Aos 71 anos, a filósofa Martha Nussbaum corre
maratona, engaja-se em polêmicas políticas e culturais e
tenta trazer a filosofia para o século XXI
Ullstein bild/Agência O Globo
Publicado originalmente no site da revista ÉPOCA, em 12/08/2018
Como Martha Nussbaum firmou-se como a mais proeminente
pensadora americana
Com análises sobre envelhecimento, a natureza do mal e a
raiva coletiva na política, Martha ultrapassou as fronteiras tradicionais da
filosofia
Por Marilyn Cooper
Audaciosa e sem remorsos, a intelectual maratonista e amante
de ópera já deu sua opinião sobre tudo, de envelhecimento à natureza do mal.
Seu objetivo? Tornar a filosofia útil no dia a dia.
A prosa complexa da filósofa Martha Nussbaum não coube no
formato de 280 caracteres do Twitter. Ainda assim, numa época em que frases de
impacto dominam os discursos políticos, seu trabalho está, surpreendentemente,
atraindo a atenção do público. Além de ter escrito mais de 25 livros e editado
outros 21, Nussbaum discutiu sobre a natureza do bem e do mal com Bill Moyers
na PBS — emissora americana — e filmou um documentário sobre Platão para o
Discovery Channel. Ela apareceu na coleção Women (Mulheres, sem edição em
português), de 1999, da fotógrafa Annie Leibovitz e tem como fãs Oprah Winfrey
e Deepak Chopra. Já escreveu para — ou foi entrevistada por — praticamente
todos os grandes veículos de comunicação americanos, e o New York Times
chamou-a de “a filósofa mais proeminente dos Estados Unidos”.
Nussbaum está decidida a trazer a relevância da filosofia
para o século XXI. Ela ultrapassa as fronteiras tradicionais desse campo para
explorar raça, gênero e sexualidade e defende que o desenvolvimento
internacional deve ser baseado num conjunto de direitos e valores universais.
Acima de tudo, insiste que a filosofia deve ser útil — não esotérica. Nussbaum
foi professora de Harvard por 20 anos — de forma controversa, sua estabilidade
no cargo foi negada —, depois ensinou na Brown até 1995, ano em que ingressou
no corpo docente da Universidade de Chicago, que lhe ofereceu estabilidade e
cargos em vários departamentos, incluindo nas áreas de teologia e Direito. Esta
última é essencial, pois Nussbaum quer que a filosofia seja empregada no mundo
real. Ela acredita que filósofos deveriam ser “advogados da humanidade” e que
ser professora da faculdade de Direito lhe permite moldar e alterar a vida
pública.
Ao longo dos anos, Nussbaum não fugiu de confrontos públicos
com alguns de seus colegas mais renomados. Ela ficou famosa em 1987, após
atacar de forma virulenta The closing of the American mind (O fechamento da
mente americana, em tradução livre), livro conservador marcante do filósofo
Allan Bloom. Num longo artigo para The New York Review of Books, ela acusou a
obra de ser elitista, antidemocrática e até antiamericana e ridicularizou as
capacidades intelectuais do autor, escrevendo: “Allan Bloom é, então, um bom
filósofo? A resposta é: não podemos ter certeza e não nos foi dada nenhuma
razão para pensar que ele sequer seja um filósofo”. Nussbaum consolidou sua
reputação de prosa sem pena em 1999, quando abordou a obra de Judith Butler,
feminista radical, num ensaio de 8 mil palavras na revista The New Republic
chamado “The professor of parody” (“A professora da paródia”). Nele, ela acusa
Butler de um “feminismo egocêntrico” que incentiva as mulheres a se concentrar
em ideais abstratos em vez de problemas do mundo real, como diferença de
salários e assédio sexual. Ao se envolver com esse “pessimismo moderno”,
Nussbaum comenta, Butler “colabora com o mal”. O artigo levou a um turbilhão
que infiltrou a cultura popular. A historiadora Joan Scott chamou o ensaio de
“um ato oportunista grosseiro”, enquanto a jornalista Katha Pollitt o elogiou:
“Um destrinchamento habilidoso pelo qual esperávamos havia muito tempo”.
Aos 71 anos, Nussbaum corre todo dia, incluindo 20
quilômetros aos domingos, e faz musculação regularmente. Desdenhando fones de
ouvido e música popular, ela se exercita cantando silenciosamente o libreto
inteiro da ópera As bodas de Fígaro. Sua vida pessoal sempre foi tão dramática
quanto a profissional. Ela largou a Wellesley College após dois anos de curso
para ingressar numa companhia de teatro de Michigan. Alguns anos depois,
apaixonada pelas tragédias gregas, estudou artes cênicas na Tisch School of the
Arts, da Universidade de Nova York, mas trocou-as pelos estudos clássicos
quando percebeu que preferia estudar os gregos do que encená-los. Foi lá que
conheceu seu futuro marido, o classicista Alan Nussbaum. Ela se converteu ao
judaísmo antes do casamento, em 1969, o que consternou seu pai. Embora tenha se
divorciado em 1987, não deixou de ser uma judia praticante — e entusiasta.
