A vida e o legado de Pepe Mujica: presidente, militante, agricultor, florista e humano
Conheça quem foi Pepe Mujica, uma das principais figuras políticas da América Latina nos séculos 20 e 21
Por Victor Gama (victorgamasilva@usp.br)
Há quatro meses, o mundo perdia Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio conhecido por sua simplicidade e pela luta política na América Latina. Seu fusca azul, suas sandálias e Madalena, sua cadelinha de três patas, se tornaram símbolo de um homem que rejeitava os impulsos consumistas que tomaram a sociedade durante o fim do século 20 e perduram até hoje. Mujica dizia: “Eu não sou pobre, apenas ando leve.”
Juventude e vida política
Pepe nasceu em Montevidéu em 1935 e aprendeu com seus pais as profissões de florista e agricultor. Na juventude, Mujica iniciou sua vida política no Partido Nacional e chegou a se tornar uma liderança do partido.
Motivado pelas revoluções que aconteceram na Rússia, China e Cuba, a ilha caribenha que se tornou símbolo do anti-imperialismo estadunidense, deixou o partido para fundar o Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros (MLN-T). O Tupamaros se formou como uma milícia armada, que tinha o objetivo de se opor à crescente ameaça de ditaduras de extrema-direita que rondavam o Uruguai e toda a América Latina.
Mujica foi perseguido, baleado e preso diversas vezes. Conheceu dentro do Tupamaros a sua companheira de vida, Lúcia Topolanski, no dia de uma fuga da cadeia, no ano de 1971. O plano foi pensado e arquitetado por Mujica com a ajuda de amigos dentro e fora da prisão: construir um túnel que ligava uma das celas até uma casa localizada a poucos quilômetros da penitenciária, onde colegas de militância os esperavam para completar a fuga.
A evasão foi tão bem planejada que havia grupos de guerrilheiros em outras regiões da cidade que iriam causar pânico e caos para desviar a atenção da polícia uruguaia. Tudo deu certo. Mujica conheceu Lúcia logo após sair da cadeia e lá começou a história de amor que duraria até seu último dia de vida.
Em 1972, diversos membros do Tupamaros foram mortos e Mujica foi preso, junto de seus colegas de militância, em operações militares violentas. Ao todo, nove guerrilheiros foram presos e serviram como punição exemplar à população uruguaia.
Segundo o jornalista Marcelo Aguilar, nascido no Uruguai, conta que houve manifestações e protestos em todo o país pedindo a libertação de Mujica e seus companheiros. Segundo o jornalista, os atos dos Tupamaros chamavam atenção de todo o país e os líderes do partido eram conhecidos entre a população.
Treze anos de solidão
Mujica contava que os anos preso foram os piores e mais importantes de sua vida política. Na cadeia, Pepe era obrigado a fazer suas necessidades fisiológicas em si mesmo, já que as celas não eram muito maiores do que o tamanho de seu corpo deitado. Pepe passou anos em uma solitária. No filme-documentário “Pepe: uma vida suprema”, ele narra esses momentos de sua vida.
O ex-presidente contava em entrevistas que apreciava momentos singelos, como os que conseguia tomar um copo de água ou um banho de sol. Em uma visita de autoridades à cadeia, ele conseguiu chamar atenção dizendo que não o deixavam fazer xixi. Uma de suas maiores conquistas enquanto encarcerado foi um penico rosa, feito por sua mãe, que ele pôde ter em mãos apenas depois de expor para as autoridades que era proibido de fazer suas necessidades.
Ao perceber os rumores de que seria liberto, Pepe começou a arquitetar a segunda parte de um dos seus maiores atos políticos. Ele trabalhou para plantar flores dentro de seu penico e saiu da prisão com ele em suas mãos. Ao sair, ele estava disposto a deixar o passado, o sofrimento e a dor dentro da prisão que mais tarde viraria um shopping. Mujica caminha com bom humor pelo centro de compras, conversando com a população e contando, entre risos, que o lugar era bem diferente quando ele ficou preso.
Veias abertas de Pepe Mujica
Ao sair da prisão, Pepe abandonou a luta armada e revolucionária. Entendeu que o melhor caminho para se trilhar seria dentro da política institucional. Nesse período, Mujica se tornou uma das maiores vozes entre os Tupamaros. O partido organizava rodas de conversas, onde se compartilhava o mate (erva usada para produzir o chimarrão) e os projetos da população para o futuro uruguaio. Essas reuniões eram conhecidas como “mateadas”.
Em 1989, com o crescimento das divergências políticas dentro do MLN-T, Pepe decidiu deixar o partido e fundar o Movimiento de Participação Popular (MPP). Esse partido viria a integrar a Frente Ampla, uma coalizão política que unia pessoas de vários lugares do espectro político. Somente com a entrada do MPP e, principalmente de Mujica, que a Frente Ampla teve maior projeção até chegar a importantes vitórias eleitorais. Pepe foi eleito deputado em 1994 e senador em 1999.
