sexta-feira, 31 de outubro de 2025

John Maynard Keynes, o “santo padroeiro” do planejador central.

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 30 de outubro de 2025

John Maynard Keynes, o “santo padroeiro” do planejador central.

 Artigo de C. J. Maloney, publicado pelo Instituto Mises:

Conversando com um economista morto

“Keynes não era um democrata, mas via a si mesmo como um possível membro de uma elite governante iluminada.” — James Buchanan e Richard Wagner (1977)

A afirmação de que “agora somos todos keynesianos” já é um fato amplamente estabelecido e, se você tivesse conhecido o próprio homem, há grandes chances de que teria gostado dele. O barão John Maynard Keynes não é apenas o economista mais famoso e influente de nosso tempo, ele foi, provavelmente, o mais carismático de sua era. Formado em Matemática em Cambridge, Keynes era expansivo, generoso com os amigos, um conversador brilhante e, sem dúvida, um homem de gênio. No entanto, após ler seu magnum opus, A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, devo (com certa relutância) confessar que, do ponto de vista econômico, fiquei pouco impressionado. Reconheço que essa confissão me coloca no chamado “extremo lunático” da economia e, por isso, tudo o que posso fazer é pedir desculpas e apontar para o que está escrito.

Keynes inicia o livro afirmando: “as ideias aqui expressas com tanto esforço são extremamente simples”, e isso, de fato, é a mais pura verdade. Após percorrer quase quatrocentas páginas infladas e escalar montanhas de fórmulas matemáticas, o que resta é um simples apelo à inflação, o mesmo clamor que se ouve repetidamente desde o início da história monetária. A chamada “Revolução Keynesiana”, inaugurada por essa obra, nada mais fez do que desenterrar um cadáver e proclamá-lo como um recém-nascido; não se trata tanto de um tratado de economia, mas de uma proposta de política inflacionária, já que “não há outro remédio senão convencer o público de que queijo verde é praticamente a mesma coisa que dinheiro, e manter uma fábrica de queijo verde (isto é, um banco central) sob controle público”. Ter sido publicado em meio à Grande Depressão fez com que a promessa do livro de que, “se o dinheiro pudesse ser cultivado como uma colheita ou fabricado como um automóvel, as depressões seriam evitadas” se tornasse irresistível. E assim, A Teoria Geral foi recebida com hosanas.

Contudo, é preciso um alerta: A Teoria Geral possui uma reputação merecida de ser um livro notoriamente difícil de ler, pois Keynes esqueceu que o dever primordial de um escritor é a clareza. A leitura dá a impressão de ter sido escrita por alguém que tentou aprender o inglês, mas nunca chegou a dominá-lo completamente e o problema se agrava porque o estilo de Keynes pode ser descrito à semelhança do caixeiro da história “Três Anos”, de Tchekhov, aquele que “gostava de obscurecer sua fala com palavras eruditas, que entendia à sua própria maneira, e havia muitas palavras comuns que frequentemente empregava em um sentido diferente daquele que realmente possuíam”.

O livro é escrito de maneira tão descuidada que Keynes frequentemente parece confundir a si mesmo. Por exemplo, ele afirma que poupança e investimento são “duas atividades essencialmente diferentes”, mas, mais adiante, observa que “são apenas aspectos distintos da mesma coisa”. A obra está repleta dessas contradições que fazem o leitor franzir a testa, embora também proporcione algumas risadas involuntárias, como quando o autor comenta como uma “catástrofe como guerra ou terremoto” destrói o capital, para depois argumentar que “a construção de pirâmides, os terremotos e até as guerras podem contribuir para o aumento da riqueza”.

O que mais chama atenção nesse livro é sua atitude hostil em relação à liberdade de escolha e à propriedade privada. E, nesses pontos concretos do cotidiano, Keynes foi cristalino. A planificação central e a inflação são os heróis de seu sistema. A liberdade de escolha e a proteção da propriedade aparecem como vilões, e Keynes os ataca repetidamente com entusiasmo. Ele escreveu: “O equilíbrio, sob condições de laissez-faire, será aquele em que o nível de emprego é suficientemente baixo e o padrão de vida suficientemente miserável”. E ainda: “Essa conclusão perturbadora depende, é claro, da suposição de que a propensão a consumir e a taxa de investimento não são deliberadamente controladas pelo interesse social, mas deixadas, em grande parte, às influências do laissez-faire”. Keynes encerra o livro com um chamado que reflete bem o espírito de sua época: “Concluo que o dever de ordenar o volume corrente de investimentos não pode ser deixado com segurança em mãos privadas”.

Isso representaria uma enorme ampliação do controle político sobre a vida das pessoas, mas, segundo escreve Keynes, essa intervenção oferece uma promessa: “a poupança comunitária, por meio da ação do estado, deve ser mantida em um nível que permita o crescimento do capital até o ponto em que ele deixe de ser escasso”. Afinal, “(…) não existem razões intrínsecas para a escassez de capital” e, utilizando a “vontade comum, incorporada na política do estado”, seria possível fazer o capital fluir como água “em uma ou duas gerações”.

A fé de Keynes nos homens empregados pelo governo é tão ilimitada quanto sua desconfiança em relação àqueles que não o são, e ele tem a esperança de ver o estado, “(…) que se encontra em posição de calcular a eficiência marginal dos bens de capital a longo prazo e com base no interesse social geral, assumir uma responsabilidade cada vez maior pela organização direta dos investimentos”. O fato de Keynes ter tanta confiança nessa capacidade do estado apesar de argumentar, apenas quinze páginas antes, que “(…) devemos admitir que nossa base de conhecimento para estimar o rendimento de um investimento daqui a dez anos (…) é pequena e, às vezes, inexistente; ou mesmo daqui a cinco anos (…)” foi um dos momentos mais engraçados do livro. Mas existem momentos nos quais não é possível rir, mas sim reprovar.

É no último capítulo do livro, “Notas conclusivas sobre a filosofia social para a qual a Teoria Geral pode conduzir”, que se chega à fronteira que deve ser ultrapassada para chegarmos à utopia prometida. Assim como em outros sistemas políticos populares de sua época, os ricos são proibidos de entrar nesse paraíso vindouro. Keynes argumenta que, uma vez que suas conclusões eliminam a necessidade de existirem pessoas ricas para poupar dinheiro e financiar o crescimento futuro (tarefas que seriam assumidas pelo estado), então “uma das principais justificativas sociais para a grande desigualdade de riqueza é, portanto, removida”. Quanto aos financistas e empreendedores, Keynes insiste que estes “(…) certamente são tão apaixonados por seu ofício que seu trabalho poderia ser obtido por um custo muito menor do que o atual, sendo colocado a serviço da comunidade em termos razoáveis de recompensa”. As massas trabalhadoras, por sua vez, também devem se contentar com “termos razoáveis de recompensa”, pois Keynes deseja “(…) convocar a geração viva a restringir seu consumo, a fim de estabelecer, com o tempo, um estado de pleno investimento para seus sucessores”.

No agregado (para roubar um termo amado por Keynes), tudo isso se resume à planificação central dos investimentos, das rendas e do consumo da sociedade, o que significa que o estado será o grande capitão, atuando “…em parte por meio de seu sistema de tributação, em parte fixando a taxa de juros e, talvez, de outras formas”. E, imitando a promessa sem sentido marxista do “definhamento do estado”, que supostamente ocorreria quando “o povo” estivesse no poder, Keynes promete que, uma vez que a classe política passe a controlar todas essas decisões, “(…) a teoria clássica [isto é, o livre mercado] voltará a ter validade a partir desse ponto”. Embora seja inevitável perguntar: o que restaria nesse ponto? Aparentemente, não a liberdade de ter filhos, pois Keynes acrescenta outra promessa, que seu sistema estabeleceria a paz mundial, uma vez que as nações aprendessem “(…) a garantir pleno emprego por meio de sua política interna e, devemos acrescentar, caso também consigam alcançar equilíbrio na tendência de sua população”.

Keynes adoça essa utopia lamacenta prometendo que ela ainda será “bastante compatível com certo grau de individualismo”, mas insiste que o benefício trazido pela “eutanásia do poder cumulativo e opressivo do capitalista de explorar o valor de escassez do capital” é uma troca justa. Em nome da justiça, é verdade que Keynes afirmou, próximo ao final da Teoria Geral, que a perda da escolha individual, algo que ele próprio passara o livro inteiro defendendo que deveria ser severamente limitada, “é a maior de todas as perdas no estado homogêneo ou totalitário”, mas ele também fez questão de lembrar seus leitores (no prefácio da edição da Teoria Geral publicada na Alemanha nazista) de que as ideias contidas nesse livro tão celebrado “são muito mais facilmente adaptáveis às condições de um estado totalitário” do que o seriam “sob condições de livre concorrência e ampla prática de laissez-faire”.

O Keynes que escreveu A Teoria Geral não era um economista, mas sim um sonhador utópico, que afirmou que “a única cura radical para a crise de confiança que aflige a vida econômica do mundo moderno seria não permitir ao indivíduo qualquer escolha” sobre como dispor de seu próprio salário. Em troca, a chamada Revolução Keynesiana prometia um futuro livre de preocupações, no qual o estado tomaria decisões sempre sábias em nome do “povo”, permitindo que este desfrutasse de uma enorme quantia de consumo interminável, em um mundo despreocupado, onde o capital seria tão barato e abundante quanto o próprio ar que respiramos. Mas, e isso o leitor atento do livro deve perceber, ainda que o capital possa ser tornado “gratuito” em termos monetários, ele custará uma fortuna em outras formas de pagamento, muito mais valiosas.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

domingo, 26 de outubro de 2025

Afinal, quem manda neste país?

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 25 de outubro de 2025 

Afinal, quem manda neste país?

