sexta-feira, 28 de março de 2025

Por que o batom virou novo símbolo de críticas a Moraes...

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 27 de março de 2025

Por que o batom virou novo símbolo de críticas a Moraes e ameaça a credibilidade do STF

Na avaliação de acadêmicos e criminalistas o ministro Luiz Fux, do STF, ajudou a institucionalizar o debate sobre a revisão de penas aos condenados do 8.01, e o caso da pichadora Débora Rodrigues dos Santos é identificado facilmente pela população como injustiça. Roseann Kennedy para o Estadão:

Desde as primeiras condenações dos envolvidos nos atos golpistas de 8/01, o bolsonarismo reclama de excessos na aplicação das penas. Sem admitir a gravidade dos fatos ocorridos, esse grupo tentou propagar a ideia de que o Supremo Tribunal Federal (STF) estava punindo “velhinhas com a bíblia na mão”. Por óbvio, não colou. Mas, de repente, a pena de 14 anos de prisão para uma mulher com “o batom em punho” virou o símbolo da arbitrariedade para os críticos do ministro Alexandre de Moraes.

O assunto agora domina rodas de conversa pelo País, e ameaça a credibilidade do julgamento, na avaliação de acadêmicos e criminalistas, especialmente depois de o ministro Luiz Fux, do STF, institucionalizar o debate ao levar o tema para o meio do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro.

“Esse caso provocou mais emoção por toda semiótica que envolve. Uma mulher, jovem. Muita gente consegue se identificar. E tem o batom no lugar da arma”, observa a advogada Luisa Moraes Abreu Ferreira, professora de Direito da FGV. Entre os crimes atribuídos à pichadora Débora Rodrigues dos Santos, está associação criminosa armada.

É fato que parte dos magistrados já se incomodava com as penas aplicadas, considerando-as excessivas. Desde o início dos julgamentos relacionados ao 8 de Janeiro, cinco ministros votaram por penas menores que as determinadas por Moraes. São eles: Kassio Nunes Marques, André Mendonça, Luís Roberto Barroso, Cristiano Zanin e Edson Fachin. Parte desses votos foi apresentada no plenário. Agora, os casos estão concentrados na Primeira Turma do STF.

No primeiro julgamento de um réu do 8 de Janeiro, em 2023, o STF definiu uma pena de 17 anos para Aécio Pereira. Nunes Marques, André Mendonça e Barroso propuseram absolvição por alguns crimes e foram vencidos. Os ministros sempre ressaltam que o contexto desse julgamento no STF é inédito.

Agora Fux verbalizou, com todas as venias possíveis, sua divergência. E “o Supremo mordeu a isca”, diz Luisa. Para ela, isso pode ter ocorrido por duas hipóteses. Uma razão para a exposição neste momento seria o temor do efeito backlash, que poderá no futuro derrubar condenações, então seria melhor corrigir o rumo para garantir punições corretas e evitar que vire munição para anistia. “Ou pode ter pessoas lá dentro que quer usar o caso para frear o poder exacerbado do STF na figura de Moraes”.

O caso da pichadora com batom virou um estereótipo do julgamento do 8.01, na avaliação do criminalista Sergei Cobra Arbex. “Daqui a pouco, a oposição vai falar deste caso como mais importante que o de Bolsonaro. Porque representa uma situação de injustiça que todos veem com o tamanho da pena”.

“Uma pena porque esse é um processo extremamente importante, que mexe com nossa estrutura de democracia”, avalia Sergei. “Não é o resultado da condenação que vai fazer esse julgamento forte. É o processo. E a culpa a culpa não é de Moraes, é da Corte que se constrange para divergir do relator”, conclui.

Fux considera pena de cabeleireira que pichou ‘perdeu, mané’ exacerbada e fala em redução

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux lembrou na quarta-feira, 26, durante o julgamento que tornou réu o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que pediu vista do julgamento da cabeleireira Débora dos Santos, que pichou a frase “Perdeu, mané” na estátua da Justiça no 8 de Janeiro. Fux questionou “pena exacerbada” em alguns processos dos atos golpistas. O relator dos processos, Alexandre de Moraes, reforçou sua posição, mas afirmou que o tamanho da punição será discutido pelos colegas.

“Vou fazer uma revisão dessa dosimetria (cálculo da pena), porque, se a dosimetria é inaugurada pelo legislador, a fixação da pena é do magistrado. E o magistrado o faz à luz da sua sensibilidade, do seu sentimento a cada caso concreto”, afirmou Fux, completando: “E o ministro Alexandre explicitou a conduta de cada uma das pessoas. E eu confesso que, em determinadas ocasiões, eu me deparo com uma pena exacerbada”.

Em referência ao processo de Débora dos Santos, Fux afirmou: “E foi por essa razão, ministro Alexandre, dando uma satisfação a Vossa Excelência, que eu pedi vista desse caso, que eu quero analisar o contexto em que essa senhora (Débora) se encontrava”.

Após a declaração de Fux, Moraes afirmou: “Em relação ao batom, Vossa Excelência me conhece, eu defendo a total independência de cada magistrado. Acho que Vossa Excelência vai poder trazer uma discussão importantíssima para a Turma. O que agora explicito é que é um absurdo as pessoas quererem comparar aquela conduta — de uma ré que estava havia muito tempo dentro dos quartéis, pedindo intervenção militar, que invadiu junto com toda a turba e além disso praticou esse dano qualificado — com uma pichação de um muro”.

O ministro Alexandre de Moraes lembrou que já houve divergências com outros ministros, a exemplo de Cristiano Zanin, sobre o tamanho das penas aos condenados do 8 de Janeiro. “A questão da dosimetria é uma questão a ser analisada”, concluiu o relator.

O julgamento de Débora dos Santos, no plenário virtual do STF, foi interrompido nesta semana por Fux. Moraes votou por condenar a cabeleireira a 14 anos de prisão.

De acordo com a Procuradoria-Geral da República, Débora Santos cometeu cinco crimes: golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, associação criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

"O que é Política?", por Juliana Bezerra

Artigo compartilhado do site TODA MATÉRIA

O que é Política?
Por Juliana Bezerra *

Política é a atividade desempenhada pelo cidadão quando exerce seus direitos em assuntos públicos através da sua opinião e do seu voto.

A palavra política tem sua origem da palavra grega “polis” que significa “cidade”. Neste sentido, determinava a ação empreendida pelas cidades-estados gregas para normalizar a convivência entre seus habitantes e com as cidades-estados vizinhas.

Definição

A política busca um consenso para a convivência pacífica em comunidade. Por isso, ela é necessária porque vivemos em sociedade e porque nem todos os seus membros pensam igual.

A política exercida dentro de um mesmo Estado chama-se política interna e entre Estados diferentes, se denomina política externa.

Um dos primeiros a explicar o conceito de política foi o filósofo Aristóteles. No seu livro "Política" ele define que esta é um meio para alcançar a felicidade dos cidadãos. Para isso, o governo deve ser justo e as leis, obedecidas.

Mas, para que um Estado seja bem organizado politicamente, não basta que tenha boas leis, se não cuidar da sua execução. A submissão às leis existentes é a primeira parte de uma boa ordem; a segunda é o valor intrínseco das leis a que se está submetido. Com efeito, pode-se obedecer a más leis, o que acontece de duas maneiras: ou porque as circunstâncias não permitem melhores, ou porque elas são simplesmente boas em si, sem convir às circunstâncias.

Já no século XIX, quando o mundo industrializado se consolidava, o sociólogo Max Weber definiu:

A política é a aspiração para chegar ao poder dentro do mesmo Estado entre distintos grupos de homens que o compõem.

Os membros de uma mesma sociedade podem fazer política quando desejam melhorias na sociedade civil. Atualmente, nas democracias ocidentais, os cidadãos podem participar da política através de associações, sindicatos, partidos, protestos e mesmo individualmente.

Vemos, então, que a política vai muito mais além do que um partido político, profissionais e instituições.

Políticas Públicas

As políticas públicas podem soar como uma redundância, pois o governo seria o principal responsável pela condução política da sociedade.

No entanto, o governo tem várias atribuições como garantir o funcionamento da economia e da justiça, assegurar a defesa do território, e finalmente, o bem-estar dos cidadãos.

Quando surge um problema específico e que necessita uma solução particular, aí teremos a chamada política pública.

Por isso, definimos política pública como ações do governo para resolver um problema público após análises e avaliações.

Igualmente, a política pública deve contar com a participação da cidadania para a solução de problemas que atingem a sociedade civil.

Política

Hoje a política deve ser construída com a participação de todos

Política Social

A política social pretende ser uma reestruturação da sociedade a fim de distribuir riquezas de maneira mais igualitária.

A política social tem como objetivo garantir condições mínimas de cidadania como habitação, saúde, educação e consciência ecológica.

Política Fiscal

A política fiscal será o conjunto de medidas que o governo fará para garantir o equilíbrio das contas de um Estado.

Se um Estado gasta mais do que arrecada em impostos, o governo tomará ações para que isto diminua, pois sua dívida crescerá. Desta maneira, pode privatizar empresas públicas ou até diminuir o salário de funcionários.

Política Monetária

A política monetária consiste no controle da inflação, da taxa de juros e da quantidade de dinheiro que circula num país.

Os responsáveis pela condução da política monetária são os Bancos Centrais e os Ministérios de Economia de um Estado que ditam as regras econômicas de um país.

Governo

A política também é a arte ou doutrina relativa à organização dos Estados e o responsável por esta missão é o governo.

Ao longo do tempo, seu conceito foi se modificando e as formas de governo foram se adaptando às novas demandas sociais e econômicas.

