sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Malafaia e a publicização religiosa no Brasil...

Artigo compartilhado do site DESTAQUE NOTÍCIAS, de  4 de setembro de 2025

Malafaia e a publicização religiosa no Brasil: a atuação de um líder terrivelmente evangélico

Por Péricles Andrade[1] e Alexandre de Jesus dos Prazeres[2]

O documentário Apocalipse nos trópicos, dirigido por Petra Costa, lançado em 2025 e disponível em serviço de streaming por assinatura, aborda a presença de lideranças religiosas no campo político no Brasil. Dentre os agentes religiosos que constam na produção cinematográfica, destaca-se a atuação política do pastor Silas Malafaia (Rio de Janeiro, 1958), líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. Esse pastor também esteve nas pautas jornalísticas no mês de agosto de 2025 após a Polícia Federal, com aval da Procuradoria Geral da República, pedir ao Supremo Tribunal Federal que fossem determinadas medidas cautelares contra ele. O líder religioso é investigado por suposta participação em crimes de coação no curso do processo (artigo 344 do Código Penal), obstrução de investigação envolvendo organização criminosa (Lei 12.850/2013) e abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigo 359-L do Código Penal). As investigações são desdobramentos do Inquérito (INQ) 4995, que apura condutas do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e do ex-presidente Jair Bolsonaro (Ver: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-atende-pf-e-pgr-e-determina-busca-apreensao-e-medidas-cautelares-contra-silas-malafaia/). No dia 20 de agosto de 2025, frente às determinações do ministro do STF, ao desembarcar no Aeroporto Galeão, no Rio de Janeiro, Silas Malafaia prestou depoimento à Polícia Federal, teve o passaporte e o celular apreendidos e está proibido de sair do país (Ver: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/impedido-de-sair-do-brasil-malafaia-presta-depoimento-a-pf-no-galeao/).

Diante dos inúmeros debates realizados na esfera pública digital (Gomes, 2024) sobre a atuação do pastor Silas Malafaia, principalmente a partir do seu indiciamento e dos áudios publicizados das suas conversas com o ex-presidente Jair Bolsonaro, material que faz parte do relatório da Polícia Federal, destacamos a fala do jornalista Otávio Guedes da Globonews, canal de televisão por assinatura brasileiro do Grupo Globo: “Nesse contexto, não é religioso; ele é um agente 100% político. Você percebe, nas falas com Bolsonaro, que, além de não ter o tom esperado de um líder religioso, seja ele padre, pai de santo, pastor (…), há uma quantidade de palavrões e até um tom agressivo. Em nenhum momento ele menciona a Bíblia, Cristo, ou sequer faz uma saudação como ‘fica com Deus’. É um agente político e deve ser tratado como tal” (Disponível: https://www.youtube.com/shorts/SnVseUrDJ3E).

Diante do exposto, buscaremos apresentar uma reflexão em relação à atuação do pastor Silas Malafaia no campo político brasileiro. De certo modo, com todo respeito à opinião do citado jornalista, vamos argumentar que estamos tratando sim de uma atuação religiosa na esfera publica no Brasil e não apenas de uma atuação exclusivamente política. Demostraremos como o controverso líder religioso seria um tipo ideal (Weber, 1992) de “político de Cristo”: um religioso de uma nova geração que, a partir dos anos 1990, se constituiu em um contexto de explosivo crescimento pentecostal no Brasil e assumiu uma atuação mais sistemática e calculista na esfera pública. Malafaia enquanto um dos representes dessa tipologia assumiu um discurso moralista e desenvolveu uma repulsa aos “políticos evangélicos” tradicionais, acusados de transigirem em seus princípios morais para defenderem interesses próprios ou de grupos “incrédulos” (Campos, 2006).

