terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Como os democratas reagem


--------------------------------------

Artigo compartilhado da revista [insightinteligencia], de São Paulo, maio de 2025.

Edição 110

Como os democratas reagem

Oscar Vilhena, Jurista

Armínio Fraga, Economista

No lançamento de um livro organizado em parceria com Oscar Vilhena e Rubens Glezer, o editor da revista descobriu, já em clima de descontração após o evento, que Oscar e Armínio Fraga eram amigos – amizade reforçada pela participação comum na articulação do ato de 11 de agosto de 2022, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Estamos falando do que talvez tenha sido o mais expressivo gesto da sociedade civil em defesa da democracia E contra o golpismo de Jair Bolsonaro. O editor que vos escreve convenceu-os, não sem esforço para vencer a modéstia de ambos, a oferecer este depoimento sobre os bastidores daquele episódio.

O resultado é um relato raro e precioso, que ultrapassa o registro histórico ao mostrar como, nos momentos de maior perigo, a sociedade pode se mobilizar para preservar a democracia – lição que jamais deve ser esquecida. Pois, como lembravam os antigos, o preço da liberdade é a eterna vigilância.

Christian Lynch

QUANDO A DEMOCRACIA TREME

A recente trajetória de avanços contra o estado democrático encontrou no Brasil um palco singular. Se, de um lado, víamos um empoderamento inédito de grupos sociais historicamente silenciados, de outro, passamos a acompanhar a reação virulenta de forças que se sentiram deslocadas de um espaço de hegemonia. É nesse ambiente de tensão que a retórica libertária se encontra com a retórica reacionária da extrema direita, fortemente militarista, se convertendo em ameaça concreta. As instituições civis passaram a ser colocadas à prova. Dadas as suas falhas e fragilidades, a disposição da sociedade em defender essas instituições também não se mostrou muito grande. As ambiguidades da democracia brasileira, sempre marcada pela oscilação entre inclusão e exclusão, atingiram um ponto crítico quando a retórica incendiária passou a se traduzir em ensaios de ruptura institucional. O que antes parecia apenas um jogo de palavras transformou-se em risco palpável. A democracia, até então testada no campo das ideias, passou a ser desafiada nas ruas.

DA SEMÂNTICA ÀS RUAS

A corrosão do pacto democrático, que vinha sendo alimentada por discursos distorcidos e por ataques sistemáticos às instituições, encontrou em Jair Bolsonaro o seu principal catalisador. O presidente transformou a retórica da liberdade em arma política. Gradativamente, sua retórica foi deixando de ser meramente simbólica para se tornar uma ameaça explícita e real. As linhas tênues entre palavra e ação começaram a se esgarçar perigosamente.

O 7 de setembro de 2021 é um marco dessa transição. Naquele momento, Bolsonaro disparou uma metralhadora giratória contra vários ministros do Supremo, inclusive passando um recado ao ministro Luiz Fux, então presidente da Corte, de que, se ele não enquadrasse os demais ministros do STF, algo precisaria ser feito. Ou seja: a crítica passou a ser ameaça. Ameaça oriunda de um presidente de matiz autoritária que a todo tempo incitava os militares contra os poderes civis. Nesse sentido, uma ameaça crível. Poucos dias antes, membros da Comissão Arns haviam conversado com a cúpula da segurança pública de São Paulo, para sentir a temperatura entre as forças policiais às vésperas do 7 de setembro, quando foi relatado que haviam determinado a prisão de um grupo de oficiais da PM e aquartelamento de tropas mais radicalizadas para eliminar qualquer risco de insurgência no 7 de setembro. Esse fato dá a dimensão das ameaças à estabilidade política naquele momento.