Assim, temos vários regimes políticos como:

Monarquia

Ditadura

Teocracia

Oligarquia

Tirania

República

Demagogia

Aristocracia

Liberalismo

Socialismo

..........

Partido Político

Na democracia, o voto é essencial para participar da política

Com a Revolução Industrial, as sociedades ficaram mais complexas. Antes, a maior parte da população estava dispersa no campo e a política era decidida por um pequeno grupo de pessoas que pertenciam à mesma classe social: a aristocracia.

Após a industrialização houve o êxodo rural fazendo com que as cidades ganhassem cada vez mais importância. Surgem em cena, dois novos personagens: o burguês e o operário.

Com as duras condições de trabalho nas fábricas, os operários passam a se organizar em sindicatos e associações a fim de reivindicar melhores condições de vida. Por sua vez, os burgueses também passam a exigir dos governos garantias e facilidades para seus negócios.

Com as ideias socialistas, anarquistas e liberais surgidas nos séculos XVIII e XIX, os cidadãos passaram a ter um amplo leque de opiniões a respeito da melhor maneira de governar um Estado.

Desta forma, a política passou a se organizar em partidos, com seus defensores e críticos de cada uma dessas bandeiras.

No geral, as ideias políticas do ocidente se dividem em direita, centro e esquerda.

Direita – manutenção das classes sociais com privilégios para os ricos, livre-concorrência, negociação direta com o empregador, etc.

Centro – defesa da liberdade de comércio com os direitos básicos dos trabalhadores assegurados, etc.

Esquerda – defende a abolição das classes sociais, a repartição igualitária das riquezas, garantia dos direitos dos trabalhadores, etc.

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* Bacharelada e Licenciada em História, pela PUC-RJ. Especialista em Relações Internacionais, pelo Unilasalle-RJ. Mestre em História da América Latina e União Europeia pela Universidade de Alcalá, Espanha.

Texto e imagem reproduzidos do site: www todamateria com br

Ielcast ENTREVISTA Dr. Kakay

quinta-feira, 27 de março de 2025

"Ter generais réus é simbólico..."

O ex-presidente Jair Bolsonaro (ao centro) e os generais da reserva Augusto Heleno (à esquerda)e Walter Braga Netto (à direita) podem virar réus a partir de julgamento na 1ª Turma do STF

Publicação compartilhada do site BBC BRASIL de 25 de março de 2025

'Ter generais réus é simbólico. Nenhum militar golpista da história, e foram muitos, jamais foi punido', diz Carlos Fico

Author, Leandro Prazeres

Role,Da BBC News Brasil em Brasília

Twitter,@PrazeresLeandro

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) tornou réus por tentativa de golpe de Estado o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete acusados, entre eles três generais — Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional), Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa), Walter Braga Netto (ex-ministro da Casa Civil).

Os cinco ministros da Primeira Turma decidiram de forma unânime aceitar a denúncia feita pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o chamado "núcleo crucial" que teria comandado uma suposta trama golpista para reverter a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 2022.

O julgamento tem provocado reverberações à esquerda e à direita dada a relevância política do ex-presidente. Mesmo fora do poder, ele é considerado por políticos e especialistas como a maior liderança da direita no Brasil, neste momento.

Mas para o professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Fico, mais importante que a possibilidade de Bolsonaro virar réu por tentativa de golpe é a chance de que isso aconteça aos generais das Forças Armadas.

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"Acho mais importante a admissão (da denúncia) [...] a passagem à condição de réu dos generais Braga Netto e (Augusto) Heleno. Mais até que do que em relação ao ex-presidente Bolsonaro", defende Fico em entrevista à BBC News Brasil.

As defesas de todos, exceto Mauro Cid, alegaram inocência e negaram qualquer participação na suposta tentativa de golpe. Mauro Cid, por sua vez, firmou um acordo de colaboração premiada com a Justiça e admitiu condutas irregulares.

Fico é um dos principais pesquisadores do Brasil sobre o papel dos militares na história política do país e autor de livros como O golpe de 1964: momentos decisivos e atualmente está escrevendo outro sobre todos os golpes ou tentativas de golpe orquestradas por militares no Brasil.

Em entrevista concedida antes da decisão do STF, ele defendeu que o julgamento produziria fatos inéditos na história do Brasil.

Segundo Fico, nunca um ex-presidente e oficiais generais foram processados e julgados por tentativas de golpe de Estado.

Crítico do que ele chama de "tradição intervencionista" das Forças Armadas, ele disse que a ida de oficiais generais como Braga Netto ou Augusto Heleno para o banco dos réus por tentativa de golpe terá um forte impacto.

"Levar esses generais, embora eles estejam na reserva, à condição de réus acusados de planejar um golpe de Estado tem muito significado político e simbólico", afirmou o professor.

Na entrevista à BBC News Brasil, Fico disse, no entanto, que não acredita que o julgamento poderá acabar com a crença entre militares de que eles podem atuar como "poder moderador" da República.

Isso só começaria a acontecer se o Congresso Nacional alterasse a redação do artigo nº 142 da Constituição Federal, afirmou o professor.

Este artigo descreve as atribuições das Forças Armadas e é frequentemente citado por militantes de direita que defendiam uma intervenção militar após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 2022.

Para Fico, é preciso alterar a redação do artigo para acabar com as interpretações de que os militares poderiam atuar como um poder moderador.

Fico também disse não acreditar que o julgamento vai reduzir o eleitorado de Bolsonaro, que o ex-presidente tenta se posicionar como um "mártir" político e defende que o Congresso Nacional não aprove anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023.

"A tradição brasileira de leniência com militares golpistas tem sido muito prejudicial no sentido de fazer persistir esse entendimento equivocado entre os militares de que eles seriam um garantidor da República com direito de intervir em situações de crise", disse o professor.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - O Brasil poderá ter um ex-presidente e oficiais das Forças Armadas na condição de réus por tentativa de golpe de Estado. Qual é a relevância histórica disso?

Carlos Fico - A relevância é o ineditismo. É claro que já houve no passado situações assemelhadas. A mais parecida envolveu o ex-presidente Hermes da Fonseca, que governou o Brasil de 1910 a 1914 e se envolveu numa tentativa de golpe em 1922. Também tem um filho envolvido, o Euclides Hermes da Fonseca, que era o comandante do Forte de Copacabana. Foi o famoso episódio dos "18 do Forte". Esse episódio foi uma tentativa de golpe militar contra o presidente Epitácio Pessoa e, tudo indica, à frente do qual estava o ex-presidente Hermes da Fonseca, que foi preso e foi submetido a um inquérito, mas acabou morrendo antes que o inquérito se concluísse. É o único caso assemelhado e muito distante na história de modo que o envolvimento de um ex-presidente numa tentativa de golpe e ele ser submetido a julgamento é algo inédito. Mas tem algo ainda mais inédito. Vários militares, no passado, já foram submetidos à prisão, no entanto, isso sempre no contexto de crises institucionais muito graves e, por ordem do Executivo. Então, temos um outro ineditismo porque o julgamento desta tentativa de golpe de 2022 está sendo conduzida em período de normalidade democrática e pelo Poder Judiciário, com todas as garantias processuais.

BBC News Brasil - O que mudou na estrutura social e política do Brasil que permite que isso esteja acontecendo?

Fico - O que mudou foi o empoderamento que a Constituição de 1988 deu ao STF e à Procuradoria-Geral da República. Antes de 1988, esses órgãos não tinham o papel privilegiado que têm hoje. Isso tem um impacto muito grande porque as investigações estão se dando num contexto de normalidade democrática e com instituições fortes [...] É esse fortalecimento institucional que garante a normalidade democrática do momento e o possível julgamento dessas pessoas.

BBC News Brasil - Há muitos militantes de direita que concordam que isso só está ocorrendo em razão do empoderamento do STF. Segundo eles, haveria uma espécie de "superempoderamento" do STF. Na sua avaliação, o fato de Jair Bolsonaro e militares poderem virar réus é positivo ou negativo para a sociedade brasileira?

Fico - É altamente positivo que o STF tenha a última palavra sempre, ainda que erre. Do contrário, quem vai decidir? As Forças Armadas? A população nas ruas? Para o perfeito funcionamento da democracia é necessário que o Poder Judiciário tenha a última palavra [...] Se as coisas estão sendo conduzidas de acordo com as regras emanadas pela Constituição, não vejo como isso pode ser considerado negativo. Até porque nós temos uma tradição muito negativa de intervencionismo militar na qual as Forças Armadas se consideravam o poder moderador e teriam a palavra final, como se fosse um equivalente ao poder poder moderador do Império.

BBC News Brasil - Que impacto, se é que algum, esse julgamento vai ter sobre essa tradição?

Fico - Olha… inclusive eu acho mais importante a admissão (da denúncia) [...] a passagem à condição de réu dos generais Braga Netto e (Augusto Heleno)...mais até que do ex-presidente Bolsonaro. Do meu ponto de vista, a qualificação desses dois generais tem mais importância. Levar esses generais, embora estejam na reserva, à condição de réus acusados de planejar um golpe de Estado tem muito significado político e simbólico. Me parece que as Forças Armadas, como se diz na economia, já precificaram uma eventual condenação desses dois generais usando estratégia de distinguir a instituição dos indivíduos que a compõem.

BBC News Brasil - Que sentido simbólico é esse?