Um país que parece não querer existir. Artigo do professor Bolívar Lamounier para o Estadão:

Euclides da Cunha foi não apenas o grande ensaísta de Os Sertões; foi também um exímio analista político e um pensador que enxergava longe. É dele esta expressiva reflexão: “Somos um caso único de um país formado por uma teoria política. Estávamos destinados a formar uma raça histórica, através de um longo curso de existência política autônoma. Violada a ordem natural dos fatos, a nossa integridade étnica teria de constituir-se e manter-se garantida pela evolução social. Condenávamos à civilização. Ou progredir ou desaparecer”. Atualmente, só meia dúzia de obtusos ignoram que “nossa integridade étnica” está constituída. A maioria de nossa população é miscigenada. Nem pretos nem brancos. Pardos, na terminologia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cabe, no entanto, a dúvida: queremos mesmo formar uma “raça histórica”, ou seja, um país de verdade, uma civilização? Muitos fatos levam-nos a cogitar a hipótese contrária. Às vezes penso que não temos uma identidade nacional e não queremos ser um país com consistência própria. Que nosso desejo mais profundo seria afundar no mar.

Considerando que a nação mais rica do mundo, sob Donald Trump, desandou a flertar com o declínio, a hipótese nada tem de absurda. Menos absurda ainda se deitarmos uma vista d’olhos à Argentina, que chegou a ultrapassar vários países da Europa e atualmente se arrasta, como nós, numa “apagada e vil tristeza”.

Relembremos outros fatos internacionais pertinentes. Setenta anos atrás, ao fim da Segunda Guerra Mundial, a China continental era um país atrasado. Fizera sua revolução, rompera relações com a URSS, mas ainda não projetara um futuro de grande potência. Poucos dias atrás, anunciou um feito tecnológico extraordinário. Testou um engenho ferroviário – um trem – que corre sobre trilhos, mas sem tocá-los. Uma camada magnética o mantém sobre trilhos, mas suspenso, o que lhe permite atingir a velocidade de 600 quilômetros por hora. Como não sentir uma ponta de tristeza ao ler tal notícia e lembrar que a ligação São Paulo-Rio de Janeiro pelo trem-bala da “presidenta” Dilma Rousseff nunca saiu do papel? Dito de outro modo, acabamos com o pouco que tínhamos e nada fizemos de novo. Entupimos as grandes cidades de automóveis, já antevendo um dia em que as ruas se tornarão intransitáveis.

Vejamos outro aspecto: a educação. Despreocupe-se o prezado leitor, não vou insistir no fato de não termos uma universidade entre as cem melhores do mundo. Volto a 1944, a Reforma Capanema, uma das falcatruas da era Vargas. Foi por meio daquela reforma que se criaram as Escolas Técnicas de Comércio, com a função de conferir às famílias daquilo que chamamos de “baixa classe média” diplomas supostamente equiparáveis aos dos “ginásios”, cujas anuidades não estavam ao alcance de suas magras bolsas. Além de distribuir diplomas, o que essas escolas fizeram foi petrificar a distância entre a classe média “alta” e as “baixas”. Os despojados da vida tinham a vantagem adicional de poderem estudar à noite e trabalhar durante o dia. Batiam o ponto de entrada às 8 horas da manhã, o de saída às 18 horas, comiam uma rápida empada na esquina e tratavam de chegar a tempo à aula das 19 horas. Em outras áreas, os governos que temos tido talvez sejam razoáveis, mas confio em que os especialistas em educação me farão a gentileza de corrigir e atualizar o que acima se expôs.

A questão que tão cedo não se calará é quem, afinal, manda neste país. Sim, somos uma democracia, as instituições parecem funcionar. Temos há dois séculos a divisão entre Três Poderes recomendada por Montesquieu. Mas instituições, como sabemos, são uma superestrutura que pode ou não ser efetiva, dependendo de como são insculpidas no arcabouço constitucional e do comportamento dos titulares que se revezam em sua titularidade. Dia sim e outro também, os jornais nos informam que centenas de juízes e procuradores auferem salários vastamente superiores ao teto estipulado em lei. Na magna questão da desigualdade de renda e riqueza, o que vemos é menos do que pouco, nem poderia ser diferente, considerando que nossa renda per capita permanece estagnada naqueles aviltantes 2,5% anuais.

Qual é, então, a “teoria política” que nos plasmou, segundo o enunciado de Euclides da Cunha? A de uma “classe média” que mal se preocupa em perscrutar seus interesses de médio prazo, se no curto consegue se aboletar em cargos públicos? A de um “Centrão” que não é um partido político, mas é forte o suficiente para impedir a formação de partidos confiáveis e consistentes? O nome desse quadro só pode ser estagnação, retrocesso. Desde o movimento armado que desfechou o movimento denominado Revolução de 1930 e deu continuidade a uma industrialização razoável, mas não espetacular, como volta e meia se apregoa, o resultado é o que salta aos olhos: uma minúscula elite garroteando a riqueza nacional; uma classe média esquálida, devidamente incrustada na máquina do Estado, eis que desprovida de bases para crescer, e um amazonas de miseráveis, ex-escravos, desempregados e analfabetos.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Para que serve a ONU?

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 24 de outubro de 2025

Para que serve a ONU?

Aos 80 anos, a ONU deveria retomar suas prioridades originais, sintetizadas por seu segundo secretário-geral, Dag Hammarskjöld: ‘Não levar a humanidade ao paraíso, mas salvá-la do inferno’. Editorial do Estadão:

O mundo mudou demais para caber na Carta da ONU. Criada no rescaldo da 2.ª Guerra e sob a promessa de uma paz regulada por leis e instituições, a organização chega aos 80 anos com a autoridade moral corroída e a utilidade prática em dúvida. Sua história é a de uma ideia nobre que resistiu a todos os desastres – mas já não inspira confiança de que possa evitá-los no futuro.

A Assembleia-Geral virou um teatro de retórica, onde ditadores discursam sobre direitos humanos e democracias se calam para não constranger parceiros comerciais. O Conselho de Segurança, paralisado por vetos cruzados, segue preso ao mapa geopolítico de 1945, e não opera sobre o de 2025. A burocracia se multiplicou num festival de agências, comissões e secretariados – cada um com seu orçamento e “missão global” –, mas com pouca coordenação e quase nenhum resultado. Sob a retórica de “governança global”, instalou-se um ecossistema autossuficiente de carreiras, relatórios e conferências que perpetuam a instituição, não a reformam; multiplicam acrônimos – e fracassos. Em vários sentidos a ONU deixou de ser um árbitro e se tornou uma ONG de luxo, povoada por tecnocratas que acreditam poder mudar o mundo a partir de um parágrafo bem redigido.

Mais grave que a ineficiência é a seletividade moral. A ONU recrimina Israel com fervor ritual, mas fecha os olhos a atrocidades na China, em Cuba ou no Irã. O Conselho de Direitos Humanos é frequentado por ditaduras, e comissões “anticorrupção” abrigam regimes cleptocráticos. A organização fala em “diversidade” e “inclusão”, mas cede palanques a governos que perseguem minorias e criminalizam dissidentes. O discurso dos direitos humanos tornou-se instrumento de poder – manejado por quem os viola – e retórica de conveniência para diplomatas que confundem neutralidade com covardia.

Esse colapso ético reflete o colapso da própria ordem que a ONU pretendia sustentar. A era do multilateralismo dourado – quando as grandes potências ao menos fingiam cooperar – acabou. O sistema internacional entrou num estado hobbesiano de competição permanente. Os EUA já não querem e a Europa não consegue sustentar a ordem liberal. O vácuo é ocupado por autocracias assertivas, guerras regionais e democracias divididas. O mundo está menos governado por regras do que por ressentimentos – e a ONU, paralisada entre blocos rivais, é o espelho desse caos.

A tentação é descartá-la como relíquia. Seria um erro. Mesmo irrelevante em muitas frentes, a ONU continua indispensável em algumas, como ajuda humanitária, segurança alimentar, refugiados e cooperação científica. Ainda é o único fórum onde rivais podem falar antes de se enfrentar, e onde pequenas nações podem se projetar, ao menos simbolicamente, no concerto das potências. O problema não é o conceito de multilateralismo, mas sua inflação: querer que a ONU seja tudo é o que a impede de funcionar no que realmente importa.

Reformas amplas – como expandir o Conselho de Segurança, eliminar o veto ou redefinir mandatos – podem até ser desejáveis, mas são politicamente inviáveis. O caminho possível é o da modéstia: tornar a instituição mais transparente, enxuta, mensurável e responsabilizável. Estabelecer prioridades com base em evidências, não em slogans. Reavaliar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, cuja ambição utópica virou álibi para a ineficiência. Reduzir o palavrório e medir resultados: salvar menos causas, hierarquizando-as com eficácia. E, sobretudo, recuperar alguma credibilidade moral – começando por aplicar às ditaduras os mesmos padrões de julgamento que aplica às democracias.

A ONU octogenária é menos o símbolo de uma esperança do que o lembrete de um limite. As nações podem fracassar separadamente, mas só cooperando ainda têm chance de evitar o colapso coletivo. Reformar o possível, delegar o resto à simbologia – eis o máximo de idealismo que a conjuntura permite. Se quiser sobreviver à própria irrelevância, a ONU terá de provar que pode ser útil ao mundo que existe, não ao que sonhou em 1945 – e que ainda há espaço, mesmo nas ruínas do multilateralismo, para um mínimo de ordem diante do caos.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Putin, Gaza, Trump e as lentes com que lemos o mundo

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 22 de outubro de 2025

Putin, Gaza, Trump e as lentes com que lemos o mundo.