Havia a necessidade de se contrapor àquelas ameaças à democracia, cada vez mais evidentes. Em uma conversa com Neca Setúbal surgiu a ideia de reunir um grupo de pessoas comprometidas com a democracia, mas que viessem de distintos pontos e tivessem distintas trajetórias. Pessoas que tivessem interlocução com os mais diversos setores da sociedade e que pudessem contribuir para a melhor compreensão daquele momento, assim como com alguma capacidade de mobilizar esses distintos setores para reagirem aos riscos institucionais cada vez mais iminentes. Prontamente, figuras como José Eduardo Cardozo, Miguel Reale Jr., Raul Jungmann, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Sueli Carneiro e Patrícia Campos Melo aceitaram participar desse diálogo.

A primeira preocupação colocada por Neca Setúbal era a constituição de um grupo plural. Era preciso reconstruir as pontes de diálogo rompidas a partir de 2013. Os primeiros a serem chamados foram Miguel Reale Jr e José Eduardo Cardozo. Se aceitassem participar, teríamos um bom símbolo. Afinal foram os advogados que participaram, em lados opostos, do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Ver esses dois ex-ministros da Justiça unidos em torno de uma mesma causa, mobilizados contra uma ameaça maior, a de ruptura institucional, nos pareceu muito importante. Ambos toparam na hora, com muito entusiasmo. A partir de então, por volta de março de 2022, montamos uma rotina de reuniões remotas, quase sempre às sextas-feiras, para que pudéssemos compartilhar visões sobre a conjuntura política e institucional, assim como receber convidados que pudessem ampliar nossa compreensão sobre os eventos. O mais importante é que conseguimos formar um grupo heterogêneo do ponto de vista do perímetro de atuação e das valências de cada um. Alguns tinham bom trânsito junto a militares; outros, ao Supremo. Tínhamos também representantes do empresariado, da área financeira, assim como da academia e da área de comunicação.

O que se via a partir de um determinado momento era uma clara escalada dos ataques de Jair Bolsonaro à democracia. Em abril de 2020, ele faz aquela manifestação contundente em cima de um caminhão em frente ao Forte Apache. No ano seguinte, em março de 2021, outro fato marcante é a substituição simultânea dos três comandantes militares. No 7 de setembro de 2021, vieram os ataques e ameaças diretos ao Supremo e seus ministros. Em 2022, os ataques ficam ainda mais incisivos, notadamente a partir da reunião com embaixadores no Palácio do Planalto, em que Bolsonaro desfere uma série de inverdades contra o processo eleitoral e as urnas eletrônicas. Pouco depois, inclusive, tivemos um almoço com Josep Borrell, então alto representante da União Europeia para os Negócios Exteriores e vice-presidente para assuntos de Política Externa. Ele veio ao Brasil para uma série de conversas centradas nas ameaças à democracia. Isso dá a medida do impacto que a reunião de Bolsonaro com os embaixadores teve para a comunidade internacional, a ponto do vice-presidente da União Europeia vir ao Brasil para conversar com grupos da sociedade civil a fim de entender o que estava acontecendo. Certamente conversou com o governo e com outros setores da sociedade e da economia brasileira. Ainda no movimento de escalada de Bolsonaro, veio a abrupta substituição do representante militar na comissão criada pelo TSE para atestar a confiabilidade das urnas. Inicialmente, Luis Roberto Barroso havia convidado um almirante. Mas o Ministério da Defesa indicou um nome da sua confiança (o general de divisão Heber Garcia Portella). Some-se a isso o permanente processo de instrumentalização dos militares. Um general com quem conversamos nesses momentos de tensão cunha uma definição muito interessante: “Bolsonaro é um assediador dos comandos”. Esse mesmo general nos dizia que os altos-comandos das Forças Armadas estavam resistindo, mas não havia garantia de que seria possível segurar as patentes mais baixas em caso de alguma conflagração.