Fico - O sentido de que nenhum militar golpista na história do Brasil, e foram muitos, nenhum jamais foi punido. Vou lançar um livro em maio no qual eu demonstro isso estudando todas as tentativas de Golpe desde a proclamação da República até o último, em 2022. Alguns até foram alvo de inquéritos ou processos disciplinares, mas logo o Congresso Nacional aprovou uma anistia [...] Isso vai modificar a realidade da democracia brasileira, que tem essa fragilidade estrutural da presença intervencionista dos militares? Eu acho que não. O que realmente vai alterar esse quadro da tradição de intervencionismo militar no Brasil são outras iniciativas, como a mudança da redação do artigo 142 na Constituição Federal.

BBC News Brasil - Por que, na sua avaliação, esse julgamento não vai mudar a realidade da democracia brasileira?

Fico - Em relação às consequências desse julgamento, eu posso dizer duas coisas. Uma é que, sim, esse julgamento terá um impacto simbólico, sobretudo no interior das Forças Armadas, porque se trata de uma coisa inédita. Mas não me parece que o intervencionismo militar vá se resolver com esse julgamento. Eu acho que a tradição de intervencionismo militar somente vai terminar, numa perspectiva otimista, se a sociedade brasileira, por meio do Congresso Nacional, alterar a redação do artigo 142, mas me parece que isto não está no horizonte. Creio que isso seria fundamental para dizer claramente para as Forças Armadas que elas não são garantidoras dos poderes constitucionais e muito menos poder moderador.

BBC News Brasil - O argumento de Bolsonaro, de que não houve tentativa de golpe por não ter havido uso da força faz sentido?

Fico - Houve uma tentativa de golpe que fracassou supostamente porque a maioria do Alto-Comando do Exército não aderiu — algo bastante preocupante porque, nesse caso, teria havido o apoio de alguns integrantes e os demais não denunciaram a existência do plano [...] O crime em questão é a tentativa. A tentativa de golpe teria sido bem-sucedida se tivesse havido adesão dos militares e emprego, ainda que persuasivo, da força.

BC News Brasil - Há um movimento liderado por militantes de direita defendendo a anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023. Também há um entendimento de que ela poderia beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro. Qual sua opinião sobre essa tentativa de aprovar uma anistia?

Fico - Em todos os episódios de tentativas de golpe de Estado, sempre houve anistia aos militares. Neste caso mais recente, temos a peculiaridade do envolvimento de civis nos episódios de 8 de janeiro de 2023. Provavelmente, surgirá uma pressão, também, em relação à anistia desse núcleo conspirador que vai a julgamento agora. Isso sempre aconteceu. Minha surpresa seria se não houvesse nada nesse sentido [...] Eu espero que não haja a anistia caso haja condenação das pessoas envolvidas, seja no núcleo conspirador, seja em outras atividades igualmente condenáveis.

BBC News Brasil - Por que o senhor espera que não haja anistia?

Fico - Eu espero que não haja porque a tradição brasileira de leniência com militares golpistas tem sido muito prejudicial no sentido de fazer persistir esse entendimento equivocado entre os militares de que eles seriam um garantidor da República com direito de intervir em situações de crise. Vimos os episódios que marcaram o governo Bolsonaro. A todo momento, os generais Heleno e (o ex-vice-presidente Hamilton) Mourão falavam do artigo nº 142 como se ele desse às Forças Armadas o direito de intervir em situações de crise. O fato de ter havido anistia aos militares golpistas na história republicana foi sempre muito negativa porque deu a impressão de que a sociedade não se incomodava.

BBC News Brasil - Os atuais defensores da anistia aos envolvidos no 8 de janeiro têm feito uma comparação com a campanha da anistia que resultou na lei da anistia de 1979. É possível comparar uma coisa à outra?

Fico - As pessoas que fazem essa comparação não conhecem a história do Brasil [...] Há pessoas que se referem à ditadura militar e dizem: "Ah! Mas não vão ver os dois lados?". Mas que dois lados? Na esquerda, que se posicionou contra a ditadura militar, ou as pessoas foram mortas ou os que não foram mortos foram presos, julgados e condenados por uma justiça militar muito dura. Foram milhares de condenações de opositores do regime pela justiça militar. A campanha da anistia visava dar anistia a pessoas que foram condenadas de forma muito brutal e aos que conseguiram sobreviver à tortura [...] Não há equivalência possível entre a atitude de oposição a um regime ditatorial que matava e torturava e o momento atual.

BBC News Brasil - Qual o risco de aumento da polarização política no Brasil em função deste julgamento envolvendo Bolsonaro e militares?

Fico - Não gosto da palavra polarização porque dá a impressão de que a gente está vivendo uma coisa inédita do ponto de vista político como essa contraposição entre setores. Isso sempre acontece [...] É claro que o julgamento do ex-presidente Bolsonaro e do restante do núcleo conspiratório vai ser também utilizado por todos os setores políticos como arma de proselitismo político.

BBC News Brasil - Que efeitos esse julgamento terá para o tamanho do bolsonarismo?

Fico - Não faço ideia. O que a gente tem percebido em relação a essas lideranças de extrema direita, não só aqui no Brasil, mas em outras partes do mundo, é que mesmo quando elas estão envolvidas em situações criminosas, ainda assim, o seu eleitorado se mantém fiel [...] Ele (Bolsonaro) não me parece ter perdido, até o presente momento, o seu eleitorado mais fiel. Não sei se uma eventual condenação terá impacto do ponto de vista da fidelidade do seu eleitorado.

BBC News Brasil - Na sua avaliação, qual a probabilidade de Bolsonaro se transformar numa espécie de mártir político a partir desse julgamento?

Fico - Tornar-se mártir é tudo o que o ex-presidente Jair Bolsonaro está tentando fazer. Ele tenta se colocar como vítima, o que é uma estratégia bastante comum de lideranças políticas que são pegas pela Justiça. Agora, essa estratégia vai emplacar? Realmente, eu não sei. Provavelmente, entre o eleitorado mais fiel vai emplacar [...] Agora, para a sociedade como um todo, eu não sei. Muito provavelmente não vai colar porque ao longo do julgamento, sobretudo se esse julgamento for transmitido pela TV Justiça, vão ficar evidentes essas provas que foram colhidas pela Polícia Federal e elas são muito eloquentes [...] Muitas vezes, as coisas dependem não apenas das tecnicalidades da Justiça, mas da maneira como a justiça é feita.

Texto e uma imagem reproduzidos do site: www bbc com/portuguese

terça-feira, 25 de março de 2025

“Vou embora: desisti do Brasil”


 Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 23 de março de 2025

“Vou embora: desisti do Brasil”

Querido amigo: eu lhe desejo todo o sucesso. Que Deus te abençoe e você prospere no lugar para onde está indo. Eu espero que um dia você possa voltar. Nesse meio tempo, reze pelos que ficam. Roberto Motta para a Gazeta do Povo:

Essa é uma semana difícil. Uma das pessoas que mais respeito e admiro, um cidadão brasileiro, carioca, morador do Rio de Janeiro, me disse que está indo embora. Suas palavras foram: “Roberto, estou de mudança para o exterior. Tenho dois filhos pequenos e desisti do Rio de Janeiro e do Brasil”.

Levei um choque. Essa pessoa – cujo nome não revelarei – é um dos maiores empreendedores do país, um fenômeno de criatividade, inteligência e habilidade em usar tecnologia para desenvolver novos negócios. Se ela vivesse nos Estados Unidos provavelmente teria alcançado projeção equivalente à de Elon Musk e seria conhecida em todo o mundo. Mas aqui tudo é difícil e complicado, tudo exige pedágio e paciência. Aqui, além de talento e trabalho duro – ou seria melhor dizer, no lugar de talento e trabalho duro – você precisa de muita sorte e dos amigos certos, e, ainda assim, coisas terríveis podem acontecer com você. Por isso meu amigo está partindo.

Ele reuniu os filhos, a esposa e outros parentes e vão embora. Levarão na mala ideias, sonhos, projetos e oportunidades de investimento e criação de empregos. Ele leva muita coisa boa que poderia acontecer no Brasil, mas que agora vai acontecer no país para o qual ele vai se mudar. As coisas que ele criaria aqui agora serão criadas lá.

Não sei qual foi a gota d’água que o fez partir, mas não é difícil pensar em possibilidades. Pode ter sido um crime do qual ele, ou um familiar, foi vítima. O Brasil é um país que flerta com a possibilidade de se tornar um Estado dominado por facções. Pode ter sido insegurança jurídica: ninguém sabe quais leis valem hoje ou valerão amanhã, e ninguém sabe quando aquela jurisprudência tributária que seguimos há décadas ou anos será anulada, com cobrança retroativa de impostos. Vivemos um UFC jurídico.

A razão da partida pode ter sido o renascimento da censura. Dar uma opinião virou atividade perigosa. Pessoas são punidas por palavras com severidade desconhecida por traficantes e sequestradores. O Estado debocha dos seus servos, exigindo impostos cada vez maiores para bancar gastos sem controle. Como a arrecadação nunca mata sua fome, o Estado produz a inflação que corrói o dinheiro. O Estado interventor em tudo interfere, enquanto se nega a cumprir sua missão principal: proteger os direitos fundamentais. O direito de ir e vir, o direito de falar e o direito de propriedade se tornaram favores que o Estado brasileiro faz e que podem cessar a qualquer momento.