Um exemplo dessa atitude está na rejeição à candidatura de Marina Silva a presidência da república em 2018 e a escolha de Jair Bolsonaro por líderes evangélicos de grandes igrejas brasileiras como aquele a ser apoiado nas eleições daquele ano (Ver: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/01/19/por-que-lideres-evangelicos-recusam-marina-e-podem-apoiar-bolsonaro.htm). Não bastava ser evangélica. Marina Silva foi acusada de ser “morna”, em sentido de não se dispor a promover pautas religiosas. No jargão evangélico, chamar alguém de “morno” é o mesmo que declarar essa pessoa como “rejeitada por Deus”, é uma alusão ao texto de Apocalipse 3.15,16: “Conheço as tuas obras, quem nem és frio nem quente. Quem dera fosses frio ou quente! Assim, porque és morno e nem és quente nem frio, estou a ponto de vomitar-te da minha boca”.

Esse tipo de articulação político-religiosa se constitui em uma práxis animada pela Teologia do Domínio (Dominion Theology), declarada ou não/consciente (Alvarenga; Lellis, 2025; Xavier, 2024). Tal Teologia é uma corrente teológica e política surgida em meio ao protestantismo fundamentalista estadunidense, especialmente a partir da década de 1970. No Brasil, ela tem sido apresentada em duas versões: 1) a versão pentecostal ou “Teologia dos Sete Montes” – que convoca os fiéis a retomar o controle de sete esferas de influência cultural: religião, família, governo, educação, mídia, arte/entretenimento e negócios; 2) a versão calvinista ou teonomismo reconstrucionista – que se inspira na crença de que há um “mandato cultural e político”, que conclama os fiéis não apenas a evangelizar indivíduos, mas também a transformar e submeter instituições (política, economia, educação, cultura, sistema jurídico e etc.) aos princípios bíblicos, além de defender que a sociedade seja reconstruída seguindo a orientação de princípios bíblicos. O reconstrucionismo é de autoria do pastor Rousas John Rushdoony (1916-2001), teólogo calvinista, que teve grande impacto na visão política do fundamentalismo religioso nos Estados Unidos. Ele e outros autores do neocalvinismo holandês como Abraham Kuyper (1837-1920) e Herman Dooyeweerd (1894-1977) são bastante difundidos entre pastores da Igreja Presbiteriana do Brasil, denominação na qual André Mendonça é pastor, o ministro do STF indicado por Bolsonaro por ser “terrivelmente evangélico”.

A atuação pública de lideranças religiosas na esfera publica no Brasil, tal como essa exercida por Malafaia, nos leva a reflexão a respeito do regime de laicidade, instituído a partir da Constituição de 1891, que estabeleceu a separação republicana entre Igreja e Estado. Entretanto, a constituição da esfera pública laica brasileira não resultou na privatização do religioso, assim como na exclusão mútua entre religião e política, o que implicou em fronteiras precárias e não demarcadas entre as mesmas, além de permitir ao sistema público/político a incorporação de estratégias/intervenções oriundas da esfera religiosa (Giumbelli, 2004). Dito de outro modo, a pluriconfessionalidade (Blancarte, 2011) brasileira não implicou no questionamento mais radical do papel das religiões na sociedade e das igrejas na definição de políticas públicas, tendência recorrente em parte significativa da América Latina, onde seus regimes políticos têm se sustentado, aberta e/ou veladamente, a partir da autoridade religiosa ou do poder sagrado (Blancarte, 2008).

Nesse sentido, instituíram no Brasil concepções móveis e situadas de laicidades com arenas políticas em que prevalece o reconhecimento desse regime “nunca combatido ou negado de forma explícita” (Camurça, 2017). Desse modo, se constata a crescente relevância e envolvimento de grupos e organizações religiosos nos assuntos públicos no Brasil. Isso se da seja nas políticas estatais, processos e debates legislativos e disputas/consultas judiciais, seja nas varias formas de mobilização e intervenção coletivas em debates públicos, doméstica e globalmente, com o fim de guiar ou impelir a opinião e a tomada de decisões em certas direções (Burity, 2015).