A VOZ FORTE DAS ELITES

Esse sentimento dentro das próprias Forças Armadas apenas reforçou entre nós o quanto seria importante um posicionamento da sociedade civil contra qualquer gesto de ruptura da ordem democrática. Foi nesse instante, em meados de 2022, que decidimos conversar com o presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva. Diríamos que esse foi um turning point para o grupo. Josué nos recebeu de braços abertos. Houve não apenas um imediato alinhamento de perspectivas, mas também de senso de urgência. Inclusive, Josué chegou a revelar que já estava pensando em liderar alguma iniciativa de demonstração de defesa dos tribunais. Essa posição, inclusive, custou muito a ele. A firmeza de Josué foi determinante para que a Fiesp assumisse, naquele momento, um papel de protagonismo em um momento delicado da vida nacional. Ele não se curvou a pressões que vinham de determinados grupos. O mesmo se diga sobre a Febraban. O presidente da entidade, Isaac Sidney, também se uniu prontamente ao movimento, em caráter pessoal inicialmente. O engajamento da elite empresarial e do setor financeiro, ao nosso sentir, era fundamental pelo seu potencial de dissuadir setores que eventualmente flertavam com a ideia de ruptura constitucional. Em 1964, além da ideologia e da bandeira do anticomunismo, os militares tiveram um respaldo de setores importantes da sociedade, como o empresariado. Portanto, o Exército era a representação de força dessa unidade nacional. Então, em 2022, era importante mandar para os militares a mensagem de que o empresariado e outros importante setores da sociedade não eram favoráveis a qualquer medida de exceção.

FARDAS

Os militares tinham uma antipatia muito grande por Fernando Henrique Cardoso, pelas reformas que o seu governo fez e por alguns benefícios perdidos naquele período. Mas com o tempo eles vão transferindo essa antipatia para a magistratura, ou para o “judicialismo”. Aquele tweet do então comandante do Exército, general Villas Bôas, na véspera do julgamento do Lula no STF, manda um sinal claro à sociedade brasileira de que o Exército não estava disposto a abrir mão para o Supremo de sua pretensa função moderadora da política brasileira. Aos militares caberia o papel de tutelar a democracia brasileira.

Em 2022 estava claro que havia muita pressão dentro do meio militar, inclusive da reserva e entre os mais jovens. Uma sinalização de Bolsonaro naquele momento e muitos desses militares poderiam ter ido na direção de um golpe. Nós mantivemos conversas com uma certa sistematicidade com secretários de segurança e policiais militares em alguns estados. As forças policiais, em São Paulo, pareciam razoavelmente contidas, apesar da enorme simpatia pelo então presidente. Mas havia uma preocupação com outros estados, como a Bahia. As polícias estavam “bolsonarizadas”, indicavam especialistas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, assim como policiais com quem conversamos. Qualquer levante em uma grande cidade criaria um clima de instabilidade e poderia chegar à decretação de uma operação de garantia da lei e ordem, levando o Exército a entrar em cena.

VS. TOGAS

Havia a percepção de que caminhoneiros poderiam ser o estopim e que as polícias não estariam dispostas a contê-los. Nós tínhamos realmente muito receio em relação às polícias estaduais e seu efeito gatilho sobre as Forças Armadas. Havia um ponto para o qual um colega acadêmico, com longa experiência em questões militares, nos alertava. O problema dos golpes é que eles não decorrem necessariamente de um longo e meticuloso planejamento ou mesmo de um apoio unânime dentro das Forças Armadas. Muitas vezes é um grupo, inclusive minoritário, que faz a insurgência e cria um dilema para o comando: combater quem faz a insurgência ou somar-se a ela para buscar controlar a rebelião, eventualmente mitigando as consequências do golpe. Ou seja: para que um golpe seja bem-sucedido não é necessário haver unanimidade. A questão central é um grupo ter a ousadia de começar um curto-circuito, como ocorreu em 1964. E, em 2022, esse curto-circuito poderia vir das ruas, dos caminhoneiros ou das próprias polícias estaduais, com o objetivo de provocar uma intervenção militar. É bom lembrar que começavam a surgir acampamentos de bolsonaristas em frente aos quartéis em todo o Brasil, exigindo uma intervenção militar. O 8 de Janeiro, inclusive, veio posteriormente a corroborar nosso temor: insurgência civil, com omissão das forças de segurança, criando uma situação de caos. Nossas conversas com pessoas próximas ou de dentro do meio militar mostravam que os altos-comandos não tinham a intenção de apoiar qualquer ruptura. Mas era um quadro frágil, em que só bastava uma guimba de cigarro perto do barril de pólvora…