Compreender é sempre um ato de visão. Cada época constrói as suas lentes. As nossas, temo, estão partidas. Basta ligar a televisão: dezenas de especialistas a “verem” coisas opostas no mesmo cenário. José António Rodrigues do Carmo para o Observador:

Há ideias que funcionam como instrumentos ópticos do espírito. Usamo-las e, através delas, vemos o mundo.

Claude Lévi-Strauss, o antropólogo que descobriu que o selvagem e o civilizado têm a mesma estrutura mental, dizia que, para interpretar o mundo, uma época, uma nação ou uma guerra, é preciso usar uns óculos especiais. Não falava de vidro e armação, mas de uma metáfora: a teoria como instrumento de visão e prótese da mente. O homem sem teoria sobre a realidade é como o míope que confunde vultos com demónios; reage, mas não compreende.

Estes óculos, dizia Lévi-Strauss, são indispensáveis, mas distorcem. Toda a lente é também um véu. E o drama contemporâneo consiste talvez nisto: já não sabemos que lentes usar. O excesso de imagens, o rumor incessante das redes, a saturação de notícias e de interpretações, tudo nos ofusca e baralha. O homem actual não é cego: é deslumbrado. Vive numa feira de ópticas: tem muitas lentes e não sabe qual usar

A ideia de ler o presente através de uma lente não é nova. Em meados do século XIX, Alexis de Tocqueville via a história como um rio de democracia: lento, majestoso, inevitável. Karl Marx, mais impaciente, via o mesmo panorama através de um outro cristal: um rio de sangue proletário, destinado a purificar o mundo. A revolução proletária, inelutável, que dissolveria as classes e instauraria a justiça.

Durante dois séculos, sucessivas gerações olharam e “compreenderam” o mundo através dessas lentes. Com elas fizeram guerras, revoluções, tratados e telenovelas políticas. Estarão gastas? Ter-se-ão partido sem que déssemos por isso?

No fim do séc. XX, Samuel Huntington apresentou um novo par de óculos: o mundo como um mosaico de civilizações em atrito, a ranger nas fronteiras das suas placas tectónicas. Foi, talvez, o último a tentar um olhar panorâmico. Parecia um geólogo com alma de profeta. Mas as suas lentes foram rejeitadas por muitos. Zapatero, Erdogan, Jorge Sampaio, etc. Depois dele, regressámos à fragmentação, à miopia, ao microscópio das redes sociais. Hoje, temos numerosos míopes e falar como se tivessem telescópios.

E nos laboratórios académicos da actualidade, voltou uma moda vintage: os óculos de Carl Schmitt, fabricados nos anos trinta, com ares de militar e cheiro a pólvora. A sua biografia, de sombra espessa, não apaga a lucidez desconfortável das suas ideias. Schmitt dizia que a política não é o debate entre direita e esquerda, mas o confronto entre amigo e inimigo. As colectividades só se unificam quando se reconhecem contra alguém. Não há sociedade sem ódio partilhado, nem povo sem inimigo. O cimento da política não é o amor, mas a hostilidade organizada.

A fórmula é brutal, mas tem poder explicativo. Mourinho e Pinto da Costa compreenderam isto sem nunca lerem Schmitt: nenhuma equipa prospera sem adversário odiado. Os extremos, na política, vivem da hostilidade a tudo o que detestam.

O mesmo sucede às nações. Portugal nasceu contra o mouro, contra o castelhano e, às vezes, contra si próprio. Até a ideia de “palestiniano”, inexistente há meio século, floresceu da oposição a Israel. Nada une mais do que o outro

Olhemos Putin. O seu programa não é apenas a reciclagem de uma velha doutrina geopolítica, é sobretudo um reflexo imperial: reforçar o poder, unificar as hostes e definir o inimigo. Putin é schmittiano por instinto e desagua tranquilamente nas lentes de Huntington: o inimigo é o Ocidente encarnado, na circunstância presente, pela Ucrânia. Essa designação anestesia o povo. Produz coesão, obediência, fé.

Xi Jinping repete, em mandarim, o mesmo guião: o Ocidente como ameaça, a dissidência como traição. Schmitt sorri do túmulo: tinha razão.

Mesmo Trump, que dificilmente terá lido uma linha de filosofia política, age como se tivesse nascido schmittiano. O seu programa é uma lista telefónica de inimigos nomeados. O inimigo é o eixo do seu pensamento. E resulta.

Na Europa, velha e tonta senhora, à deriva entre o enfarte woke, a amnésia liberal, e as memórias de antigos faustos, permanece a ideia da democracia liberal, que Schmitt julgava arcaica, porque hesitante. O parlamentarismo, dizia ele, é uma conversa prolongada enquanto o mundo arde. A última performance da orquestra do Titanic. A sua crítica tinha uma lucidez sinistra: num mundo em convulsão, o poder que discute é devorado pelo poder que decide e age.

Se Schmitt tem razão, ou parte dela, a velha dicotomia direita e esquerda é já arqueologia política. A verdadeira escolha é entre duas formas de organizar a energia humana: a que precisa de um inimigo e a que procura um projecto comum. A primeira é eficiente; a segunda é civilizada. Por isso, talvez, o liberalismo pareça frágil: não sabe odiar com método e não identifica prontamente o inimigo

É verdade que a história confrontou Schmitt com uma refutação tardia. Foram as democracias liberais (os Estados Unidos, a Europa Ocidental) que, com o velho parlamentarismo e o tédio das assembleias, venceram os impérios totalitários. Foi um triunfo lento, inseguro e talvez efémero, mas um triunfo. O liberalismo, que parecia condenado, acabou por derrotar o seu inimigo não porque o designou, mas porque o entendeu. Porque usou as lentes adequadas.

Os liberais, ingénuos crónicos, acreditaram durante demasiado tempo que se podia negociar com monstros, até compreenderem que era preciso lutar. Hoje repetem o mesmo erro com Putin, com o islamismo político e talvez com o Celeste Império. Schmitt pode ter-se enganado no fim da história, mas raramente se engana no princípio.

Voltemos, então, a Lévi-Strauss. É preciso pois usar óculos, mas saber quais. Precisamos de lentes mais subtis, mais complexas, que nos permitam ver o outro sem o transformar numa caricatura, como alguém que compreende o poder de modo diverso: não como relação, mas como domínio.

Ler Schmitt é como ler Maquiavel: perigoso, mas indispensável. Maquiavel ensinou os príncipes a governar sem culpa e os súbditos a desconfiar sem esperança. Rousseau viu nele, paradoxalmente, um democrata que advertia o povo contra os príncipes. Talvez Schmitt mereça igual paradoxo: o maior inimigo da sua própria teoria.

No fim, compreender é sempre um acto de visão. E cada época constrói as suas lentes. As nossas, temo, estão partidas. Basta ligar a televisão: dezenas de especialistas a “verem” coisas opostas no mesmo cenário.

O problema do nosso tempo não é a falta de visão: é o excesso de olhares. Cada um construiu o seu universo a partir das suas lentes e chama-lhe verdade. E a verdade é simples, quase vulgar: quem não vê com as lentes certas, está perdido, e arrasta o mundo consigo.

Texto e imagem do blog: otambosi blogspot com

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Reinaldo e Walfrido ENTREVISTAM Ricardo Kotscho

A liberdade de expressão tem lados?

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 20 de outubro de 2025

A liberdade de expressão tem lados?

A forma certa de responder a palavras de que discordamos é com outras palavras que as contradigam. A resposta às palavras de que discordamos não é agressividade física mas sim outras que as contrariem. Vicente Ferreira da Silva para o Observador:

1 Não sei se estamos na Stranger Things ou na Twilight Zone? Inclino-me mais para esta última. Mas talvez seja melhor englobar as duas e dizer Stranger Zone. Porquê? Porque devemos estar numa espécie de realidade alternativa ou num universo paralelo onde vemos a direita a fazer exactamente o mesmo que criticava à esquerda há quarenta, trinta, vinte ou dez anos: dois pesos e duas medidas – o que é dito por uns e que não vale nada para alguns, passa a valer tudo quando é dito por nossos. É a tal democracia das claques!

Não há lados na liberdade de expressão. Ou há liberdade de expressão ou não!

Quando alguém só defende as ideias de que gosta e apoia a limitação ou proibição das restantes ideias, não está a defender a liberdade de expressão, nem tampouco a democracia. Que não haja enganos!

2 O pensamento marxista (e das suas variações) é, desde a sua origem, binário e dogmático. Na ex-URSS, tudo era controlado. Principalmente, a conformidade do pensamento com os ditames doutrinários. Por exemplo, a teoria da relatividade foi atacada por entrar em conflito com o materialismo histórico; a antropologia soviética só reconhecia como legítima e verdadeira a perspectiva marxista; e na medicina defendia-se a pureza da teoria marxista-leninista nas cirurgias.

Ora, esse dogmatismo também significou que o marxismo era não evolutivo e que sujeitava tudo, incluindo a moral. Lenine expressou-o quando afirmou, no discurso proferido no III Congresso Russo da Liga dos Jovens Comunistas, que “a nossa moral está inteiramente subordinada aos interesses da luta de classes do proletariado”. Ou seja, não havia limites ou acções para a preservação e a prevalência dos interesses da luta de classes do proletariado. Em verdade, sabemos que ele se referia aos interesses do partido comunista russo.

O tempo passou e o mundo mudou. Mas as intenções permaneceram. Tendo a esquerda perdido o confronto económico e político, virou-se para a vertente cultural. Contudo, as intenções mantiveram-se. Daí que o escabroso e inqualificável populismo cultural que a esquerda alimentou durante anos, incentivando discriminações, divisões, discórdias, tenha mantido uma aura moral e se consubstanciado numa verdade inquestionável. O wokismo e a cultura do cancelamento exemplificam-no.