Essa publicização da religião se evidencia entre 1990-2023, quando se observa a ampliação da arena pública com a crescente participação dos evangélicos e o surgimento de novos atores na sociedade civil, sobretudo, a partir da irrupção dos movimentos identitários ligados aos movimentos feministas e LGBTQIAPN+. A partir das eleições de 1986 para a Assembleia Constituinte forma-se o que anos depois passou a ser denominada de bancada evangélica, constituída por 32 deputados eleitos. Nesse momento, está posta a politização desse segmento religioso, principalmente buscando visibilidade, reconhecimento público, legitimidade participativa, conforme as possibilidades de discursos democratizantes, assegurado naquele momento com o processo de redemocratização do Brasil. Por outro lado, parte dos coletivos evangélicos estava receoso que, na elaboração da nova Constituição (1986-1988), a liberdade religiosa e os valores conservadores estivessem ameaçados pela força do catolicismo, da esquerda e/ou coletivos laicistas (Burity, 2024).

Nessa perspectiva, podemos afirmar que o Pastor Silas Malafaia é um agente religioso que aderiu à lógica do sistema político e da busca pela “purificação” do mesmo. Além de exercer influência, não há mais princípio de separação entre a missão eclesial e o universo político. Por outro lado, há de se destacar o apoio às lideranças laicas, tais como Lula (2002) e Bolsonaro (2018), oferecendo ampla margem de poder de barganha nas negociações partidárias: apoio partidário, declaração de votos de igrejas e de organizações religiosas e o envolvimento explicito de lideranças eclesiásticas – exercício da sua influência religiosa para intervir na escolha eleitoral de seus fiéis, a “demonização” de forças políticas adversárias e sociais compreendidas como “ameaças”.

Dito de outro modo, estamos nos referindo a Silas Malafaia como um religioso político. Um agente que explicita sua pertença religiosa e vinculação institucional ao assumir candidaturas e cargos na esfera pública, que passou a instrumentalizar o capital político que sua vinculação religiosa pode render junto à igreja de origem, que tende a ser a primeira base eleitoral do candidato, pois “irmão vota em irmão”, engrossa a crescente onda conservadora (Almeida, 2019) e representam a capilarização das instituições às quais estão filiados.

A atuação religiosa-política de Malafaia demonstra a porosidade da sociedade e do sistema político em absorver certas estratégias/intervenções do mundo religioso. Apesar das reações de alguns grupos sociais, não há um debate mais amplo, motivado pelo estranhamento da ingerência de grupos religiosos na esfera pública. O Estado tem atendido certas plataformas religiosas e os agentes políticos têm destacado os benefícios destas articulações, sobretudo a partir do desejo de ingresso efetivo das denominações religiosas na vida política (Silva, 2019). Isso também impulsionou o desejo dos partidos políticos no “mercado de eleitores evangélicos” em franca expansão.

A partir da atuação política do Pastor Silas Malafaia, conforme vimos de forma recorrente no documentário Apocalipse nos trópicos, faz-se necessário ampliar o debate sobre o papel das instituições religiosas, através das suas lideranças, na sociedade e na definição de políticas públicas no Brasil. Precisamos refletir quanto a crescente relevância e envolvimento destes grupos e organizações nas políticas estatais, processos e debates legislativos e disputas/consultas judiciais, assim como nas várias formas de mobilização e intervenção coletivas em debates públicos.

A atuação política do líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo no campo político é uma ação orquestrada para cooptação do apoio das lideranças eclesiásticas às candidaturas laicas, à representação política, à nomeação de candidatos próprios, às coligações partidárias e ao desenvolvimento de uma narrativa marcada pela perspectiva minoritizada, isto é, de asserção coletiva de uma minoria (no caso, religiosa), pondo em xeque a distribuição dos lugares e da visibilidade na sociedade, começando pela demanda por reconhecimento da diferença religiosa encarnada por esta minoria – a minoria evangélico-pentecostal – e prosseguindo para articular demandas políticas (Burity, 2015).