O MANIFESTO

Nossa primeira ideia era elaborar uma carta em defesa do estado democrático de direito a ser assinada por organizações empresariais e da sociedade civil. Ao mesmo tempo, o professor Celso Campilongo, diretor da Faculdade de Direito da USP, é procurado por um grupo de ex-alunos com o objetivo de promover a leitura de uma nova carta aos brasileiros em 11 de agosto de 2022. Entendemos que seria interessante convergir as duas iniciativas. Poucos dias depois, em um almoço na Fiesp, a convite de Josué, chegamos à proposta final, convencidos de que o mais marcante seria a realização de dois grandes atos em defesa do Estado de direito no mesmo dia 11 de agosto. Um organizado em torno de entidades e outro dos cidadãos. Nós nos dedicamos ao ato das entidades. A partir de então, teve início um intenso trabalho para que o ato contasse com o mais amplo arco de representação da sociedade civil. Josué teve um papel extremamente relevante ao atrair outras entidades patronais para o manifesto. Paulo Vannucchi, da Comissão Arns, foi essencial para estabelecer um diálogo com o Fórum das Centrais Sindicais, coordenado por Clemente Lucio Ganz. Clemente contribuiu para trazer todas as grandes representações do sindicalismo. Paralelamente, houve uma articulação com organizações de defesa de direitos e um amplo espectro de movimentos sociais. Foi um daqueles momentos cívicos únicos, em que todos esses setores transcenderam os seus próprios interesses e conflitos e se uniram em defesa da democracia e do Estado de direito. Toda essa costura se deu sem qualquer confronto, sem qualquer imposição ou condicionante, por menor que fosse. Foi um momento muito significativo para a democracia.

À medida que se aproximava o 11 de agosto, havia uma tensão com relação à segurança do evento. Existia, sim, receio de que houvesse algum gesto de violência e ataque. Não era um ato aberto. Era preciso criar mecanismos de controle na entrada. Celso Campilongo e Ana Bechara conduziram todos os preparativos de forma exemplar junto à Secretaria de Segurança. Não foram tratativas simples. Em determinado momento, as autoridades disseram que não tinham como garantir a segurança dos presentes. As centrais sindicais chegaram a se prontificar a cuidar do esquema de segurança. No fim, a Secretaria de Segurança coordenou o trabalho de policiamento. Quem teve uma postura elogiável nesse episódio foi o então Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo e hoje secretário Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Mario Sarrubbo. Ao saber de nossos temores, Sarrubbo notificou a Secretaria de Segurança de que participaria da cerimônia, o que, de certa forma, impôs àquele órgão uma enorme responsabilidade de garantir o policiamento. Mesmo com toda a tensão que naturalmente cercava aquele momento, tudo transcorreu dentro da liturgia que aquele evento exigia, o que, por si só, já pode ser interpretado como um sinal de força da nossa democracia. Tivemos dentro do Salão Nobre a leitura do “Manifesto em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito Sempre”, feita pelo ex-ministro José Carlos Dias. Existia um acordo entre todas as lideranças que discursaram de que não haveria nenhuma fala partidária. Acordo que foi integralmente cumprido. No pátio, a leitura da “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito” foi realizada pelo ex-ministro do Superior Tribunal Militar, Flavio Bierrenbach, e pelas professoras da Faculdade de Direito da USP Eunice de Jesus Prudente, Maria Paula Dallari e Ana Elisa Bechara. E assim se deu, em 11 de agosto de 2022, em meio a toda ordem de ataques à democracia e ao Estado de direito um ato voltado a sinalizar nosso compromisso com a democracia e repúdio à tentativa de ruptura institucional que se encontrava em marcha.

