sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Para que serve a ONU?

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 24 de outubro de 2025

Para que serve a ONU?

Aos 80 anos, a ONU deveria retomar suas prioridades originais, sintetizadas por seu segundo secretário-geral, Dag Hammarskjöld: ‘Não levar a humanidade ao paraíso, mas salvá-la do inferno’. Editorial do Estadão:

O mundo mudou demais para caber na Carta da ONU. Criada no rescaldo da 2.ª Guerra e sob a promessa de uma paz regulada por leis e instituições, a organização chega aos 80 anos com a autoridade moral corroída e a utilidade prática em dúvida. Sua história é a de uma ideia nobre que resistiu a todos os desastres – mas já não inspira confiança de que possa evitá-los no futuro.

A Assembleia-Geral virou um teatro de retórica, onde ditadores discursam sobre direitos humanos e democracias se calam para não constranger parceiros comerciais. O Conselho de Segurança, paralisado por vetos cruzados, segue preso ao mapa geopolítico de 1945, e não opera sobre o de 2025. A burocracia se multiplicou num festival de agências, comissões e secretariados – cada um com seu orçamento e “missão global” –, mas com pouca coordenação e quase nenhum resultado. Sob a retórica de “governança global”, instalou-se um ecossistema autossuficiente de carreiras, relatórios e conferências que perpetuam a instituição, não a reformam; multiplicam acrônimos – e fracassos. Em vários sentidos a ONU deixou de ser um árbitro e se tornou uma ONG de luxo, povoada por tecnocratas que acreditam poder mudar o mundo a partir de um parágrafo bem redigido.

Mais grave que a ineficiência é a seletividade moral. A ONU recrimina Israel com fervor ritual, mas fecha os olhos a atrocidades na China, em Cuba ou no Irã. O Conselho de Direitos Humanos é frequentado por ditaduras, e comissões “anticorrupção” abrigam regimes cleptocráticos. A organização fala em “diversidade” e “inclusão”, mas cede palanques a governos que perseguem minorias e criminalizam dissidentes. O discurso dos direitos humanos tornou-se instrumento de poder – manejado por quem os viola – e retórica de conveniência para diplomatas que confundem neutralidade com covardia.

Esse colapso ético reflete o colapso da própria ordem que a ONU pretendia sustentar. A era do multilateralismo dourado – quando as grandes potências ao menos fingiam cooperar – acabou. O sistema internacional entrou num estado hobbesiano de competição permanente. Os EUA já não querem e a Europa não consegue sustentar a ordem liberal. O vácuo é ocupado por autocracias assertivas, guerras regionais e democracias divididas. O mundo está menos governado por regras do que por ressentimentos – e a ONU, paralisada entre blocos rivais, é o espelho desse caos.

A tentação é descartá-la como relíquia. Seria um erro. Mesmo irrelevante em muitas frentes, a ONU continua indispensável em algumas, como ajuda humanitária, segurança alimentar, refugiados e cooperação científica. Ainda é o único fórum onde rivais podem falar antes de se enfrentar, e onde pequenas nações podem se projetar, ao menos simbolicamente, no concerto das potências. O problema não é o conceito de multilateralismo, mas sua inflação: querer que a ONU seja tudo é o que a impede de funcionar no que realmente importa.

Reformas amplas – como expandir o Conselho de Segurança, eliminar o veto ou redefinir mandatos – podem até ser desejáveis, mas são politicamente inviáveis. O caminho possível é o da modéstia: tornar a instituição mais transparente, enxuta, mensurável e responsabilizável. Estabelecer prioridades com base em evidências, não em slogans. Reavaliar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, cuja ambição utópica virou álibi para a ineficiência. Reduzir o palavrório e medir resultados: salvar menos causas, hierarquizando-as com eficácia. E, sobretudo, recuperar alguma credibilidade moral – começando por aplicar às ditaduras os mesmos padrões de julgamento que aplica às democracias.

A ONU octogenária é menos o símbolo de uma esperança do que o lembrete de um limite. As nações podem fracassar separadamente, mas só cooperando ainda têm chance de evitar o colapso coletivo. Reformar o possível, delegar o resto à simbologia – eis o máximo de idealismo que a conjuntura permite. Se quiser sobreviver à própria irrelevância, a ONU terá de provar que pode ser útil ao mundo que existe, não ao que sonhou em 1945 – e que ainda há espaço, mesmo nas ruínas do multilateralismo, para um mínimo de ordem diante do caos.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

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