3 Tal como a extrema-esquerda, agora é a extrema-direita que se considera dona da moral e da verdade, defendendo posições inacreditáveis. Tudo o que diz, mesmo que seja discurso de extremismo ou de radicalismo, e até mesmo de ódio, é aceitável e aplaudido. Assim, passámos do exclusivo dos santos e da santidade à esquerda vs pecadores e da profanidade à direita para o seu inverso. Este é o tipo de postura binária que destrói a democracia.

Há uns anos, qualquer pessoa da direita, incluindo os que eram convidados para expor as suas ideias em debates ou em eventos da esquerda, não tinham hipótese sequer de falar, pois assim que apareciam no palco, começava uma barulheira tal que não permitia que falassem. Hoje, a direita, para além de fazer a mesma coisa, também tem uma política de cancelamento. Para os mais cépticos, eis uma lista com alguns dos livros banidos ou cancelados nos EUA. Pela esquerda e pela direita:

To Kill a Mockingbird, Harper Lee

Little House on the Prairie, Laura Ingalls Wilder

Adventures of Huckleberry Finn, Mark Twain

Of Mice and Men, John Steinbeck

And to Think That I Saw It on Mulberry Street, Dr. Seuss

On Western Terrorism, Noam Chomsky

Gender Queer, Maia Kobabe

All Boys Aren’t Blue, George M. Johnson

The Bluest Eye, Toni Morrison

Nineteen Minutes, Jodi Picoult

Lawn Boy, Jonathan Evison

A única diferença são os alvos. A direita concentra-se no banir livros que abordem sexo, LGBTQ+, “conceitos divisivos”, obscenidades, etc., e a esquerda focaliza-se no racismo, islamofobia, culturalismo e afins. Mas convém não esquecer que autores clássicos como Aristóteles, Ovídio, Shakespeare, entre outros, também são alvo de cancelamento. Resumindo, parece-me inquestionável que o cancelamento é transversal. Porquê? Simples. A imposição de um entendimento de moral.

4 As ideias combatem-se com outras ideias. Nunca pela supressão! A forma certa de responder a palavras com que discordamos é com outras palavras que as contradigam. A resposta às palavras com que discordamos não é agressividade física, mas sim outras palavras que as contrariem.

Recentemente, alguns activistas foram notícia por rasgar exemplares do livro do Henrique Cymerman. Inevitavelmente, encontramos, à direita ou à esquerda, este tipo de puristas incapazes de ser tolerantes, nem de respeitar a diversidade e a pluralidade de opinião.

Dizem-se arautos do bem e da liberdade, mas agem como se fizessem parte do Ministério da Propaganda de Goebbels ou do Glavlit soviético. Se preferirem, estes activistas tinham futuro na Direção-Geral dos Serviços de Censura, e até na PIDE, de Salazar – a escolha fica ao critério de cada leitor.

Não se defende a liberdade, nem as ideias contrárias às nossas, com censura ou proibição, queima ou rasgar de livros:

*As ideias são confrontadas através do diálogo, recorrendo a argumentos fundamentados em factos, lógica e evidências, visando identificar fragilidades em concepções problemáticas e propor alternativas mais robustas e consistentes.

*Em vez de se censurar, proibir ou cancelar, o que deve ser feito é expor as ideias à crítica aberta e oferecer melhores alternativas, preservando a liberdade de expressão.

*O objectivo é fazer com que as pessoas pensem criticamente.

5 Estou farto deste tipo de imbecis, quer da esquerda, quer da direita, pseudo-defensores da liberdade que não passam de extremistas sem capacidade para distinguir conceitos. Infelizmente, cada vez mais pululam por aí.

Como firme defensor do pluralismo, para além de aceitar e respeitar a diversidade de pensamento, nunca acreditei na proibição de qualquer ideologia (mesmo as que defendem coisas inqualificáveis), por muito má que possa ser. A principal diferença entre o nazismo e o comunismo era apenas um grau (ainda bem que já não existe a Alemanha nazi nem a Rússia soviética). Por isso, por mais que considere alguns livros repugnantes, não me arrependo de os ter lido. Penso, por exemplo, que devia ser obrigatório ler, entre outros, o Manifest der Kommunistischen Partei, o Mein Kampf e o The Constitution of Liberty. Para depois perceber os contextos que cada um origina. É a ler ideias contrárias que se aprendem as diferenças.

Tolerância implica permitir aquilo com que não se concorda e não apenas aquilo que defendemos ou que preferimos. Pessoalmente, não gosto do termo tolerância por pressupor condescendência. Prefiro, pura e simplesmente, aceitar que os outros sejam diferentes de mim e que possam pensar de outra maneira. Tal não me impede que forme uma opinião critica, assim como os outros formarão a meu respeito. Mas uma opinião critica não é um juízo de valor.

Cada vez mais aprecio a sabedoria de Bertrand Russell…“A essência da perspectiva liberal na esfera intelectual é a crença de que a discussão imparcial é útil e que os homens devem ser livres de questionar o que quer que seja se puderem fundamentar o seu questionamento em argumentos sólidos. A visão oposta, defendida por aqueles que não podem ser chamados de liberais, é que a verdade já é conhecida e que questioná-la é necessariamente subversivo.”

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

O dia em que estive no bunker de María Corina Machado

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 10 de outubro de 2025

O dia em que estive no bunker de María Corina Machado

A ganhadora do Prêmio Nobel da Paz deste ano já defendeu que Maduro pudesse ser destituído pela força. Diogo Schelp para a Veja:

A primeira vez que entrevistei a venezuelana María Corina Machado, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz de 2025, foi há 20 anos, mais precisamente em dezembro de 2005. Na ocasião, ela compunha o quadro de diretores da Súmate, uma ONG dedicada a defender eleições livres e justas em meio à escalada autoritária do então presidente Hugo Chávez. Engenheira, María Corina ainda era pouco conhecida da comunidade internacional — e mesmo da maioria da população venezuelana. Ela decidira criar a organização com Alejandro Plaz, também engenheiro e diretor da consultoria McKinsey, três anos antes, convicta de que para garantir alternância de poder no país seria preciso incentivar a participação política dos cidadãos e monitorar o processo eleitoral para evitar fraudes e garantir condições justas para todos os candidatos.

O ano de criação da Súmate, 2002, representou um ponto de inflexão na trajetória de Chávez. Depois dos conturbados primeiros anos de sua presidência, ele sofreu uma tentativa de golpe em abril. María Corina é acusada até hoje de ter apoiado o golpe, algo que ela nega. Reconduzido ao poder, inclusive com suporte do então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, Chávez passou a usar o episódio para perseguir a oposição e para aperfeiçoar os meios de fraudar os resultados eleitorais. Foi a partir de então que efetivamente começou a se desenhar a ditadura chavista.

Em 2005, quando estive no escritório da Súmate em Caracas, Alejandro Plaz e María Corina me contaram sobre as falcatruas no sistema eleitoral venezuelano. Por conta das denúncias que faziam, eram perseguidos pelo chavismo já naquela época. Ambos estavam sendo processados por “conspiração”: o crime foi ter aceito cerca de 30.000 dólares de doação de uma ONG americana de promoção da democracia. Os dois estavam pessimistas, pois o juiz era chavista. O relato foi publicado na edição de VEJA de 14 de dezembro de 2005.

De todos os líderes da oposição venezuelana que entrevistei nos anos seguintes, María Corina foi a que mais angariou apoio da população e a única que permanece na Venezuela até hoje, ainda que na clandestinidade para não ser presa. Um deles, o general Raúl Baduel, morreu nas masmorras do regime. Outros acabaram escapando para o exílio.

Em 2015, tive a oportunidade de ver de perto a expertise de María Corina e de sua rede de apoiadores em fiscalizar eleições problemáticas. Na pleito legislativo daquele ano, recebi autorização para acompanhar o trabalho dela e de sua equipe durante todo o dia de votação, desde cedo até o fim da tarde. Na sede do seu partido, o Vente Venezuela, funcionava o bunker de María Corina. No subsolo, estavam instalados computadores e dezenas de celulares por meio dos quais um grupo de especialistas recebia informações de observadores espalhados por praticamente todas as seções eleitorais do país.

Quando as urnas fechavam, os dados de cada ata de votação eram repassados para o bunker e compilados para, depois, fazer frente aos resultados que seriam anunciados pelo regime chavista. No andar de cima da casa, María Corina fazia reuniões e concedia entrevistas. Um trecho em vídeo da conversa que tive com ela naquele dia foi publicado no Facebook de VEJA e está disponível aqui.

O método de monitoramento das eleições e de fiscalização das atas das urnas se provou extremamente eficiente naquele ano. A oposição tinha reunido evidências tão concretas e tão rápidas da derrota do regime, que Nicolás Maduro, sucessor de Chávez, não teve outra alternativa a não ser reconhecer o resultado do pleito. Os candidatos de oposição haviam conseguido uma maioria acachapante para a Assembleia Nacional. Pouco mais de um ano depois, Maduro deu um jeito de tirar os poderes do parlamento.

Com o passar dos anos, ficou claro que seria praticamente impossível afastar Maduro do poder por meio do voto. María Corina, em diversos momentos, defendeu que ele pudesse ser destituído por pressão externa, e até pela força. Em uma entrevista que fiz com ela em 2019, essa ideia não podia ter sido colocado de forma mais enfática. “O que é inaceitável para o povo da Venezuela é que Maduro permaneça no poder. Os dias de Maduro no poder não se contam em horas, se contam em mortos”, respondeu Maria Corina quando lhe perguntei se uma intervenção militar dos Estados Unidos era uma solução aceitável para o povo venezuelano.

E, quando lhe perguntei quando chegaria o momento de recorrer a uma intervenção militar, ela retrucou: “O momento certo já passou há muito tempo. Cada dia que passa, o custo será maior. Não apenas em vidas, pelas mortes que acontecem enquanto Maduro permanece no poder. Mas porque os grupos criminosos estão se expandindo e ocupando território venezuelano.”