As democracias liberais estão sob ataque. No Brasil e no mundo. A perda do soft power americano e a ascensão do poderio de países como China e Rússia são fenômenos preocupantes. Aqueles que têm compromisso com a democracia sempre olharam para os Estados Unidos ou para a Europa como dois modelos de democracia sólida, uma mais liberal, outra mais social, sólidas: os americanos, mais céticos sobre o papel do Estado; os europeus mais entusiastas, uns com uma rede de proteção social menor; outros, maior, mas ambos regimes democráticos de natureza constitucional, baseados no império da lei, no mercado e na primazia dos direitos fundamentais. Essas democracias foram capazes de melhorar a vida de suas populações, além de contribuir para a criação de uma ordem internacional pautada no multilateralismo e num conjunto de regras. O sistema de direitos humanos, os acordos de comércio internacional, os mecanismos de solução de conflitos e as inúmeras instituições multilaterais criadas a partir do final da Segunda Guerra certamente têm as suas deficiências, mas favoreceram a coordenação multilateral de inúmeros desafios.

Neste momento, todos esses regimes de coordenação se veem ameaçados. Vivemos um período de transição para algum modelo que ainda não sabemos como funcionará. É natural que haja, nesta circunstância, muita ansiedade e insegurança nas relações internacionais, no campo econômico, mas também muita insegurança sobre o destino dos regimes democráticos, que é o objeto central dessa conversa.

Muitas são as hipóteses que buscam explicar porque as democracias entraram em crise, que vão da ampliação das desigualdades (apesar do crescimento econômico), passando pela fragilização dos partidos políticos, dos sindicatos, da mídia tradicional, das organizações da sociedade civil e mesmo das universidades, como mecanismos de agregação de interesses e organização do debate público, e chegando ao crescimento das redes sociais, que têm contribuído para uma mudança profunda no modo como as pessoas passam a pensar a política. Com acesso mais amplo e direto a informações e possibilidade de veicular suas opiniões e encontrar outras pessoas que partilham de suas visões de mundo, sem a necessidade de instituições intermediárias, mudou o padrão de engajamento das pessoas. Esse processo tem levado a uma profunda desconfiança no sistema político, nas instituições públicas e nos agentes coletivos que desempenham um papel central na vida democrática. Na medida em que esse sistema político não atende a contento às expectativas das pessoas, vão crescendo a frustração e a desconfiança.

Ao mesmo tempo, muitas das mudanças de natureza social e cultural geram ressentimento por parte daqueles que se sentem derrotados. Não importa que de maneira geral a vida das pessoas possa ter melhorado nas últimas décadas. Os eventuais ganhos serão sempre mensurados em função daqueles que ganharam muito. Essas transformações geram um terreno fértil onde florescem lideranças populistas, movimentos reacionários e ideais antidemocráticos. Os populistas são aqueles que dizem: “Olha, eu vou ser o intérprete da sua vontade. Vamos abandonar os partidos, o Congresso, o Estado de direito, os meios de comunicação, porque esses são os entraves ao que você quer”.

UMA TORRENTE ANTILIBERAL

De toda forma, isso não significa necessariamente que estamos vivendo um momento puramente antidemocrático. As pessoas não querem abdicar do direito de decidir seus próprios destinos, ainda que possam estar tomando decisões que prejudiquem sua autonomia e bem-estar. Talvez estejamos, sim, vivendo um momento antiliberal, liberal no sentido mais puro do termo, em que a caixa de ferramenta do constitucionalismo, da separação de poderes, da democracia representativa, dos direitos humanos, do cosmopolitismo ético, esteja sendo abandonada, em favor de um certo majoritarismo nacionalista, excludente e antipluralista. Nesse sentido, muitos dos líderes da extrema direita reivindicam estarem lutando em defesa da democracia. Mas certamente estão falando de outro tipo de democracia, que não é a democracia constitucional. Vê-se uma apropriação seletiva do discurso democrático, em que as regras do jogo só valem quando favorecem o próprio campo; que a gramática dos direitos está sendo mobilizada apenas para defender alguns grupos e visões de mundo; e que o que se chama de liberdade, muitas vezes, é apenas o direito de impor a própria visão sem aceitar limites estabelecidos pelos direitos dos demais e mesmo pelos freios e contrapesos que asseguram o bom funcionamento de democracias constitucionais.