Pessoas de bem, cansadas disso tudo, compram uma passagem para um lugar civilizado e vão embora. Morei cinco anos nos Estados Unidos e nunca conheci um brasileiro que tivesse se mudado para lá e que não tivesse prosperado. Nos Estados Unidos não existe CLT, ninguém tem “carteira assinada” e as leis não determinam trinta dias de férias – mas as pessoas prosperam. Os americanos começam uma nova era. Trump chamou para si a missão de reduzir o Estado. Começa um ciclo virtuoso: um Estado menor estimulará a iniciativa privada, serão gerados novos empregos, os salários serão melhores e as pessoas vão comprar mais, o que criará mais empregos. Enquanto isso, no Brasil, discutimos ideias de 50 anos atrás e a lei é colocada, mais uma vez, a serviço dos poderosos. Os EUA avançam na repressão ao crime enquanto o Estado brasileiro continua oferecendo proteção quase sagrada aos criminosos.

Não sei por qual dessas razões meu amigo está indo embora do Brasil. Sei que ele vai e eu fico – desanimado com sua partida, mas trabalhando para que um dia o Brasil se torne um país decente, onde prosperaremos com nosso trabalho, livres dos parasitas criminosos e estatais.

Querido amigo: eu lhe desejo todo o sucesso. Que Deus te abençoe e você prospere no lugar para onde está indo. Eu espero que um dia você possa voltar. Nesse meio tempo, reze pelos que ficam. 

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

sábado, 22 de março de 2025

Nas ditaduras, a vida não tem paredes e nem mesmo os sonhos estão a salvo

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 18 de março de 2025

Nas ditaduras, a vida não tem paredes e nem mesmo os sonhos estão a salvo.

Escritora mostra os sonhos que os alemães tiveram entre 1933 e 1939. João Pereira Coutinho para a FSP:

Alguém dizia que o verdadeiro problema de estar preso é não poder trancar a porta por dentro.

Nunca estive preso. Mas imagino que esse seja o maior dos terrores: a porta se abre a qualquer momento para que o Estado exerça a sua violência sobre nós.

Em ditadura, deve ser a mesma coisa. Aliás, o que é uma ditadura senão uma prisão coletiva?

O filme "Ainda Estou Aqui" ilustra essa dinâmica na perfeição. Verdade: os jagunços batem à porta dos Paiva. Mas é apenas uma cortesia ilusória.

A invasão do espaço íntimo, com seu cortejo de abusos e boçalidades, é o prelúdio de um crime maior: o assalto a uma família e a destruição física de um dos seus membros.

Para o poder ditatorial, a vida não tem paredes, eis o ponto. Só os sonhos estão a salvo, embora haja quem discorde: a escritora alemã Charlotte Beradt (1907–1986) dedicou-se a registrar os sonhos que os alemães tiveram entre 1933 e 1939 para mostrar os tentáculos invisíveis do totalitarismo.

O resultado é uma obra-prima intitulada "O Terceiro Reich do Sonho", traduzida para o português por Mário Gomes e publicada pela editora lusa VS. É um dos meus grandes livros do ano.

Não há violência física nesses sonhos, porque Beradt optou por não publicar esses relatos. Curiosamente, Walter Salles também ocultou essa dimensão mais primitiva e bárbara. Entendo. Não devemos dar aos algozes a alegria de contemplarem suas próprias atrocidades.

A violência assume outra forma: a transformação do cotidiano em um "estado de exceção", onde não há lugar para segurança e previsibilidade e onde até os objetos mais banais se tornam provas incriminatórias.

Ou então, em vozes inquisitoriais, repetindo mecanicamente a propaganda do regime ou acusando os indivíduos de suas falhas e misérias, como em "1984", de George Orwell.

Os alemães sob Hitler sonhavam que as palavras mais inocentes —"eu", "Deus", "infelicidade"– os condenavam de imediato. Sonhavam que os próprios pensamentos estavam sob escuta. Sonhavam em língua estrangeira (e estranha) para que nem eles pudessem decifrar o que diziam ou pensavam.

Entre 1933 e 1939, sonhou-se muito com narizes grandes e peles morenas, mesmo entre os "arianos", como se as dimensões do corpo ou a pigmentação da pele fossem marcas de infâmia.

Documentos ou passaportes eram constantes nesses filmes oníricos. Como se o papel certo, ou errado, fosse a diferença fundamental entre a vida e a morte. Ver os documentos destruídos, perdidos, esquecidos –o maior dos pesadelos, no sentido literal e metafórico.

E que dizer da professora de matemática que sonhava recorrentemente com uma Alemanha onde até a matemática tinha sido proibida?

Ela, apesar de tudo, conseguia ainda escrever algumas equações em segredo, como se os números a mantivessem ligada a uma vida que perdera.

No livro de Beradt, dois sonhos em especial possuem qualidades literárias que os elevam acima de um simples documento histórico. Poderiam ter sido escritos por Kafka, não fosse ele já o autor de todos os pesadelos possíveis.

O primeiro, recorrente, pertence a um industrial alemão, social-democrata, que recebe a visita de Goebbels na sua fábrica. Em frente aos trabalhadores, o homem demora 30 longos minutos a levantar o braço para fazer a saudação nazi.

Numa das versões, o esforço é tanto que o industrial quebra a coluna, como se fosse um boneco enferrujado.

No segundo sonho, um médico antinazista é chamado de urgência para tratar Hitler. O homem vai, cura o ditador, é elogiado por ele –e sente orgulho pelo seu feito ao mesmo tempo em que chora de vergonha por sentir orgulho.

Nos dois casos, a violência não vem apenas do regime, mas também dos próprios indivíduos contra si mesmos. Essa é uma das conclusões de Charlotte Beradt sobre o totalitarismo: o medo e o terror são tão interiorizados que os indivíduos acabam se tornando "cúmplices" involuntários da própria submissão.

Aliás, se dúvidas houvesse, a autora apenas cartografou um único sonho em que Hitler era assassinado. Matar o tirano era não só indizível como inimaginável.

Nessa galeria de sonhos, Beradt dedica um capítulo aos sonhos dos judeus, que, estranhamente, tragicamente, oscilam entre a tentativa de cortejar as boas graças de Hitler e a imperiosa necessidade de fugir dele.

Num desses sonhos, um judeu viaja ao Único País que não Odeia Judeus (assim referido), atravessando as terras geladas da Lapônia. Mas, ao chegar à fronteira da salvação, até essa última porta se fecha na sua cara.

Entre as portas que não conseguimos trancar e aquelas que não conseguimos abrir, que venha o diabo e escolha.

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segunda-feira, 17 de março de 2025

Tarcísio se afunda em contradições em ato pró-Bolsonaro

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 16 de março de 2025

Tarcísio se afunda em contradições em ato pró-Bolsonaro

O único candidato potencial que discursou neste domingo foi Tarcísio. Quando ele pediu a volta de Bolsonaro, era como se estivesse pedindo voto em si mesmo. Diogo Schelp para o Estadão:

Como era previsto, a manifestação em Copacabana deste domingo, 16, convocada com o mote de defender a anistia para os condenados pela agitação golpista de 8 de janeiro de 2023, não passou de mais um ato pró-Bolsonaro. O curto discurso do governador Tarcísio de Freitas expôs a lógica que começa com a promessa de fazer justiça para “inocentes humildes” e termina com um chamado pela volta de Jair Bolsonaro ao poder. Minuto após minuto, Tarcísio afundou em contradições.

A fala do governador de São Paulo dividiu-se em quatro blocos argumentativos. No primeiro, tangenciou a narrativa, difundida pela ala mais radical do bolsonarismo, de que o Brasil vive uma ditadura do Judiciário. Tarcísio definiu o ato no Rio de Janeiro como um ponto de inflexão na história do Brasil, mais especificamente na luta pela liberdade. E questionou: “Qual é a razão de afastar Jair Bolsonaro das urnas?” Ele mesmo respondeu, de forma direta: para impedi-lo de chegar ao poder. Com isso, Tarcísio aderiu à tese de que os julgamentos que tornaram Bolsonaro inelegível tinham motivação política.

Se é assim, o governador concorda com a tese de que a atuação da cúpula do Judiciário brasileiro é ilegítima. Mas não é isso que ele transparece no dia a dia como governador. Quando há interesses da sua gestão que esbarram em decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, Tarcísio joga dentro das regras e reconhece a legitimidade dos julgadores — como ocorreu recentemente ao convidar o presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, para uma apresentação sobre as câmeras corporais da polícia paulista.

No segundo bloco de seu discurso de cerca de seis minutos, Tarcísio abordou o tema oficial da manifestação. Pediu anistia aos “inocentes” de 8 de janeiro. E comparou a punição imposta a eles pelo STF ao destino dos envolvidos nos escândalos revelados pela Operação Lava Jato. “Os caras que assaltaram o Brasil, que assaltaram a Petrobras, voltaram à cena do crime”, disse Tarcísio. “Parece haver Justiça nisso?” Ela dá a entender que a única maneira de igualar as coisas, de realmente fazer justiça, é concedendo anistia “para aqueles que nada fizeram”, referindo-se aos vândalos com intenções golpistas de 8 de janeiro.

Aqui, Tarcísio afunda-se ainda mais em contradições. Primeiro, porque como governador ele não tem demonstrado constrangimento algum em interagir e até mesmo trocar elogios com algumas dessas pessoas que “assaltaram o Brasil”, a começar pelo presidente Lula, com quem se encontrou recentemente em meio a mesuras mútuas e públicas. O Tarcísio pragmático do governo estadual, que diz ser necessário deixar diferenças políticas de lado pelo bem da população, não estava presente na manifestação pró-Bolsonaro.