María Corina ainda tentou, mais uma vez, recuperar a democracia na Venezuela pelas urnas. Escolhida em 2023 para representar a oposição na eleição presidencial que ocorreu no ano seguinte, ela foi impedida por ordem do regime de concorrer. Indicou um substituto, Edmundo González Urrutia, que apesar de desconhecido deu uma surra em Maduro nas urnas — simplesmente por carregar o peso do apoio popular de María Corina. Em mais uma fraude eleitoral, a vitória da oposição foi negada (apesar de, mais uma vez, os métodos de monitoramento de atas de urnas terem produzido provas contundentes da vitória da oposição).

A coragem política e pessoal de María Corina Machado é inegável. Assim como não há dúvidas de que sua aspiração seja devolver a democracia e o progresso econômico ao seu país. Em mais de 20 anos lutando contra um regime autoritário, porém, nem sempre a via pacífica foi aquela que a Nobel da Paz deste ano avaliou ser a mais viável.

Texto e imagemreproduzidos do blog: otambosi blogspot com

Primeiro balanço: dois lados comemoram, ganha-ganha para Israel e Gaza.

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 10 de outubro de 2025

Primeiro balanço: dois lados comemoram, ganha-ganha para Israel e Gaza.

Mesmo com tantas coisas boas acontecendo, não dá para esquecer o horror do passado recente nem dos enormes desafios que estão pela frente. Vilma Gryzinski: 

O acordo de cessar-fogo, o início da retirada israelense e a iminente libertação dos reféns estão criando um clima de alegria e comemoração quase sem precedentes no Oriente Médio. Ninguém ignora as complicações que ainda virão, mas é emocionante ver judeus e árabes com o mesmo sentimento de alegria.

Coincidentemente, o acordo de paz acontece quando os judeus comemoram o Sucot, a Festa dos Tabernáculos no calendário cristão, um raro feriado judeu em que só há motivos para regozijar, sem escaoacar um passado de milênios de perseguições. Os tabernáculos são uma referência às tendas em que os israelitas viviam quando enfrentaram a travessia do deserto – daí as pequenas cabanas que os religiosos montam durante o Sucot. O próprio templo do Deus de Israel era assim improvisado, com lonas montadas em caibros de madeira, num sinal de como seu povo tinha tão pouco – e conseguiu fazer tanto, em termos de influência sobre a futura sociedade ocidental.

No Evangelho segundo João, diz Jesus durante a Festa dos Tabernáculos: “Quem tem sede, venha a mim e beba! Pois as Escrituras declaram: Rios de água viva brotarão do interior de quem crer em mim”.

Peregrinos cristãos comemoraram estas palavras em Israel, saudando também o acordo de paz. Os que se alegram estarão decepcionados muito em breve, como tantas vezes aconteceu antes?

Um balanço dos principais desdobramentos dá motivos para as duas visões, a otimista e a pessimista. Alguns de seus pontos principais:

*Vinte reféns vivos serão libertados até segunda=feira. Em que estado chegarão? Vídeos de propaganda do Hamas mostram que vários deles estão ainda mais devastados do que os libertados anteriormente, muito tendo perdido quase a metade do peso corporal e a capacidade emocional de suportar o tormento.

*Apesar da experiência inenarrável, de modo geral o estado dos ex-reféns é bom, com uma notável capacidade de resistência interior. O caso mais impressionante talvez seja o de Eli Sharabi, que escreveu um livro sobre seu período em cativeiro e como viveu com horror o que deveria ter sido o melhor momento de sua vida: assim que foi libertado, uma assistente social da equipe de recepção disse que a mãe e a irmã o esperavam. E a mulher e as duas filhas adolescentes? Tão logo fez a pergunta, Sharabi intuiu a resposta. Tendo sobrevivido em nome da família, entendeu que as três haviam sido assassinadas – seu irmão também foi morto. Posteriormente, Sharabi concluiu que não adiantaria nada ficar em casa chorando a perda.

*Os futuros libertados estão nos túneis de Gaza há mais de 730 dias. É quase impossível imaginar sua condição.

*Sua famílias e amigos lutaram por eles a cada minuto desses dois anos. Algumas vezes, perderam a mão, como ao culpar inteiramente Benjamin Netanyahu pela persistência do inferno exatamente o que o Hamas queria. Mas a força de seus protestos foi um fator fundamental para que a questão permanecesse, em carne viva, no centro dos debates. Os rios de água viva, as lágrimas de alegria vertidas na Praça dos Reféns, atestam o estado de alta comoção nacional em Israel.

*Netanyahu será o herói que redime seu passado – a inconcebível falta de preparo de Israel no ataque de 7 de outubro de 2023? Ou o vilão a ser investigado e condenado pelos próprios cidadãos? As duas hipóteses, no momento, estão em aberto. “O trabalho pesado foi do primeiro-ministro”, elogiou o extremamente bem sucedido negociador de Trump, Steve Witkoff. “Teve que proteger o país e decidir quando ser duro com o Hamas, quando ser flexível”. O investidor imobiliário por quem ninguém dava nada disse que, em certas ocasiões, desejou mais flexibilidade. Mas tudo acabou dando certo.

*”No mundo dos imóveis de Nova York, você está sempre negociando”, disse, modestamente, ao New York Times, o genro que Trump deslocou para fazer dobradinha com Witkoff, Jared Kushner. “Estamos acostumados com acordos complexos que são muito dinâmicos, com personagens complexos também”. Uma definição tão boa quanto qualquer outra para uma negociação que envolveu israelenses, palestinos, egípcios, catarianos, só para ficar nas principais complexidades.

*Israel conseguiu feitos inacreditáveis, dos pagers que explodiram nas mãos do Hezbollah à destruição das defesas antiaéreas do Irã. Mas foi um raro fracasso, a explosão no Catar da qual escapou toda a cúpula do Hamas no exterior, que empurrou a solução definitiva. Netanyahu perdeu uma chance vital, mas acabou sendo arrastado para o acordo por um Trump furioso. São estranhos os caminhos que levaram à paz.

*Quem perdeu e quem ganhou? São indagações com respostas múltiplas. Ao não ser totalmente eliminado por uma potência militar superior, e com sede de vingança, a mera sobrevivência mesmo que apenas do escalão médio é uma vitória. Irão eles usar isso para torpedear a parte do plano de paz que prevê sua renúncia ao poder? Com toda certeza. Israel demonstrou um extraordinário poder tático e estratégico. Absolutamente.

*Tem a Autoridade Palestina condições de assumir, com apoio internacional, inclusive de países árabes importantes, a administração de Gaza? É quase absurdamente impossível – mas o espírito do momento é de dobrar os limites das impossibilidades.

*Irão a Autoridade Palestina e o Hamas se reconciliar e criar uma frente unida contra Israel, não a favor da paz e da convivência? Os pessimistas acham que sim, malgrado o ódio recíproco entre as duas principais correntes de representação, sejam quais forem os métodos usados, dos palestinos.

*E estão os palestinos preparados para um reset, uma mudança estrutural em suas instituições e em seu modo de pensar, voltado totalmente ao ódio aos judeus? Esta é uma das partes mais difíceis do arcabouço de paz. Único motivo para um pequeno grão de otimismo: no passado, quando o conflito refluía e parecia haver possibilidade de um acordo, também diminuía o culto ao ódio e à erradicação do estado judeu.

*Conseguirá Israel recuperar a imagem entre países e povos amigos? O estrago foi grande. As autoridades israelenses concordaram tacitamente que o tamanho e a barbárie da violência praticada pelo Hamas em 7 de outubro justificavam uma luta existencial, incluindo nela um número enorme de vítimas entre a população civil, na casa dos 40 mil, considerando-se a hipótese de que outros vinte mil ou trinta eram militantes armados. Para a maioria dos israelenses, não havia outra opção: era atingir brutalmente o Hamas, mesmo ao preço de tantas vidas inocentes, ou caminhar para a própria erradicação. Mas a visão do sofrimento dos habitantes de Gaza mudou até o mais sólido bastião de apoio a Israel, a opinião pública americana. Pesquisas indicam que chegam a 59% os americanos com uma opinião desfavorável a Israel. Isso sim é ameaça existencial.

*Os mecanismos que unem hoje as esquerdas em escala mundial e os propagadores do mais radical islamismo mostraram um poder enorme, emplacando mentiras como o “genocídio”e outras palavras de ordem que se disseminaram nas universidades, esferas culturais, governos de esquerda e instituições mundiais. É uma associação maligna e perversa cujos resultados ainda reverberarão por muito tempo.

*Apenas uma parte da direita ficou do lado de Israel – um setor conservador inteiro também foi devorado pelo antissemitismo disfarçado de críticas legítimas ao estado judeu. Nessa direita pró-Israel, para a qual é inquebrantável o compromisso com a sobrevivência do estado judeu como garantia de que não veremos o mal absoluto de novo recair sobre a Terra, às vezes alguém repete uma pergunta: quem são os mocinhos e quem são os bandidos no confronto entre Israel e Hamas? Na vida real, o mocinho pode até agir como bandido, mas todo mundo tem que responder honestamente: sob qual deles você preferiria viver?

*O trecho de João sobre Jesus na Festa dos Tabernáculos é um dos mais misteriosos do Novo Testamento pois trata da sua natureza como Messias, nem sempre correspondente às expectativas despertadas por um homem aparentemente comum, ou não incomum o suficiente para ser o salvador. Sobre os “rios de água”, diz João que é uma referência ao Espírito Santo que seria dado a todos quantos cressem neles”. No entanto, o Espírito Santo ainda não fora dado, porque Jesus não voltara ainda a sua glória no céu”.

*Se até Jesus provocava dúvidas, imaginem se Donald Trump vai receber o Nobel da Paz… Nem sequer um editorial elogioso ele recebeu do New York Times.