Com investimento das candidaturas oficiais e nas filiações partidárias que garantem a intervenção parlamentar, Malafaia atua no campo político em defesa de interesses corporativos, pela intervenção nas votações de políticas públicas, pela visibilidade pública e salvaguarda da estrita moralidade cristã conservadora. O religioso adere a uma agenda político-religiosa que cada vez mais amplia a sua influência sobre as instituições do Estado democrático de direito, dentre estas os parlamentos nos quais as leis são elaboradas, promovendo restrições à laicidade do Estado e com consequente ampliação de privilégios que facilitem o crescimento numérico das igrejas evangélicas.

Referências

ALMEIDA, Ronaldo de. Bolsonaro presidente: Conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos estudos CEBRAP . São Paulo, V38, n. 01, p. 185-213, Jan.–Abr. 2019.

ALVARENGA, Leonardo G.; LELLIS, Nelson. “Teologia do domínio” e ressentimento: genealogia da relação entre religião e política a partir da história recente do Brasil. Reflexus. Ano XIX, n. 1, 2025.

APOCALIPSE NOS TRÓPICOS. Brasil, 2025, Documentário, 110 minutos. Direção: Petra Costa.

BLANCARTE, Roberto. América Latina: Entre pluri-confesionalidad y laicidade. Civitas, Porto Alegre, v. 11, n. 2, p. 182-206, maio-ago. 2011.

BLANCARTE, Roberto. Editorial: as Encruzilhadas da laicidade na América Latina. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 38(2): 1-340, 2018.

BURITY, Joanildo. A cena da religião pública: contingência, dispersão e dinâmica relacional. Novos Estudos CEBRAP, n.102, p. 89-105, JULHO 2015.

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BURITY, Joanildo. Minoritização, religião pública e populismo religioso no Brasil. REVER: Revista de Estudos da Religião, São Paulo, v. 24, n. 1, pp. 11-27, 2024: Dinâmicas religiosas e políticas: novos atores, novos contextos p. 11-27. Disponível: https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/65301/45458 . Acesso em 05 mar. 2025.

CAMPOS, Leonildo Silveira. Os políticos de Cristo – uma análise do comportamento político de protestantes históricos e pentecostais no Brasil. In: BURITY, Joanildo A. Burity; Machado, Maria das Dores Campos (orgs.). Os Votos de Deus: Evangélicos, política e eleições no Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2006, p. 29-89.

CAMURÇA, Marcelo. A questão da laicidade no Brasil: mosaico de configurações e arena de controvérsias. Horizontes, Belo Horizonte, v. 15, n. 47, p. 855-886, jul./set. 2017.

CARRANZA, Brenda. MODUS OPERANDI POLÍTICO DE EVANGÉLICOS E CATÓLICOS: CONSOLIDAÇÕES E INFLEXÕES. Debates do NER, Porto Alegre, ano 18, n. 32, p. 87-116, jul./dez. 2017.

GIUMBELLI, Emerson. Religião, Estado, modernidade: notas a propósito de fatos provisórios. Estudos Avançados, São Paulo, Brasil, v. 18, n. 52, p. 47–62, 2004. Disponível em: https://revistas.usp.br/eav/article/view/10023.. Acesso em: 2 set. 2025.

SILVA, Luís Gustavo Teixeira da. Laicidade do Estado: dimensões analítico-conceituais e suas estruturas normativas de funcionamento. Sociologias, Porto Alegre, ano 21, n. 51, maio-ago. 2019, p. 278-304.

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XAVIER, Donizete. Teologia do domínio: a influência religiosa e o perigo da imagem do caos. Teocomunicação, Porto Alegre, v. 54, n. 1, p. 1-11, jan.-dez. 2024.

[1] Professor Titular da UFS. Doutor em Sociologia pela UFPE. E-mail: periclesdcs@academico.ufs.br .

[2] Professor do PPGCR/UFS. Doutor em Sociologia pela UFS. E-mail: alexandrespn@gmail.com

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