SÍSTOLES E DIÁSTOLES

Não seria incorreto afirmar que há uma demanda por maior participação nas últimas décadas, com o empowerment de diferentes grupos da sociedade, que antes ficavam à margem do processo político. Saímos de um modelo muito elitista, onde muito poucos detinham os instrumentos para dominar a política e tomar decisões, e estamos migrando para um espaço onde há maior acesso às informações. Mas isso não significa que essas informações tenham qualidade ou que contribuam para qualificar o debate público. As redes sociais têm um forte papel nessa transformação, goste-se delas ou não. Esse empoderamento abriu espaço para que comunidades historicamente marginalizadas se tornassem em atores políticos de fato, não apenas objetos de políticas públicas. Povos indígenas, movimentos negros, coletivos feministas, associações de trabalhadores informais, todos passaram a reivindicar não só direitos básicos, mas também participação efetiva nas decisões. A questão é que toda a ação provoca reação em força igual e contrária.

Assim, esse processo também tem gerado um enorme ressentimento por parte daqueles que perderam uma posição de hegemonia política, econômica, cultural e mesmo dentro do contexto familiar. Essas mudanças variam muito de país para país. Mas o fato é que muitas sociedades imergiram num processo de profunda transformação. A resposta a essa crise não veio necessariamente sob a forma de pedidos de fim da democracia, mas da tentativa de retomada da “posse” da democracia a favor dos grupos que historicamente ela sempre representou. Critica-se direitos universais, reivindicando um retorno aos “verdadeiros direitos”, aqueles “naturais”, ligados à nacionalidade, à propriedade e à liberdade. É por isso que nos surpreendemos que muitos líderes que reconhecemos como autoritários se apresentem como defensores da democracia; assim como grupos que por décadas desdenharam a gramática dos direitos humanos se apresentem agora como os defensores dos únicos e verdadeiros direitos.

OS PÊNDULOS DO JOGO DEMOCRÁTICO

No Brasil, muito embora o fenômeno desse novo populismo tenha levado Bolsonaro à Presidência e ampliado a participação de seus apoiadores em todas as esferas do Poder, isso não provocou uma adesão completa de outros setores conservadores, como eventualmente ocorreu nos Estados Unidos, onde o partido Republicano sucumbiu ao movimento MAGA. Aqui nosso Centrão clássico flertou, mas não sucumbiu à ideia de ruptura institucional. Sempre foi, no máximo, uma adesão instrumental. Para os setores mais pragmáticos de nossa elite política há uma percepção clara de que o ganho vem da continuidade do jogo e não da sua interrupção. Aliás, o que é a democracia senão uma adesão à regra do jogo? Esses atores não têm necessariamente um compromisso substantivo com a regras do jogo democrático, mas um compromisso instrumental. Isso levou a que o Congresso não tenha facilitado a vida de Bolsonaro; tanto que o ex-presidente foi obrigado a empregar um número enorme de medidas administrativas para conseguir governar. É importante destacar que a própria lei de defesa da democracia, agora aplicada a Bolsonaro e seus apoiadores, foi aprovada em 2021, por um Congresso Nacional bastante conservador, mas cioso de suas prerrogativas e interesses. Nossa direita pragmática viu na fragilidade de Bolsonaro uma oportunidade para extrair inúmeros privilégios e benefícios, na forma de emendas orçamentárias, por exemplo.