Com a eleição de Tabaré Vázquez para a presidência em 2004, a Frente Ampla pode contemplar a sua primeira vitória eleitoral para o cargo mais alto do Executivo. No governo de Vázquez, Mujica foi ministro da agricultura e atuou ativamente em projetos que defendiam a reforma agrária. Em 2008, deixou o cargo para iniciar sua candidatura à presidência.
‘Presidente mais pobre’
O ano de 2010 foi o apogeu de sua história política. José Alberto “Pepe” Mujica Cordano, um jovem guerrilheiro, preso e torturado por 13 anos, chegava à presidência da República.
O uruguaio se destacou pela sua humildade e simplicidade. Mujica rejeitou o palácio presidencial e doava quase todo o seu salário para o partido e para um projeto de construção de moradias para a população. Viveu até o fim da vida em sua chácara nos arredores de Montevideo, ao lado de Lúcia, Madalena e seu fusca azul.
A maior luta de Pepe foi contra o consumismo. Ele dizia que tinha apenas o necessário para viver, para que nada fosse capaz de tirar a sua liberdade. Poucas vezes utilizava trajes a rigor. Foi notícia no mundo diversas vezes por não aparecer de terno e gravata ou utilizar sandálias em eventos oficiais.
“Eu não sou pobre, apenas ando leve.”
Mujica foi o primeiro a tratar a regulamentação do aborto e da cannabis como questão de saúde pública e pioneiro no continente na liberação do casamento para pessoas do mesmo sexo.
No podcast “O Assunto”, a apresentadora Natuza Nery traz à tona esses pontos e explica que Pepe acreditava que deveria governar para o povo, e não segundo sua própria consciência. Não era usuário de maconha, mesmo após a liberação. Dizia que sua mente não precisava desses atalhos para ser livre. Mas sabia que, ao regulamentar o uso e produção, estaria protegendo a população e ajudando a desmantelar o narcotráfico.
Pepe, o Uruguai e a América Latina
Em entrevista à Jornalismo Júnior, o professor Everaldo Oliveira, docente de história contemporânea da América na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) explicou que o Uruguai é, em diversos aspectos, um ponto fora da curva da América Latina. Sofreu os mesmos processos de exploração colonial europeia e de ditaduras influenciadas pelo poderio econômico estadunidense no século 20. Entretanto, não apresenta as contradições e problemas sociais profundos que países como o Brasil e a Venezuela enfrentam.
Everaldo aponta que isso se deve ao fato de o Uruguai não possuir em seu território riquezas que atraiam interesse das nações exploradoras, como a Floresta Amazônica no Brasil e o petróleo na Venezuela.
“A pressão sobre a Venezuela é muito maior do que sobre o Uruguai. Isso deu uma margem de manobra para Mujica. Ele tem mais liberdade para fazer essa conciliação que outros estão contra a parede tem que reagir de maneira muito mais radical”. Segundo o professor, esse fato dá a Mujica a liberdade para ser mais moderado. “Ele contesta o capitalismo, mas não vai até as últimas consequências”, completa.
O legado de Pepe Mujica
Ao assumir a presidência, uma grande parte da população uruguaia não tinha total certeza da competência de Mujica. Muitos falaram que ele parecia mais um feirante do que um presidente. Marcelo Aguilar afirma que essa era a visão que os uruguaios tinham do presidente no início. Segundo o jornalista, Pepe sanou as críticas mostrando a competência que tinha para ocupar a posição.
“Isso é um preconceito. Como se a forma que a pessoa se veste fosse comprometer a capacidade de ter esperança e construir projetos. Como se a imagem valesse mais do que a mensagem que a pessoa traz dentro do seu coração.”
“Pepe Mujica convenceu o Uruguai e o mundo porque era coerente”, explica Everaldo Oliveira. Segundo o professor, o projeto de vida do ex-presidente não era individual ou de ascensão pessoal. “Ele não fazia política como projeto de acumular capital. Era um projeto para o povo, um projeto coletivo”, completa.
Para Marcelo Aguilar aponta que seu maior legado para o Uruguai é o MPP, o partido que ele construiu e que integrou a Frente Ampla. O modelo político e de governança é um dos seus maiores trunfos, que deve ser conservado, guardado e lembrado.
Pepe foi muitas pessoas em uma só. Foi um jovem guerrilheiro, foi um preso político e presidente da República do Uruguai. Foi jovem durante toda a vida. Não deixou que a velhice o tornasse ranzinza e atrasado. Mesmo com mais de 80 anos, Mujica ainda dialogava e era ouvido pelos jovens, porque seu discurso não ficou parado nos anos 1970.
“Tem jovens que têm mensagens velhas, ultrapassadas e tem velhos que têm mensagens novas. O fato dele ser um veterano não significava que ele não tivesse palavras de esperança para o futuro.”
Sobre o legado do líder, Everaldo destaca a posição de que a esperança e a transformação do mundo não tem idade é o mais importante de ser lembrado acerca de Pepe. De que a vontade e o projeto transformador e a superação das desigualdades, da pobreza, da miséria é um projeto da vida inteira. Mujica desconstruiu a ideia de que a esperança de transformar o mundo é só um projeto da juventude e mostrou que é um projeto da humanidade.
Texto e imagem reproduzidos do site: jornalismojunior com br
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