Segundo, porque a impunidade da Lava Jato não justifica a impunidade de quem ansiava pela ruptura da ordem democrática. Terceiro, porque uma anistia pressupõe uma admissão de culpa. A origem da palavra, em latim, tem o significado de esquecimento. Não se pode esquecer ou perdoar algo que não aconteceu. Se os condenados de 8 de janeiro são inocentes, como diz Tarcísio e todos os que estavam naquele carro de som em Copacabana, então não há nada a ser anistiado. Se foram condenados injustamente e por motivação política, sem direito ao devido processo legal, a solução é passar uma borracha em tudo ou reformar o sistema judicial? Esquecimento e reforma são caminhos distintos.

Ao lado da suposta “inocência” dos condenados de 8 de janeiro, Tarcísio expôs no terceiro bloco de seu discurso as motivações adicionais para a anistia. Ela seria necessária, segundo ele, “para que a gente tenha pacificação” e “possa se dedicar aos temas nacionais”. O governador passa, então, a elencar uma série de problemas do País que supostamente não estariam sendo abordados e resolvidos por conta de uma ausência de “pacificação”. Envelhecimento da população, financiamento do SUS, inflação, gastos públicos. Tudo isso estaria sem solução, a julgar pelo que disse Tarcísio, porque o país está Paralisado por algum tipo de conflito social ou político.

A premissa é evidentemente falsa. Não há sinais de convulsão social ou política no país. Ninguém está deixando de discutir o SUS porque algumas pessoas foram condenadas por tentar incitar as Forças Armadas a dar um golpe dois anos atrás. Existe um governo federal razoavelmente impopular e uma oposição que tem explorado essa debilidade, mas estamos distante da necessidade de “pacificação” de que fala Tarcísio. A anistia, nos termos propostos pelo bolsonarismo, só interessa ao bolsonarismo. O próprio Tarcísio, como governador, tem se beneficiado de um contexto republicano menos combativo e atribulado do que aquele vivido durante o governo Bolsonaro.

No quarto bloco de seu discurso, Tarcísio retorna ao argumento de que a solução para os males do país reside no retorno de seu mentor político ao poder. “Se está tudo caro, volta Bolsonaro.” Segundo ele, no governo do padrinho “o Brasil era diferente” e é apenas com ele, “fruto de um milagre”, que será possível “libertar o Brasil da esquerda”. A contradição, nesse trecho, era a própria presença de Tarcísio no palanque. Ele é o nome mais forte para suceder Bolsonaro como candidato presidencial. O fato concreto é que Bolsonaro está duplamente inelegível e está prestes a se tornar réu por tentativa de golpe de Estado. O resto que foi discutido no ato em Copacabana, a começar pela ideia de anistia extensível a Bolsonaro, depende de inúmeras variáveis para se tornar realidade. Estando Bolsonaro inelegível, o único candidato potencial que pegou no microfone neste domingo foi Tarcísio. Quando ele pediu a volta de Bolsonaro, era como se estivesse pedindo voto em si mesmo.

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domingo, 16 de março de 2025

O que realmente importa

John Rawls

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 15 de março de 2025

O que realmente importa

Geração de riqueza e redução da pobreza andam juntas. Fernando Schüler para a revista Veja:

“A desigualdade mata”, leio em um desses artigos de “combate”, que fazem a festa do ativismo político, baseado em um “relatório” sobre a desigualdade global. Dados impressionistas sobre disparidades econômicas, imagens dos bilionários da lista da Forbes e a sugestão de que é “deles” a culpa pelas nossas desgraças. Tudo se passa como se houvesse um estoque fixo de riqueza no planeta. Algo como bolinhas de gude em um pote. Se alguma criança pega bolinhas demais, sobram menos para os amiguinhos. A retórica é perfeitamente falsa. Sergey Brin, do Google, ficou rico não porque capturou algum dinheiro dos demais, agarrado ao Estado, mas porque as pessoas, por seu próprio juízo, melhoram a vida usando seus buscadores de informação. Vale o mesmo para os compradores de livros na Amazon (eu, por exemplo), os usuários do Whats­App, de Zuckerberg, os agricultores que usam a Starlink, de Elon Musk. Do outro lado do mundo, 200 000 pessoas são internadas, todos os anos, no Brasil, por falta de saneamento básico. E isso não porque o saneamento funciona bem em Maringá ou Uberlândia. Ou porque Bill Gates tem uma mansão com 24 banheiros. O sofrimento não deriva da diferença entre quem vive sob más condições e quem tem um bom serviço, mas dos erros de políticas públicas. Do atraso do modelo estatal e da falta de investimento ao longo dos anos. É disso que seria vital tratar, se houvesse uma preocupação real com a vida dessas pessoas.

Ainda agora li uma teoria estranhíssima sobre o tema. O “limitarismo”, da filósofa holandesa Ingrid Robeyns. A teoria diz que é preciso pôr um teto na riqueza que cada um pode ter. Nossa cantora Anitta já havia sugerido algo assim. E arriscado até um valor: 1 bilhão de dólares. À época, me perguntei o que a pessoa deveria fazer quando sua grana chegasse a esse patamar. Doar o dinheiro e ir morar na Praia da Pipa? Continuar trabalhando por esporte? Por que os incentivos de mercado deveriam valer até o ponto “X”, para logo depois serem jogados pela janela? Seus argumentos me soaram frágeis. Um deles diz que “ninguém precisa de tanto dinheiro assim”. Sob certo aspecto, é verdade. Musk costuma dormir num colchão em suas empresas. Alguns vivem melhor, é verdade. O ponto é que grandes empreendedores usam seu capital para investir, criar negócios, fazer filantropia (sugiro pesquisar The Giving Pledge). Não porque “precisam”, em algum sentido popularesco. Outro argumento diz que muitos ricos são perigosos porque podem usar o dinheiro para lobby político. É verdade. Mas isso depende de muito dinheiro? Os maiores lobbies no Congresso vêm das altas carreiras do setor público, contra o teto salarial; dos militares, contra reformar sua previdência; da Zona Franca de Manaus, para manter os incentivos; dos sindicatos e agregados da educação estatal, mantendo o monopólio. É sobre isso que deveríamos perguntar: a riqueza foi ganha em um ambiente aberto, no mercado, ou via pressão, no mundo político?

Para ter uma boa pista sobre como a economia está longe de ser um jogo de soma zero, vale observar o que se passou com os dois maiores casos de redução da pobreza nos últimos quarenta anos: China e Índia. A China reduziu a pobreza extrema virtualmente a zero, depois que se livrou do maoismo e fez sua guinada para o mercado. A Índia foi de metade da população na extrema pobreza, no início dos anos 90, para menos de 1%, por agora. E aqui vem o detalhe: foram os dois países com maior crescimento de bilionários nesse mesmo período. Enquanto a miséria despencava, os bilionários chineses foram de nenhum a 408; os indianos, de 3 para 209, no ano passado. Não passa de um mito a ideia de que exista alguma contradição entre a geração de riqueza, de um lado, e a redução da pobreza, de outro. Ao contrário: são dois lados do mesmíssimo fenômeno de abertura e dinamização da economia.

O filósofo austríaco Helmut Schoeck escreveu um livro provocativo, ainda nos anos 60 (e hoje um tanto esquecido), tentando entender (entre muitas coisas) de onde vem o “ódio aos mais ricos”. O título da obra: A Inveja: uma Teoria da Sociedade. Ele vê a inveja tanto como uma força positiva como negativa em nossa vida. O lado positivo surge quando ela é “domesticada”, no mercado. Do sujeito que diz: “Vou mostrar a eles do que sou capaz”, e age dentro da regra, trabalhando duro. Quando mal direcionada, é força destruidora. Se torna Salieri, o bom músico, ainda que não genial, e sua relação tóxica com Mozart. Ou quem sabe um bocado de gente gastando energia em odiar empreendedores globais, em vez de se preocupar com o que realmente pode fazer a diferença na vida dos mais pobres.

A melhor resposta a esse dilema foi dada por um tranquilo professor de Harvard, John Rawls. Sua tese: em vez de combater a desigualdade, por si só, por que não fazer com que ela funcione em benefício dos que estão na pior? Ele nos pede para imaginar a seguinte situação: estamos reunidos para escolher as regras de justiça na sociedade. Temos muitas opções. Renda mínima? Mais ou menos desigualdade? Limitarismo? Livre mercado? Detalhe: ninguém sabe o lugar que vai ocupar nesta mesma sociedade. O que cada um escolheria: a sociedade “A”, mais igualitária, mas onde os mais pobres, vamos supor, ganham em média 1 000 reais? Ou a sociedade “B”, mais desigual (vamos imaginar: com Musk e Bezos na vizinhança), mas onde os mais pobres têm uma condição duas vezes melhor? Ou quem sabe: viver na China mais pobre e igual, por volta de 1980? Ou na China fortemente desigual, mas virtualmente sem pobreza, em 2025? Resumo da ópera: apenas a inveja, ou ao menos seu lado sombrio, identificado por Schoeck, faria com que as pessoas escolhessem a sociedade “A”. Uma escolha coletivamente irracional. O ponto não é que não seja natural ambicionar a posição dos outros. O ponto é que usar esse sentimento como parâmetro para as escolhas sociais fará com que todos se tornem perdedores. Algo como: “Eu aceito perder, desde que os outros percam mais do que eu”. O que nunca fez nem fará o menor sentido.