Texto e imagemreproduzidos do blog: otambosi blogspot com

sábado, 11 de outubro de 2025

"O Brasil no Centro do Planeta", por Fernando Gabeira


Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 10 de outubro de 2025  

O Brasil no Centro do Planeta 
Por Fernando Gabeira (In Blog)

Está chegando o momento da COP-30. O evento é um instrumento importante para que o mundo negocie compromissos de redução de emissões e de adaptação às mudanças climáticas. Até agora, temos falado muito sobre os preços assombrosos de hospedagem e de possíveis problemas de organização. Tudo bem. Isso pode ser discutido, mas seria uma lamentável miopia deter-se em aspectos secundários diante do grande problema dos nossos tempos.

O Brasil generosamente se ofereceu para hospedar a COP-30 numa metrópole amazônica. Investiu mais de R$ 4 bilhões e designou um competente diplomata para presidir o evento: o embaixador André Corrêa do Lago. É um esforço considerável, sobretudo porque o Brasil assume grandes compromissos num momento difícil para a política ambiental no planeta.

No meu entender, dois grandes problemas ameaçam a COP-30: a conjuntura internacional e um certo esgotamento desse modelo de reunião. Um dos aspectos negativos da conjuntura é a ausência dos Estados Unidos, que, pela segunda vez, se retiram do Acordo de Paris. Segundo maior poluidor e o país mais rico do mundo, os Estados Unidos escapam de suas responsabilidades por meio do negacionismo de Donald Trump. A influência de Trump na conjuntura negativa não se esgota aí. Suas reticências em apoiar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), sobretudo neste momento da invasão russa na Ucrânia, obrigou os países europeus a ampliar seus gastos militares, que devem chegar a 5% do orçamento nacional.

Não só as políticas ambientais em países como a França vivem um certo declínio, como enfraquecem a possibilidade de financiamento das nações mais pobres, sem recursos para se adaptar ou mitigar os efeitos das mudanças climáticas. No quadro do Acordo de Paris havia uma meta inicial de US$ 100 bilhões para realizar essa tarefa. Esse dinheiro não apareceu e agora fala-se em ampliar a meta, logo no momento em que as fontes estão ainda mais secas.

Outro aspecto que sempre me preocupou nas grandes reuniões das Partes é sua dimensão. São mais de 190 países, comunidades indígenas, ONGs e imprensa. Isso torna o trabalho dispendioso em dinheiro e emissões para um resultado nem sempre animador.

No livro A Próxima Onda, Mustafa Suleyman, um dos pioneiros da inteligência artificial, conta sua experiência na COP-15 em Copenhague, 2009. Ele participou da tentativa de elaboração de um documento unitário entre as ONGs para ser apresentado aos diplomatas. Houve tantas divergências que não foi possível alcançar o consenso. Mesmo se fosse alcançado, como reproduzi-lo em 190 países? Essa situação abre um flanco para críticas pertinentes: valem a pena os gastos financeiros e ambientais, para poucos resultados, frequentemente genéricos e compromissos nacionais nem sempre cumpridos?

Um autor dedicado ao tema, David G. Victor, defende em Global Warming Gridlock: Creating More Effective Strategies for Protecting the Planet acordos menores e pragmáticos entre grupos de países. Ele define os países diante da redução de emissões como entusiastas e relutantes, estes últimos China e Índia.

Outros enfoques críticos também são pertinentes, uma vez que questionam a eficácia em confronto com a legitimidade democrática. O modelo é includente, mas não funciona como deveria. Para alguns autores, como Robert Falkner, um dos grandes problemas foi que o Acordo de Paris trocasse metas obrigatórias por compromissos voluntários. A adesão é sempre grande, mas a eficácia deixa a desejar.

A lista de críticos que reconhecem a importância decisiva do problema ambiental, mas que duvidam do formato dos grandes encontros da ONU, é muito grande. Há quem ache que as COPs deveriam enfrentar o modelo econômico baseado no consumo e no crescimento contínuo. Outros enfatizam a questão da justiça climática e há quem ache que as COPs foram capturadas por interesses corporativos.

Não há dúvida, no entanto, de que é preciso buscar resultados que compensem os esforços. Diante das dificuldades conjunturais e do aparente esgotamento dessas grandes reuniões, o Brasil está arriscando uma cartada. Não há condições de mudar o mundo, trazer os Estados Unidos para a mesa, nem conseguir, a partir de Belém, o dinheiro necessário para financiar a adaptação dos países pobres às mudanças climáticas.

Mas este momento extraordinário coloca uma outra questão: se não a COP, o que poderia alcançar algum resultado planetário no momento? O Brasil tem grandes propostas, como a unificação mundial do mercado de carbono, e oferecerá o cenário amazônico para que todos possam refletir sobre a importância da floresta.

Todas as dificuldades deveriam nos unir na tentativa de conseguir o melhor em Belém. Afinal, nosso país está tentando conseguir algo num momento em que o negacionismo se fortaleceu, as guerras enfraqueceram a preocupação ambiental e o gigantesco problema de comprometer 192 países com algumas soluções continua sendo o grande desafio.

Creio que muitos observadores no mundo vão admitir, apesar de detalhes como preços de hotel, que o Brasil carrega a bandeira da sobrevivência humana num dos momentos mais difíceis da caminhada.

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Os malefícios (cerebrais) da ideologia


Entrevista compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 9 de outubro de 2025

Os malefícios (cerebrais) da ideologia

Em livro, Leor Zmigrod descreve o que torna algumas pessoas propensas a pensar de forma inflexível. Entrevista a Matt Richtel, com tradução para a FSP:

Divisões partidárias estão tão acentuadas que pode parecer que as pessoas estão experimentando realidades completamente diferentes. E talvez elas estejam mesmo, de acordo com a neurocientista e psicóloga política Leor Zmigrod, da Universidade de Cambridge.

Em seu livro "The Ideological Brain: The Radical Science of Flexible Thinking" (o cérebro ideológico: a ciência radical do pensamento flexível, ainda sem edição em português), ela explora as evidências de que a fisiologia e a biologia do cérebro ajudam a explicar não apenas por que as pessoas são propensas a seguir uma ideologia mas também como elas percebem e compartilham informações.

O que é ideologia?

É uma narrativa sobre como o mundo funciona e como deveria funcionar. Isso poderia ser o mundo social ou o mundo natural. Mas não é apenas uma história: tem prescrições rígidas sobre como devemos pensar, agir e interagir com outras pessoas. Uma ideologia condena qualquer desvio das regras prescritas.

A senhora escreve que essa forma de pensar pode ser tentadora. Por quê?

As ideologias satisfazem a necessidade de tentar entender o mundo, de explicá-lo. E elas satisfazem nossa necessidade de conexão, de comunidade, de sentir que pertencemos a algo.

Também há uma questão de recursos. Explorar o mundo é cognitivamente caro, e apenas explorar padrões e regras conhecidas pode parecer ser a estratégia mais eficiente.

Além disso, muitas pessoas argumentam —e muitas ideologias tentarão lhe dizer isso— que aderir às regras é a única maneira correta de viver e de viver moralmente.

Na verdade, eu abordo isso de uma perspectiva diferente: as ideologias amortecem nossa experiência direta do mundo. Elas limitam nossa capacidade de nos adaptar ao mundo, de entender evidências, de distinguir entre evidências confiáveis e não confiáveis. Ideologias raramente são boas.

No livro, a senhora descreve pesquisas que mostram que pensadores que seguem um viés ideológico podem ser narradores menos confiáveis. Pode explicar isso?

Surpreendentemente, podemos observar esse efeito em crianças.

Na década de 1940, a psicóloga Else Frenkel-Brunswik, da Universidade da Califórnia, Berkeley, entrevistou centenas de crianças e testou seus níveis de preconceito e autoritarismo, por exemplo, se elas defendiam a conformidade e a obediência ou o jogo e a imaginação.

Quando as crianças ouviam uma história sobre novos alunos em uma escola fictícia e eram solicitadas a recontar a história depois, havia diferenças significativas no que as crianças mais preconceituosas lembravam, em comparação com as crianças mais liberais.

Crianças liberais tendiam a lembrar com mais precisão a proporção de traços desejáveis e indesejáveis nos personagens da história; suas memórias possuíam maior fidelidade à história conforme havia sido contada originalmente.

Em contraste, crianças que pontuaram alto em preconceito se desviaram da história; elas destacaram ou inventaram traços indesejáveis para os personagens de minorias étnicas.

Assim, as memórias das crianças mais ideologicamente inclinadas incorporaram ficções que confirmavam seus preconceitos pré-existentes. Também houve uma tendência de ocasionalmente repetir frases e detalhes isolados, imitando rigidamente o contador de histórias.

Pessoas que são propensas a seguir uma ideologia absorvem menos informações?

As pessoas mais propensas a seguir um pensamento ideológico tendem a resistir a mudanças ou nuances de qualquer tipo. Podemos testar isso com quebra-cabeças visuais e linguísticos. Por exemplo, em um teste, pedimos a elas para classificarem cartas de baralho de acordo com várias regras, como naipe ou cor. Mas de repente elas aplicam a regra e não funciona. Isso ocorre porque, sem o conhecimento delas, mudamos a regra.

As pessoas que tendem a resistir ao pensamento ideológico são adaptáveis, então, quando há evidências de que as regras mudaram, elas mudam seu comportamento. As que seguem um pensamento ideológico, quando encontram a mudança, resistem. Eles tentam aplicar a regra antiga mesmo que não funcione mais.

Em um estudo, a senhora descobriu que pessoas que seguem uma ideologia e as que não o fazem parecem ter diferenças fundamentais no circuito de recompensa de seus cérebros. Pode descrever essas descobertas?

