopolitas e progressistas que põem em causa os interesses nacionais e das classes trabalhadoras.

Isto significa que o Chega reinterpreta os critérios da velha dicotomia a partir de uma matriz popular: não só se aproxima muitas vezes, em termos económicos, de medidas socialistas (pelo que não é surpreendente que tenha votado tantas vezes ao lado da esquerda em questões sociais e de resposta a reivindicações laborais), como se apresenta como o verdadeiro defensor da igualdade: ele seria o partido verdadeiramente igualitário, aquele que dá voz à pessoa comum, fala a sua linguagem e partilha a sua conceção moral do mundo.

O Chega conseguiu assim crescer facilmente no terreno do PCP enquanto voto de protesto, mas também no espaço do PS, como vimos nas recentes eleições e como tem acontecido por toda a Europa com o esvaziamento do centro-esquerda: como estes partidos tendem a valorizar simultaneamente o interesse nacional e as preocupações sociais, ocupam facilmente o espaço do centro-esquerda que se distraiu com a agenda globalista e progressista.

É provável que, em consequência, o Chega não consiga ocupar o espaço do centro-direita com a mesma facilidade: a matriz nacionalista e popular tende a desvalorizar as contas certas, a disciplina orçamental e as reformas estruturais inspiradas pelo globalismo económico. O que significa também que o espaço para acordos com os partidos da direita tradicional que visem amplas transformações do sistema é muito reduzido, apesar da aparente maioria de direita que resultou das últimas eleições.

Como tem acontecido em outros países, o espaço político terá de se reorganizar e é provável que se incline para uma moralidade mais conservadora e nacionalista, numa espécie de reação ao consenso pós-1945. Falta saber se, depois dessa reorganização, ainda fará sentido falar em esquerda e direita.

Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com 

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