O melhor é mudar o foco. Em vez de gastarmos tempo e energia esbravejando com os resultados de Larry Page, no Google, ou de Larry Ellison, na Oracle, deveríamos nos preocupar com o que realmente importa. Se o ponto é universalizar o saneamento, por exemplo, por que não dar segurança para atrair investimento e fazer uma boa modelagem, com metas e bons contratos? Coisas que já se faz em muitos lugares, que avançaram com uma boa política, como o marco do saneamento. E que rigorosamente nada têm a ver com o valor das ações da Tesla ou da Amazon. É previsível que coisas como segurança jurídica, incentivos e investimento não sejam propriamente excitantes. São temas “a favor”, e não “contra”. Não polarizam, não geram likes e são impróprios para a guerra política, como é o tema da “desigualdade”. E quem sabe exatamente aí resida o problema sobre o qual valeria pensar.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Publicado em VEJA de 14 de março de 2025, edição nº 2935

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com 

sexta-feira, 14 de março de 2025

A direita está organizada, enraizada e pronta para o combate contra o PT

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 12 de março de 2025

Muito além de Bolsonaro: A direita está organizada, enraizada e pronta para o combate contra o PT.

O movimento vai além da liderança de Bolsonaro e tem mais a ver com valores de uma população majoritariamente a favor da redução da maioridade penal, contrária ao aborto e que rejeita a “ideologia de gênero". Fabiano Lana para o Estadão:

O presidente Lula imagina que um eventual sucesso na área econômica, somado com uma estratégia massiva de comunicação, incluindo bilhões em propaganda, seja suficiente para reverter a erosão constada em sua popularidade e abrir caminho para a reeleição. A questão é muito mais profunda e essa tese é uma ilusão. Há uma disputa moral em jogo e o que os integrantes do governo têm a apresentar neste momento são princípios que fogem à maioria da população. E, pior, a nova tábua de valores da sociedade, em sua maioria, acaba por confrontar pontos dogmáticos da esquerda.

O Brasil tem mudado de maneira vertiginosa. Tome-se um exemplo a princípio isolado, mas que pode ser um microcosmo do todo que se apresenta: qualquer estudante de “humanas” das últimas décadas, sobretudo dos anos 80 e 90, se deparou em algum momento com a coleção “Primeiros Passos”, em que autores dissertavam sobre temáticas como socialismo, racismo, história, entre outros, em livros curtos e didáticos. O tema “ideologia”, por exemplo, foi escrito pela filósofa Marilena Chauí, aquela que odeia a classe média. Era época em que ninguém se assumia “de direita”, não só na área cultural ou acadêmica, mas também na política. Um cara ser de “direita” era sinônimo de ser visto como um tremendo esquisitão a afugentar as meninas.

Se a gente faz um corte e pula vinte anos na história, ser de esquerda ainda tem lá o seu, digamos, charme – cada vez menor. Mas não mais o monopólio das atrações. A direita se estruturou e se organizou de maneira admirável, de maneira a preencher todos os vácuos de décadas em que permaneceu submersa na opinião pública e, principalmente, publicada, da sociedade brasileira.

Para começar, percebam, nas maiores livrarias do Brasil, que não é tão fácil encontrar algum exemplar dos “Primeiros Passos”. Mas é possível comprar exemplares da coleção “O Mínimo sobre”, também de bolso, com temas como racismo, conservadorismo, doutrinação, arte, “Olavo de Carvalho” e Ideologia de gênero, entre outros, no catálogo.

Sim, é como se a “Primeiros Passos” tivesse se virado à direita. Vejam um trecho do livro sobre feminismo da coleção, escrito pela historiadora e agora deputada estadual pelo PL-SC, Ana Campagnolo. “Diferentemente do que fazem crer as feministas, as mulheres foram inseridas no mercado de trabalho por uma transformação social sem premeditação e não por uma luta organizada de um movimento das mulheres”, afirma a obra, na totalidade dedicada a confrontar o que se chama de feminismo.

Mas a coleção “O mínimo sobre” é apenas uma margem de um movimento muito maior de domínio. Por exemplo: se aparece alguma notícia desfavorável à direita ou aos seus líderes em algum órgão, há uma miríade de influencers, youtubers, twitteiros a busca desmentir, a tentar passar uma versão mais favorável. Logo, esses contra-ataques, imediatos, circularão nos grupos de WhatsApp da escola, das famílias, do trabalho. Muitas vezes com moralismo, indignação, deboche ou humor. As redes sociais são a ferramenta de combate e há a indicação clara do que é preciso seguir para se informar. É algo que não se vê paralelo na esquerda neste momento.

A produtora Brasil Paralelo também faz parte desse mecanismo de doutrinação, com produções próprias, indicações de filmes, na busca de direcionar como se deve pensar sobre cada assunto. Os valores em geral são claros em todo esse ecossistema: família, pátria, religião, hierarquia, obediência, mérito individual por qualquer conquista econômica obtida, loas à livre iniciativa, trabalho, e, transversalmente, o anti-esquerdismo. Ultimamente, com a ascensão de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos, até mesmo o liberalismo mundial tornou-se um inimigo a combater (nesse caso especial, por razões diferentes, estão juntos com a esquerda numa comprovação prática da chamada da teoria da ferradura, na qual os polos opostos tendem a convergir seus pensamentos).

Padres, pastores, também possuem seu papel nessa reorganização da direita. O Frei Gilson, que atrai milhões de pessoas nas suas missas pela madrugada com uma mensagem conservadora (ou quiçá reacionária) de submissão da mulher ao homem, é apenas mais um personagem desse sistema que tem sabido falar rápida e diretamente com uma parcela gigantesca da população. Quando publicações e influencers da esquerda criticaram sua postura e seus pensamentos, na semana passada, foi imediatamente defendido por milhares. Até mesmo o papa Francisco, com seus valores “progressistas”, foi substituído por outros religiosos com concepções diferentes de mundo.

Esse movimento vai muito além da liderança de gente como Jair Bolsonaro (seu papel político foi tirar muita gente do armário reacionário). Tem estrelas como o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), Pablo Marçal ou o cantor Gusttavo Lima. Mas é algo que tem a ver mais com a exacerbação de valores de uma população que é majoritariamente a favor a redução maioridade penal; contra a legalização do aborto (mas não favoráveis à prisão da mulher); contra a descriminalização das drogas; querem punição rigorosa para qualquer tipo de delito, a partir do roubo de celular, que penaliza bastante as pessoas mais pobres, não só a classe-média alta do bairro Pinheiros, de São Paulo; que não sabe muito bem o que é, mas rejeita a tal “ideologia de gênero” e por aí vai.

A paralisia da esquerda nessa guerra cultural é notável atualmente. O confronto político tornou-se desigual. Talvez, de fato, a inflexão da luta de classes para as chamadas pautas identitárias não tenha conquistado mentes e corações. Quando um trabalhador pardo da periferia é tido como opressor apenas por ser homem, é razoável que ele procure votar numa força política que se oponha a isso, não é mesmo? Enquanto a esquerda colocava todo mundo contra todo mundo, a direita, de maneira pulverizada, desordenada, mas com mensagem coesa, se preparou com afinco para colocar todo mundo contra a esquerda. O ano de 2026, nas eleições presidenciais, será o tira-teima desta disputa, que é mundial, em palco brasileiro.

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quinta-feira, 13 de março de 2025

Massacre na Síria

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 11 de março de 2025

Mulheres forçadas a desfilar nuas e fuziladas: as regras do Oriente Médio islâmico.

Massacre na Síria é uma lembrança brutal de que ainda impera a lei do olho por olho e a vingança é prática comum de países tribais. Vilma Gryzinski:

“Eles bem que mereceram”. Esta é a verdadeira reação não divulgada de muitos sírios que não pertencem à minoria religiosa dos alauítas. O presidente interino – tomou o poder na ponta do fuzil – Ahmed Al-Shara pode ter fingido uma condenação, condizente com o horror do mundo exterior ao ver cerca de 1,3 mil pessoas fuziladas, incluindo crianças e mulheres obrigadas a desfilar nuas antes da execução, mas a verdade é que a violência em Latakia, Tartus e outras cidades onde os alauítas têm uma presença maior não foi uma reação isolada e descontrolada de “milícias” não controladas pelo novo regime.

Tudo obedece à lógica tribal: os alauítas são a seita do presidente Bashar Al Assad, que, tipicamente, os largou à própria sorte e fugiu para Moscou quando uma ofensiva de rebeldes islamistas conseguiu chegar a Damasco em apenas dez dias, no fim do ano passado. De acordo com a mentalidade tribal, Assad aparelhou as forças repressivas com sua própria turma.

Quando a sorte mudou de lado, os que não conseguiram fugir do país, fossem militares responsáveis por crimes hediondos, fossem civis inocentes, tornaram-se alvo de perseguições. Os episódios de extrema violência dos últimos dias foram desencadeados por um ataque de militares alauítas não desmobilizados contra forças dos novos donos do poder. Daí o “eles bem que mereceram”.

A repressão, como sempre, foi muito além dos combatentes armados e atingiu predominantemente civis não envolvidos na resistência.

DÉSPOTAS SANGUINÁRIOS

É a lei do olho por olho, dente por dente levada ao extremo. Ou, como chamou o jornalista Thomas Friedman, “as regras de Hama”. Quando era correspondente no Líbano, em 1982, ele conseguiu entrar na Síria para ver como havia sido barbaramente reprimida uma rebelião inspirada pela Irmandade Muçulmana, um movimento islamista de muçulmanos sunitas.

O manda-chuva na época era Hafez Assad, o pai de Bashar, que havia liderado o único golpe do mundo dado por integrantes da Força Aérea, justamente por nessa arma se concentravam oficiais alauítas, uma seita minoritária e esotérica, com vários elementos da vertente xiita do Islã e outros únicos.