DESIGUALDADE, A ANTIDEMOCRACIA NA ESSÊNCIA

A questão de fundo no Brasil, no entanto, permanece sendo mais estrutural, tendo a desigualdade no seu centro. Como costuma dizer o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o Brasil não é um país pobre, mas um país injusto. Essa profunda e persistente desigualdade, que estrutura as relações sociais no Brasil, gera enorme instabilidade. A desigualdade e a baixa mobilidade social geram um constante mal-estar, agravando a tensão social e mesmo a violência. Fica uma porta sempre aberta para o conflito e a insurgência. Seja a insurgência de um populismo com pretensões includentes ou de um populismo de natureza excludente. Em 2013, por exemplo, tivemos uma crise causada por um sentimento de falta de legitimidade e de representatividade, pela frustração de que as principais promessas da democracia não foram cumpridas, para usar a expressão de Norberto Bobbio. De outro lado, havia um enorme ressentimento pelo que foi feito, pela conquista de direitos identitários e mesmo de direitos sociais. Acrescente-se a isso as questões da corrupção política, expostas pelo Mensalão e pela Lava Jato, e da falta de segurança, que torna bruto o cotidiano de largas parcelas da população. O sistema constitucional e suas instituições ficaram ensanduichados entre a frustração da esquerda e o ressentimento de direita. Isso gerou um enorme curto-circuito. Os dois segmentos da sociedade ficaram insatisfeitos com o sistema político por razões absolutamente opostas.

Há duas décadas, o referendo sobre o desarmamento já mostrava uma certa mudança no equilíbrio de forças presentes na política brasileira. Naquele momento, a direita experimentou pela primeira vez depois da redemocratização a possibilidade de ganhar uma eleição plebiscitária, com um discurso sobre liberdade. Ali foi construída uma narrativa da defesa da liberdade de portar armas, semelhante ao discurso empreendido pela direita norte-americana. Eles perceberam que podiam ganhar espaço na política brasileira adotando um tom “libertário”. A questão específica dos armamentos fortaleceu grupos que passavam abaixo do radar e futuramente iriam construir uma aliança com outros setores da direita. Esse fortalecimento não se deu com um discurso necessariamente antidemocrático, mas, sim, libertário. Foi o brado “armar o povo para defender a democracia”. Anos depois esses setores também incorporaram ao seu reportório discursivo a defesa de um modelo absoluto de liberdade de expressão, em linha com o discurso em defesa da Primeira Emenda da Constituição norte-americana.

O emprego do discurso libertário para, gradativamente, minar os direitos de natureza social e posteriormente as próprias liberdades constitutivas do Estado democrático de direito tem crescido não apenas no Brasil. Há uma crescente e perigosa ideia, difundida pela extrema direita, de que a democracia liberal é um regime de esquerda. Universidades, meios de comunicação ou organizações da sociedade civil, associadas ao discurso liberal, social, assim como identitários, transformam-se em alvos do discurso mais radical. Bolsonaro, assim como Trump e outros populistas, trabalha o tempo todo com o conceito de que o sistema está implantando uma ditadura. Consequentemente, é preciso ter um governo de salvação pública e de exceção para livrar o país dessa “ditadura” da esquerda. Afinal, todas as instituições estão querendo cercear a liberdade de expressão, assim como o verdadeiro pluralismo. No bojo desse discurso está a ideia de que o aparelho de Justiça ou, no caso brasileiro, o Supremo é um opressor da liberdade. A lição é cristalina: não há “neutralidade” possível diante de um projeto que usa a palavra liberdade, bem como as franquias asseguradas pela constituição, para implodir a própria democracia. Quem confunde tutela autoritária com salvação pública prepara o terreno para o estado de exceção permanente. Se as instituições vacilam, cabe à sociedade ocupar a linha de frente – com voz, voto, organização e vigilância cotidiana. A defesa da democracia é uma tarefa cotidiana. Em tempos que correm, ou a defendemos de pé ou assistiremos, de joelhos, a sua erosão.

Depoimento a Christian Lynch e Claudio Fernandez

Oscar Vilhena é diretor da FGV Direito São Paulo Oscar Vilhena@fgv.br

Armínio Fraga é sócio-fundador da Gávea Investimentos arminiof@uol com br

Texto e imagens reproduzidos do site: insightinteligencia com br/como-os-democratas-reagem

Nenhum comentário:

Postar um comentário