Em meus experimentos, descobri que as pessoas mais inflexíveis têm predisposições genéticas relacionadas à forma como a dopamina é distribuída em seus cérebros.

Eles tendem a ter níveis mais baixos de dopamina em seu córtex pré-frontal e níveis mais altos de dopamina em seu estriado, uma estrutura-chave no mesencéfalo em nosso sistema de recompensa que controla nossos instintos rápidos. Portanto, nossas vulnerabilidades psicológicas a ideologias podem estar fundamentadas em diferenças biológicas.

De fato, descobrimos que pessoas com diferentes ideologias têm diferenças na estrutura física e função de seus cérebros. Isso é especialmente pronunciado em redes cerebrais responsáveis pela recompensa, processamento emocional e monitoramento quando cometemos erros.

Por exemplo, o tamanho de nossa amígdala —a estrutura que governa o processamento de emoções, especialmente emoções com conotação negativa como medo, raiva, repulsa, perigo e ameaça— está ligado a se mantemos ideologias mais conservadoras que justificam tradições e o status quo.

Qual a sua avaliação disso?

Alguns cientistas interpretaram essas descobertas como o reflexo de uma afinidade natural entre a função da amígdala e a função das ideologias conservadoras. Ambas giram em torno de reações vigilantes a ameaças e do medo de serem dominadas.

Mas por que a amígdala é maior em conservadores? As pessoas com uma amígdala maior tendem a se inclinar mais para ideologias conservadoras porque sua amígdala já está estruturada de uma maneira mais receptiva às emoções negativas que o conservadorismo evoca? Ou a imersão em uma determinada ideologia pode alterar nossa bioquímica emocional de uma forma que leva a mudanças estruturais no cérebro?

A ambiguidade em torno desses resultados reflete um problema: nossos cérebros determinam nossa política, ou as ideologias podem mudar nossos cérebros?

Podemos mudar?

Você tem a capacidade de escolher o quão apaixonadamente adota essas ideologias ou o que rejeita ou o que não aceita.

Acredito que todos nós podemos mudar em termos de nossa flexibilidade. Obviamente é mais difícil para pessoas com vulnerabilidades genéticas ou biológicas em relação ao pensamento inflexível, mas isso não significa que seja impossível mudar.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Ideologia odiosa: o que aprendi quando estava no meu cativeiro do Hamas


Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 7 de outubro de 2025

Ideologia odiosa: o que aprendi quando estava no meu cativeiro do Hamas.

A crueldade dos meus captores revelou uma obsessão pela morte. Uma paz duradoura exigirá mais do que diplomacia. Eli Sharabi, do Washington Post, para a Gazeta do Povo:

Em 7 de outubro de 2023, terroristas invadiram minha casa no kibutz Be’eri. Minha esposa, Lianne, nossas filhas Noiya e Yahel e eu nos escondemos em nosso abrigo enquanto os homens armados queimavam e assassinavam tudo em seu caminho pelo kibutz. Depois de me levarem, fui capturado, amarrado e arrastado para Gaza.

Minha primeira experiência não foi apenas com combatentes do Hamas, mas também com uma multidão civil em êxtase — homens, mulheres, crianças — lutando para tentar me despedaçar. Os terroristas do Hamas precisaram empurrar a multidão para trás. Eu não sabia que minha esposa e minhas filhas já haviam sido assassinadas. A esperança de que elas estivessem vivas me sustentou durante 491 dias de cativeiro, uma esperança que só foi destruída quando fui libertado.

Agora, com o segundo aniversário das atrocidades de 7 de outubro se aproximando, aumenta a possibilidade de que os últimos reféns restantes sejam finalmente libertados — incluindo o corpo do meu irmão Yossi, que foi morto em cativeiro.

Meus primeiros dias como refém foram passados no porão da casa de uma família abastada de Gaza. O pai, que havia trabalhado na construção civil em Israel, falava inglês fluentemente e até um pouco de hebraico. A vida no andar de cima era normal para a família — refeições, tarefas escolares, orações — enquanto eu ficava deitado lá embaixo, com os ombros doloridos pelas cordas apertadas que me prendiam.

Durante os 51 dias em que fiquei preso na casa dessa família, conheci os sequestradores que me guardavam. Com o passar dos dias, eles falavam mais, eu ouvia mais e aprendia sobre suas vidas. Esses homens me contaram sobre suas famílias e seus empregos. Um era policial e tinha oito filhos. Outro tinha uma barraca de falafel.

Eu falo árabe e conseguia entender perfeitamente quando os terroristas discutiam sua ideologia. Um homem era inflexível em afirmar que todas as terras pertenciam aos palestinos e que os judeus deveriam partir para Marrocos ou Iêmen. Outro era mais político, repetindo incessantemente os dogmas do Hamas sobre como não existe o Estado de Israel. Mas era óbvio que, para alguns deles, juntar-se ao Hamas era uma questão econômica, não apenas ideológica. O Hamas tinha dinheiro, poder e status, e alguns se juntaram a ele para tentar obter essas coisas para si mesmos.

No entanto, ficou claro para mim que a disposição para torturar e matar vem de um lugar mais profundo. Os assassinos que invadiram minha casa e massacraram minha esposa e minhas filhas foram movidos por um ódio cego, que parecia ter precedência sobre todas as outras motivações, incluindo a própria vida.

No 52º dia de meu cativeiro — 27 de novembro de 2023 — fui transferido para um túnel com outros seis reféns israelenses, onde as condições se deterioraram rapidamente. Hersh Goldberg-Polin, Almog Sarusi e Ori Danino acabaram sendo levados para longe do resto de nós, e eu nunca mais os veria. Isso deixou Alon Ohel, Or Levy, Elia Cohen e eu (Alon continua refém até hoje, oito meses após minha libertação). A privação de alimentos e as doenças eram rotineiras. O fedor do esgoto era insuportável e havia vermes por toda parte.

Nossos captores também se tornaram mais cruéis. Eles reproduziam as imagens de 7 de outubro em um iPad; podíamos ouvi-los da outra sala. Assistir ao assassinato e à tortura parecia revigorá-los. Nossas pernas estavam constantemente algemadas (às vezes umas às outras) e éramos regularmente espancados e humilhados. Isso continuou até uma semana antes de nossa libertação.

Finalmente fui libertado junto com Levy e Ohad Ben Ami. Tudo foi um enorme espetáculo público, com uma atmosfera carnavalesca destinada a humilhar. Multidões de homens, mulheres e crianças de Gaza gritavam de empolgação, entoando “Allahu akbar!” enquanto éramos exibidos no palco, forçados a repetir várias declarações contra nosso país. Fui cruelmente obrigado a dizer que estava ansioso para me reunir com minha esposa e minhas filhas.

Enquanto o governo Trump tenta finalizar um acordo de paz abrangente, penso nos israelenses que ainda estão detidos pelo Hamas e espero fervorosamente que sejam libertados em breve.

Mas é importante que o mundo saiba que a paz duradoura só será possível se a ideologia assassina que testemunhamos no Hamas e em todos aqueles associados a ele for derrotada. A verdadeira mudança exigirá a rejeição total de uma cultura que fetichiza a morte e o despertar do desejo de abraçar e celebrar a vida.

Tenho sorte de estar vivo e agradeço por isso todos os dias. E, de alguma forma, vou reconstruir minha vida. Espero que todos nós possamos.

Opinião por Eli Sharabi foi feito refém pelo Hamas e libertado em 8 de fevereiro. Ele é autor do livro “Hostage” (Refém)

Texto e imagens reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

Superando o terror

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 7 de outubro de 2025

Superando o terror

O que os dois anos dos ataques de 7 de outubro dizem sobre Israel, Hamas e o Ocidente. Felipe Moura Brasil e Rodolfo Borges para a edição especial da Crusoé sobre a chacina promovida pelos terroristas palestinos em Israel:

Num mundo são, a reação abnegada e corajosa dos cidadãos israelenses às atrocidades cometidas pelos terroristas do Hamas em 7 de outubro de 2023 seria celebrada como símbolo das virtudes de Israel, diz Douglas Murray em On Democracies and Death Cults (Broadside Books).

O que o jornalista inglês conta em seu livro sobre a reação do Ocidente ao maior massacre de judeus desde o Holocausto, cujo subtítulo é "Israel e o futuro da civilização", sugere que falta sanidade para entender o que aconteceu naquele dia e os impactos dos atos de terrorismo que os membros do Hamas fizeram questão de registrar e, em alguns casos, transmitir ao vivo enquanto os cometiam.

Murray destaca, entre tantas maldades que foram cometidas e gravadas pelos próprios terroristas, a postagem de uma live no Facebook que transmitiu a morte de Bracha Levinson, de 74 anos, no perfil da própria vítima, uma das 1.200 pessoas covardemente assassinadas naqueles ataques.

Ocidente

Esse tipo de procedimento macabro dificultou, mas não chegou a inibir apologistas da Palestina ou críticos do Estado de Israel de tentar botar em dúvida o que ocorreu durante os ataques que completam dois anos nesta terça-feira.

A "causa palestina" virou um símbolo mundial da luta do fraco contra o forte, na lógica pós-marxista de dinâmicas sociais de poder, que abastece as patéticas flotilhas de militantes de esquerda de todo o mundo rumo à Faixa de Gaza em busca de algum sentido para suas vidas (Catarina Rochamonte desenvolve com mais profundidade esse assunto em Islamoesquerdismo, decolonização e a desordem moral do Ocidente).

Israel, que surgiu como um refúgio para um povo historicamente perseguido e, na origem, contava com o apoio de quem pensa dessa forma, resistiu de maneira tão categórica às tentativas de varrê-lo do mapa que acabou ganhando o status de opressor.