Depois de dominar a rebelião, Hafez Assad mandou demolir bairros inteiros de Hama, soterrando cerca de 20 mil pessoas. Máquinas de terraplanagem compactaram o que havia sobrado. Tudo ficou parecendo um enorme estacionamento. Friedman concebeu ali na cidade de mesmo nome a ideia das “regras de Hama”: inspirar tanto terror, pela extensão da repressão, que ninguém nunca, jamais pensaria outra vez em se rebelar.

Nada de novo, obviamente. O reinado do terror é comum, e até esperado, em países onde conceitos de direitos individuais, livre exercício da crítica, liberdade de pensamento e de religião e alternância no poder nunca existiram ou, no máximo, criaram uma finíssima casquinha de modernidade. Justamente alguns dos ditadores mais antenados na modernização, como o próprio Hafez Assad e o iraquiano Saddam Hussein, ambos originários do Partido Baas, socialista e nacionalista na origem, formaram entre os déspotas mais sanguinários.

CORTINA DE FUMAÇA

Quando começou a nova rebelião na Síria, inspirada pela Primavera Árabe, muitos acharam que Bashar Assad não teria a mesma mão implacável do pai. Pois ele se revelou mais brutal ainda: apelou ao Irã, que na condição de regime xiita tem entre seus principais inimigos os islamistas sunitas, e fez um acordo com a Rússia. Conseguiu sobreviver durante dez anos, um espanto, considerando-se que 70% da população da Síria é sunita. A guerra civil deixou um número calculado em 600 mil mortos e milhões de refugiados.

Agora, muitos sírios pensam na vingança, apesar das múltiplas declarações em nome da unidade nacional acima das divisões sectárias. Tudo cortina de fumaça. Os alauítas serão repetidamente perseguidos e não é muito melhor a situação das múltiplas confissões cristãs. Em nome da sobrevivência, minorias cristãs se colocaram sob a proteção dos Assad. Já estão pagando um preço desde que rebeldes islamistas tomaram áreas do interior da Síria e agora que comandam todo o país, a situação fica mais premente. Os novos donos do poder procuram apresentar uma face civilizada e até nacionalista – um conceito rejeitado pelos princípios islamistas.

Ahmed Al-Shara trocou a túnica tradicional pelo terno e gravata, usados até com camisa preta, uma combinação algo mafiosa. Tem o apoio da Turquia e de países do Golfo e talvez até uma “mentoria” para passar uma imagem aceitável. Quer se apresentar como um governante legítimo que prega a conciliação e algum dia, talvez, quem sabe, convoque eleições. Pura encenação. Continuam valendo as “regras de Hama”, talvez apenas rebatizadas de “regras de Latakia”. Obrigar mulheres a se despir para a humilhação final antes da morte faz parte delas.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

terça-feira, 11 de março de 2025

O caminho estreito da tradição liberal

Artgo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 10 de março de 2025

O caminho estreito da tradição liberal

Foi um erro enxergar o mundo dos direitos como um 'estorvo'. Fernando Schüler para a Veja:

“O liberalismo foi sempre um caminho estreito no Brasil.” A frase me foi dita em uma noite fria de Porto Alegre, nos anos 1990, em um debate sobre nossa (esta sim) longa tradição autoritária. Volta e meia lembro dela, no Brasil dos últimos anos. A lembrança veio de novo lendo o recém-divulgado Democracy Index 2024, relatório sobre a democracia global da Economist Inteligence Unit. O estudo diz que o Brasil foi o país que mais perdeu posições no grupo das “democracias frágeis”, com a previsível exceção da Coreia do Sul. O relatório fala da nossa polarização excessiva, da política convertida em jogo de soma zero, e a um momento toca na ferida: “O Supremo Tribunal Federal passou dos limites”. Desde 2019, ele vem conduzindo “investigações controversas” sobre a “suposta desinformação”. Suspendeu o X durante o debate eleitoral, algo “sem precedentes em países democráticos”. E criminalizou a opinião “com base em definições vagas, em um exemplo de politização do Judiciário”. Tudo isso, conclui o relatório, “tem um efeito inibidor sobre a liberdade de expressão”, criando “precedentes para os tribunais censurarem a opinião política”.

Achei certa graça lendo essas coisas. Logo imaginei uma matéria na TV sugerindo que algum hacker “bolsonarista” pode ter invadido a página da The Economist. Brincadeiras à parte, o relatório diz apenas o óbvio. É mais um sinal do que boa parte de nossa elite teima em não enxergar. Foram muitos sinais nas últimas semanas. Primeiro veio aquela equipe da OEA. Todos assistimos ao Pedro Vaca, com uma cara um tanto assustada, escutando histórias infinitas sobre a censura. Os empresários no grupo de WhatsApp, o Marcos Cintra, o Monark, o deputado Homero Marchese, a quebra da imunidade parlamentar, aquela matéria sobre um ministro, aquela publicação acusada de “golpista”, o episódio do “use a sua criatividade”. E por aí foi. Depois veio o projeto aprovado no Congresso americano por republicanos e democratas. De novo, saímos pela tangente. Dessa vez com um velho truque latino: o apelo nacionalista. Tudo para evitar a única pergunta relevante que deveríamos fazer a nós mesmos: estamos ou não praticando a censura, em especial a censura prévia, aqui no Brasil?

Para verificar como o diagnóstico da The Economist é real, basta observar a decisão recente do STF contra a plataforma Rumble. Em certo momento, o texto menciona os “crimes” cometidos por um cidadão, chamado de “pretenso jornalista”, na decisão. Seriam eles: “atacar integrantes de instituições públicas, desacreditar o processo eleitoral, reforçar o discurso de polarização; gerar animosidade na sociedade, promovendo o descrédito dos poderes da República, além de outros crimes”. Sejamos claros: rigorosamente nada disso é crime no mundo legal. Qualquer crítica mais dura a uma autoridade pode ser dita um “ataque”. Sobre o “discurso da polarização”, não é o que boa parte dos políticos e militantes fazem a todo momento? E sobre a “animosidade”. Alguma lógica nisso? Somos um mosteiro beneditino, por acaso? E qual crítica dura a uma decisão do Congresso ou do governo não será vista como trazendo algum “descrédito” para essas instituições? É exatamente esse pacote de “definições vagas” que vai servindo de base para a flexibilização do mundo dos direitos no Brasil. E, com ela, para a “corrosão por dentro” de nossa democracia. Isto pelo fato simples de que quanto mais maleáveis são nossos direitos, mais vulneráveis nos tornamos diante de quem ocupa posições de poder. Dias atrás escutava de um empresário: “Me retirei, não dou mais opinião, tenho medo”. Dizia aquilo com naturalidade. A mesma lógica se repete no jornalismo e mesmo na atividade parlamentar. Sem clareza sobre nossos direitos, nos retiramos. Na lógica do poder, pode ser tranquilizador. No sentido da vida republicana, é um desastre.

O curioso é observar como muita gente justifica tudo isto sob o argumento do “provisório”. A ideia de que é necessário algum atalho ou dose de “excepcionalidade” nas garantias da democracia, sabe-se lá até quando, para salvaguardar a própria democracia. O argumento vem do fundo de nossa tradição. Lembra a ideia do “autoritarismo instrumental” formulada pelo professor Wanderley Guilherme dos Santos, ainda nos anos 1970. De um modo simples, a ideia de que, dados o nosso atraso como sociedade e as mil e uma deficiências de nossa formação, acabamos sempre apostando em uma “terapêutica autoritária” para fazer valer, logo ali à frente, os predicados da democracia. O jurista Oliveira Vianna seria uma boa síntese dessa índole política nacional. Ele e sua visão de que nossa sociedade “parental e autoritária” demandaria por muito tempo um Estado tutor para se obter, lá na frente, uma ordem democrática. Daí seu apoio ao varguismo, nos anos 1930, e sua “modernização pelo alto”. Talvez ninguém tenha personificado melhor a tradição do atalho autoritário do que Carlos Lacerda e seu “golpismo democrático”, nos anos 1950 e 1960. Ele e seu apelo à “reação pelas armas para restaurar a ordem” meses antes do suicídio de Vargas. O mesmo que faria em 1964, com as consequências funestas que conhecemos.

Nosso autoritarismo instrumental é ecumênico. Se a esquerda hoje vibra a cada nova medida de censura prévia e relativização de direitos, “necessários” para a democracia, boa parte da direita não fica distante. Senão, o que faziam aquelas pessoas pedindo uma intervenção militar à porta dos quartéis, em 2022? O que fazia tanta gente sugerindo uma medida “cirúrgica” com a aplicação para lá de criativa do “artigo 142”? A própria The Economist menciona a “trama golpista” posterior à eleição presidencial e a persistência de uma “preocupante tolerância à violência política”. Pouca gente escapou dessa dualidade de visões. O mundo da política é dominado pelos afetos. E o pensamento de facção parece sempre mais sedutor do que a impessoalidade fria das regras e dos princípios. Precisamente os ingredientes que pavimentam o caminho estreito da tradição liberal. O caminho que sempre desconfiou da lógica fácil de que “os instrumentos da democracia são frágeis para defender a própria democracia”. A crença ingênua de que, uma vez postos em movimento, os mecanismos de exceção seriam capazes de produzir seus limites.

O ponto é que sempre foi um erro enxergar o mundo dos direitos e garantias individuais como um “estorvo” à democracia. O raciocínio confortável de que o respeito ao devido processo, ao contraditório, às instâncias adequadas da Justiça, ao juiz natural e tudo que conhecemos como ferramentas do direito republicano possam funcionar como matéria plástica, retorcida aqui e ali, ao sabor de uma vaga razão de Estado. Tudo isso que parece novo, e urgente, e capaz mesmo de produzir entusiasmo, é apenas parte de uma velha tradição. Se vamos superar estas coisas como país? Não sei. O caminho é estreito, como dizia a frase que escutei três décadas atrás e que hoje me parece mais atual do que nunca.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Publicado em VEJA de 7 de março de 2025, edição nº 2934

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Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

Trump e a reconfiguração do mundo

Artgo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 10 de março de 2025

Trump e a reconfiguração do mundo

Resta aos europeus reconhecer que o mundo mudou, suas concepções não mais vigoram e sua diplomacia está ultrapassada. Denis Rosenfield para o Estadão:

Não temos ainda nem dois meses de governo Trump e as transformações geopolíticas por ele provocadas estão reconfigurando o mundo. Não apenas simbolicamente quer mudar os mapas existentes, ao nomear o Golfo do México de Golfo da América, mas está tomando decisões que se demarcam claramente da ordem diplomática vigente até agora. As mudanças abruptas e o seu ritmo são frenéticos, deixando muitos atores estatais e a opinião pública mundial perplexos.

É, portanto, da máxima importância compreender esse novo fenômeno como se apresenta, tal como se analisa um fenômeno natural. Talvez ninguém goste de um furacão, sobretudo os que dele estão próximos. Nem por isso deixaremos de tentar compreender o que está acontecendo. Serve para a geopolítica um pequeno breviário de retórica, escrito por um dos primeiros-ministros de Luiz XIV, Cardeal de Mazarin. Segundo ele, o domínio das relações políticas é o da manipulação, do uso da mentira e do engano, da imprevisibilidade e da construção arbitrária de narrativas.

A grande dificuldade em lidar com o fenômeno Trump não reside apenas em suas características pessoais, de alguém acostumado com o jogo duro e a ausência de escrúpulos e, mesmo, de moralidade. Quem não quiser reconhecer esse fato, encontra-se desde logo fora dele, sofrendo assim dos seus prejuízos. Um exemplo eloquente é o do confronto Trump/Zelensky na encenação já célebre daquele encontro na Casa Branca. Para além desses dois indivíduos, em tudo díspares e antagônicos, defrontaram-se dois tipos de mindsets, dois tipos de paradigmas geopolíticos.

Para o presidente da Ucrânia, tratava-se de mostrar a invasão da Rússia, nomeando o Putin como “assassino”. A situação de seu país é a de um povo agredido que luta por sua existência, contando para isso com o apoio da Europa e boa parte da opinião pública ocidental. Colocou-se como defensor dos valores ocidentais, a sua vanguarda no campo de batalha. Para o presidente americano, sua preocupação não reside na defesa de valores liberais ocidentais, como os da democracia, mas na defesa dos interesses dos EUA. Se tais valores são fundamentais para os europeus, que arquem com os custos financeiros e militares da guerra. Em todo caso, os contribuintes americanos não teriam porque suportar indefinidamente os custos dessa guerra, sem perspectiva de paz, de vitória.

Os europeus, por sua vez, viviam em um berço esplêndido. Tornaram-se militarmente irrelevantes, somente nesse ano que passou pensaram em redefinir suas forças armadas respectivas. Estão totalmente defasados, dependentes do guarda- chuva americano militar e nuclear. Não possuem condições militares e financeiras para influir decisivamente no cenário ucraniano, embora tenham um medo, historicamente justificado, dos russos. Paradoxalmente, viviam defendendo um cessar-fogo na Faixa de Gaza, preservando o Hamas, apesar do massacre cometido em 7 de outubro, que decretou a forte reação israelense. Fizeram o mesmo em relação ao Hezbollah no Líbano. Estão provando agora do seu próprio veneno, não defendendo o cessar-fogo, algo que está sendo feito por Trump.

No imediato, o presidente americano está cortando a ajuda militar à Ucrânia, o uso dos seus serviços de inteligência e o seu financiamento. Exige, para mantê-los, o reconhecimento de sua liderança inconteste, um acordo de extração de seus minerais estratégicos e raros e uma aceitação, certamente difícil, de que Zelensky terá de fazer concessões territoriais. Clausewitz ensinava que esse é um dos objetivos da guerra, não decididos em termos abstratos de justiça, mas em função da realidade do campo de batalha. Resoluções da ONU e assemelhados perderam sua validade. O presidente da Ucrânia foi obrigado a recuar, algo que foi apreciado por Trump em seu discurso ao Congresso.

Imediatamente, a Rússia, alinhando-se a Trump, terá certamente ganhos territoriais e deixará de ser um pária internacional. O antiocidentalismo de Putin sairá reforçado em seu grande projeto de uma nova nação russa. Fará concessões a Trump, provavelmente retirando seu apoio ao Irã ao patrocinar uma negociação diplomática a respeito de seus sites nucleares e do seu apoio aos grupos terroristas no Oriente Médio.

Os europeus deverão lidar com essa nova situação, não tendo sobre ela qualquer domínio. Os russos, em seu apetite, poderão se voltar para os países bálticos, com a mesma reivindicação que utilizaram em relação aos ucranianos. Se Trump pretende anexar a Groenlândia, por que não aproveitar a oportunidade, dirá Putin? Cogitarão também em invadir a Polônia, embora não pretendam fazê-lo a curto prazo, pois os poloneses possuem forças armadas fortes, tendo sabido se antecipar ao que estava por vir.

Resta aos europeus reconhecer que o mundo mudou, suas concepções não mais vigoram e sua diplomacia está ultrapassada. Não lhes sobra outra opção senão um rápido rearmamento! Seria urgente o Brasil aprender com o que está acontecendo no mundo!

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

segunda-feira, 10 de março de 2025

Princípio de Ano, Fim de uma Época

Artigo compartilhado do sitedo GABEIRA, de 10 de março de 2025 

Princípio de Ano, Fim de uma Época

Por Fernando Gabeira (in blog)

Depois do carnaval, começa o ano no Brasil. Espero que seja próspero e feliz, mas duvido. Passamos por um momento difícil. Algo parecido com o que li neste início de romance: “Naquela época o céu era tão baixo que nenhum homem ousava se erguer em toda a sua estatura. No entanto havia vida, havia desejos e festas. E, ainda que nunca se esperasse o melhor neste mundo, esperava-se a cada dia escapar do pior”.*

Os Estados Unidos se retiraram não apenas do Acordo de Paris, mas também deixaram de apoiar a Ucrânia. Isso significa que a Europa tem dois caminhos: assumir o esforço de guerra sozinha ou receber milhões de refugiados da ocupação russa. Talvez os dois, na pior das hipóteses.

De qualquer forma, faltará recurso para combater o aquecimento global e ajudar os povos em desenvolvimento. Como Trump praticamente fechou a Usaid, o combate à fome e à doença pode minguar no mundo. Em síntese: o planeta ficará mais quente e desigual. Uso esses dois adjetivos, mas reconheço que dão apenas uma pálida impressão do sofrimento real que podem conter: desterro em massa, desastres ambientais, epidemias. A frase que o futuro primeiro-ministro alemão, Friedrich Merz, usou para a Europa poderia ser estendida também a outras partes do mundo: faltam cinco minutos para a meia-noite.

Aqui no Brasil há uma polêmica sobre as relações da oposição com o governo Trump, principalmente as denúncias contra Alexandre de Moraes. De modo geral, quando se sentem estranguladas, as oposições sempre pedem socorro fora. São quase sempre também acusadas de trair a pátria, mas a verdade é que no aperto todos usam essa tática.

O problema do enlace entre parte da oposição e o governo Trump é a própria natureza do autocrata laranja. Se ele conseguir, por meio de seu poder associado às big techs, tirar a direita do sufoco e levá-la de novo ao poder, o preço será alto. A primeira coisa que Trump dirá é o seguinte: o que podemos ganhar com isso? Na Ucrânia, foram as riquezas minerais, em Gaza a transformação dos escombros num resort de luxo, naturalmente expulsando 2 milhões de pessoas que não cabem nesse delírio. O que seria no Brasil?

Ele gosta de petróleo e certamente se interessaria pelo pré-sal, pela exploração na Margem Equatorial. Gosta também de expulsar gente para construir resorts de luxo. Fernando de Noronha é um espaço ideal para esse sonho. Bolsonaro queria criar uma Cancún em Angra; Flávio, seu filho, queria liberar a entrada de transatlânticos em Noronha. Tudo isso é um excelente aperitivo para Trump.

Existem alguns caminhos para evitar essa atividade externa em torno das questões políticas brasileiras. Infelizmente, o que defendo é o menos popular e me vale às vezes alguns insultos e acusações de cumplicidade com a direita. O ideal, no meu entender, seria uma completa transparência sobre os atos de Alexandre de Moraes, para que possamos avaliar internamente. Também seria ideal o conhecimento maior dos detalhes de todos os casos julgados do 8 de Janeiro para avaliar a dosimetria das penas. Da mesma forma, poderíamos esclarecer enigmas, como a denúncia de que se falsificou a entrada de Filipe Martins, ou mesmo a suposição de que contas bancárias de opositores com câncer têm sido bloqueadas.

Antes de me jogarem na lata de lixo da História e de me classificarem como incurável reacionário, quero apenas reafirmar que essa é a melhor forma de combate. A maneira como os vencedores estão conduzindo o processo, no meu entender, fortalece estrategicamente a oposição. Na verdade, travamos um diálogo de surdos com acusações recíprocas de favorecer a vitória da direita. Posso estar errado, mas, pelo que vi e aprendi, há uma arrogância e autossuficiência no ar, e isso é sempre péssimo sinal.

texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br