Mentiras

Nessa lógica torta da luta ideológica, tudo o que o oprimido faz em nome da alegada defesa própria é permitido e perdoado, o que obviamente serve de incentivo para a prática das maiores atrocidades — já tinha ocorrido durante o regime nazista na Alemanha.

É por isso que parte da imprensa mundial teve de se corrigir ou pedir desculpas diversas vezes ao longo do conflito desencadeado pela reação militar israelense ao 7 de outubro, por referendar as mentiras contadas pelos terroristas por meio do famigerado "Ministério da Saúde de Gaza".

O Antagonista e Crusoé foram duas das únicas exceções no Brasil, pois trataram o Hamas com a desconfiança que o grupo merece, sem reproduzir números sobre mortos que não pudessem ser checados ou alegadas violações de direitos humanos que acabaram se provando invenções.

"O problema é que um lado quer uma solução de dois Estados. Um lado nunca quis e ainda não quer. Um lado usa o terrorismo para atingir seus objetivos. Um lado retalia contra o terrorismo. Um lado é acusado de genocídio, mas não o faz. O outro lado realmente adoraria fazer isso. As pessoas continuam dizendo que Israel tem o direito de se defender. E, em seguida, quando Israel faz isso, elas se opõem”, resumiu o apresentador americano Bill Maher, umas das personalidades que têm ajudado a esclarecer uma questão que não é tão nebulosa assim (leia mais em 5 respostas marcantes sobre Israel e terror).

Desgaste

A verdade não foi o bastante, contudo, para evitar o desgaste internacional de Israel desde 2023. Esse desgaste é consequência direta da estratégia do Hamas, esse "culto à morte", como descreve Murray. Ainda hoje, os terroristas usam os civis para se proteger dos inimigos (leia mais em Reféns do Hamas), enquanto seguem atacando deliberadamente os civis de Israel com mísseis.

"As operações das FDI são conduzidas com o objetivo de defesa: impedir ataques terroristas, proteger a população e libertar reféns. Esta guerra não é travada contra o povo palestino, mas sim contra o grupo terrorista Hamas", esclarece o major Rafael Rozenszajn, porta-voz das Forças de Defesa de Israel (FDI) nascido no Brasil, em entrevista a Crusoé sobre os dois anos de combate.

Nem todo mundo enxerga assim, entre eles os membros do governo Lula (quem quiser entender melhor pode buscar referências em Dicas de filmes e livros sobre o terror de 7 de outubro).

As autoridades do Executivo petista não demonstraram tanto apreço pelos brasileiros vítimas do Hamas — Ranani Nidejelski Glazer, Bruna Valeanu e Karla Stelzer Mendes foram mortos no dia do atentado terrorista, e o corpo de Michel Nisenbaum, também assassinado, foi levado para Gaza e encontrado depois. Os sobreviventes que conseguiram retornar ao Brasil — ou que ficaram em Israel, como Rafaela Treistman — não foram tão bem tratados quanto os refugiados palestinos.

"Há uma falta de entendimento por parte da sociedade de maneira geral", lamenta Claudio Lottenberg, presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib), destacando que o governo petista preferiu seguir "um desejo de afirmação de liderança política no Sul Global" ao se posicionar.

"China, Índia ou Rússia não protagonizaram tanta voz contrária em relação ao Estado de Israel como o Brasil fez", analisa Lottenberg, que enxerga um aumento do antissemitismo no Brasil como consequência da forma oportunista como o governo Lula se posicionou no conflito.

Reféns

As FDI conseguiram resgatar alguns dos reféns em operações especiais na Faixa de Gaza, onde o Hamas construiu um sistema de túneis maior do que a rede de metrô de Londres, usando os recursos que deveriam ter sido usados para proporcionar uma vida melhor para os palestinos.

O resultado disso foi a destruição de boa parte da infraestrutura de Gaza durante a reação israelense, pois os terroristas do Hamas não apenas se escondem atrás de civis, como montaram seu aparato bélico dentro de hospitais e escolas, entre outras construções não militares, com uma predileção especial por colocar o acesso a seus túneis em quartos de crianças, muitas vezes debaixo de berços.

Além dos reféns israelenses resgatados, outros voltaram para casa como resultado de negociações para troca por terroristas detidos em Israel. Mas ainda estão em posse do Hamas 20 reféns vivos e os corpos de outras 27 vítimas dos 251 sequestrados há dois anos.

O grupo terrorista demonstrou interesse de discutir o plano de paz apresentado pelo presidente americano Donald Trump, que envolveria a soltura dos últimos reféns, num momento no qual o Hamas passa pelo seu período de maior fraqueza em anos (leia mais em Hamas em colapso e em A guerra dos clãs de Gaza contra o Hamas).

"A aceitação do plano implica no reconhecimento pelo Hamas de que o ataque foi um erro, que custou um enorme preço, tanto para a população quanto para a organização. Eles estariam abrindo mão do controle de Gaza e da maior parte de seu armamento, em troca da libertação de milhares de prisioneiros palestinos, entre eles vários de facções rivais que representariam uma barreira ao Hamas em futuras eleições", analisa Samuel Feldberg diretor acadêmico da StandWithUs Brasil, em Dogmatismo jihadista ou Realpolitik?, no qual se diz pessimista (ou "otimista com experiência").

Anos desafiadores

O fim do conflito militar é apenas parte da tentativa dos israelenses — e também dos judeus — de superar o terror iniciado em 7 de outubro de 2023.

"Vivo em Tel Aviv há pouco mais de cinco anos e confesso que os últimos dois anos foram um tanto desafiadores. Lidar com emoções, sentimentos e até a energia de um país em guerra...", relatou a Crusoé Talita Khalifeh, uma brasileira nascida em São Paulo que trabalha como gerente de contas.

Ela chama atenção para o fato de que os ataques ao território israelense seguem ocorrendo, de que é preciso buscar os bunkers quando mísseis são lançados de Gaza e do Iêmen, sob o comando do Irã, e que há o risco permanente de "'lobos solitários' que atiram e atropelam em pontos onde há reunião de pessoas quase todas as semanas".

"Conviver com a coragem, a força e a resiliência do povo israelense me fortalece, apesar de todo o ódio e do antissemitismo que avassalam o mundo, muito disso consequência da desinformação — tanto pelo desconhecimento histórico como pela forma unilateral que grande parte da mídia mostra os fatos", lamentou, completando:

"Nós não começamos essa guerra e tudo o que queremos para que ela termine são os nossos sequestrados de volta e o desarmamento do grupo terrorista Hamas. Mas, depois de muitas tentativas de acordo, vemos que quem não tem interesse do fim é o próprio Hamas, que coloca seu povo em segundo plano pelo ideal do fim do Estado de Israel."

Judeus

Os impactos do terror do 7 de outubro reverberam para além da fronteira israelense. O jornalista Caio Blinder, que ficou mais famoso por compor a bancada do Manhattan Connection, conta que participou de uma reunião com familiares em São Paulo no último fim de semana.

"Família em grande escala ainda judaica, plural e argumentativa", descreveu Blinder, cujo "sentimento tribal como judeu se acirrou desde o 7 de outubro", mas não foi o bastante para fazê-lo se "sentir perto" do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu "e sua claque".

"Temos de tudo, de bolsonaristas a comunistas. A nossa espinha dorsal é um sionismo liberal, inspirado pela vertente mais à esquerda do pai fundador David Ben Gurion. Nossa nostalgia é temperada pelo sabor amargo da realidade e o desmanche do paradigma de trocar território pela paz, capitaneado por líderes históricos de Israel como Begin, Rabin e Sharon", descreveu, acrescentando:

"Eu, meus tios e primos nos sentimos traídos pelo fanatismo jihadista (e também pelo fanatismo de nossa banda messiânica e supremacista), estamos aflitos com o isolamento internacional de Israel e caímos na real com a resiliência do antissemtismo. Nos sentimos traídos pela esquerda em termos genéricos e, mais na carne, pela brasileira. Nos sentimos órfãos, embora aconchegados pela família."

"Não esquecemos nossos mortos"

Para Ricardo Kertzman, colunista de Crusoé, "o que aconteceu em 7 de outubro de 2023 permanecerá irremediavelmente aberto, em carne viva, e não porque queremos, mas porque precisamos".

"Ao enterrá-los, não esquecemos nossos mortos. Nós os carregamos em nossas memórias, em nossas homenagens, em nossas orações e em nossos corações. Choramos pelos que se foram e lutamos por quem ficou. Assim prevaleceremos", constata (leia mais em Uma ferida incurável).

No livro em que contrasta a celebração da vida pelos israelenses com a celebração da morte pelo Hamas, Murray registra sua supresa ao ver os jovens que participam dos esforços para identificar os corpos, muitos deles carbonizados, das vítimas do 7 de outubro.

O que importa

Enquanto um terço dos britânicos de 18 a 40 anos disse, em pesquisa de 2024, que se recusaria a servir o exército de seu país em uma guerra mundial, o jornalista inglês presenciou jovens de 19 anos ajudando a coletar dentes e ossos em uma ambulância alvo do ataque de 2023.

O que ele constatou ao falar com elas serve de indicação sobre o futuro de Israel:

"Elas não estavam gostando da tarefa, mas a realizavam de forma positiva, sabendo que estavam fazendo a diferença e cientes de que era uma honra desempenhar seu papel (...) Essas meninas tinham a mesma idade de um estudante universitário nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha. Elas tinham a mesma idade de pessoas no Ocidente que são tratadas ou frequentemente agem como crianças. Mas essas israelenses não eram crianças, eram jovens mulheres, jovens soldados. E me ocorreu, não pela primeira vez, que essas mulheres já tinham visto e passado por mais em suas vidas do que suas contemporâneas no Ocidente passariam até a morte. Mas isso não era uma maldição para essas jovens; era uma bênção saber algo sobre a vida desde o início e saber o que importa desde o início da jornada."

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com