Nos últimos anos, Nussbaum voltou sua atenção para a análise
da natureza das emoções humanas e o papel que exercem na sociedade. Ela
escreveu livros sobre vergonha, desejo e a relação entre raiva e perdão.
Motivada pela eleição do presidente Donald Trump, seu livro mais recente, The
monarchy of fear: a philosopher looks at our political crisis (A monarquia do
medo: uma filósofa observa nossa crise política, ainda sem edição brasileira),
investiga por que a política americana é sempre sentimental e examina aquilo
que ela descreve como “a política da culpa”. Conversamos com Nussbaum sobre o
feminismo de hoje, suas experiências ao se converter ao judaísmo e o papel dos
filósofos nos Estados Unidos da era Trump.
Por que escrever um livro sobre o medo? A democracia pede
para confiarmos uns nos outros e nos preocuparmos pelos outros; para isso acontecer,
não podemos ser governados pelo medo. O medo é a percepção dolorosa de um
perigo ou ameaça. Pode ser altamente consciente, mas também pode espreitar
debaixo da superfície. Ocupa grande parte da vida de uma criança, que está
cônscia não só de sua necessidade desesperada por comida, abrigo e conforto,
mas também de sua incapacidade completa de conseguir tudo isso de forma
independente. O medo é intensamente narcisista: quando você sente que sua vida
está ameaçada, sua atenção se limita a seu próprio corpo. Mais uma vez, você é
um bebê chorando por algo que não tem. Bebês não são bons cidadãos
democráticos: por causa do medo, escravizam outras pessoas. Também são
totalmente dependentes dos outros, incapazes de autonomia ou reciprocidade.
Como o medo se manifesta em nosso clima político atual?
Vivemos numa época difícil. Automação, economia global, várias ameaças a nossa
segurança e os problemas óbvios de desigualdade econômica e social — tudo isso
leva ao medo e à ansiedade. Quando Franklin Delano Roosevelt disse que a única
coisa da qual deveríamos ter medo é o próprio medo, creio que ele quis dizer
que a tendência do medo é sustentar a si mesmo e impedir a cooperação, a
esperança e, sim, o amor mútuo, dos quais precisamos para solucionar nossos
problemas. Hoje em dia, é comum o medo ser destrutivo, impedindo um diálogo
real sobre nosso futuro. Nem sempre o medo é ruim. Por exemplo, acho que
devemos temer os efeitos das mudanças climáticas e a extinção de espécies de
animais, mas não podemos nos afogar no medo: precisamos nos unir e fazer algo.
Qual é o papel da raiva coletiva em nosso processo político?
A raiva como a de protestos, de preferência sem a parte da vingança, pode
servir para nos impulsionar à igualdade ou para resolver outros problemas
sérios. Com frequência, no entanto, a sede por vingança, tão fácil e atraente,
confunde as pessoas, fazendo-as pensar que tudo vai ser resolvido se outro
grupo sofrer. O maior obstáculo que a raiva traz é a ilusão de que a dor pode
ser compensada com mais dor: os contos de fadas mais antigos nos fazem
acreditar que alguns de nossos problemas reais e difíceis — como a fome em João
e Maria — serão resolvidos se incinerarmos a bruxa, e creio que acreditamos
muito facilmente nessa conclusão. O desejo de vingança dificulta ainda mais a
resolução de conflitos reais.
Em sua opinião, o presidente Donald Trump provocou medo e
raiva no público americano de propósito? Se sim, como? Acho que o presidente
alimentou de forma deliberada o medo contra imigrantes, minorias raciais,
muçulmanos e o islamismo. São medos ignóbeis, porque abrangem e condenam
grandes grupos de pessoas sem questionar precisamente sobre quem estamos
falando e qual o problema real e alimentam nossas piores tendências — do bode
expiatório, da demonização —, em vez de resolver a questão central ou até mesmo
perguntar que questão é essa. O medo costuma se espalhar como fogo, e um bom
político precisa conter isso e impedir que esses grupos se tornem alvos. Depois
do 11 de setembro, o presidente George W. Bush discursou bem sobre o medo
crescente voltado a muçulmanos e ao islamismo, dizendo que não deveríamos
demonizar um povo ou religião inteiros, e sim procurar por criminosos. De fato,
isso foi tão importante que ele manteve um arquivo de todas as suas declarações
sobre o islamismo. Eu falo sobre isso no livro, fazendo um contraste com a
retórica do presidente Trump.
A senhora escreveu que “a questão política é sempre
sentimental” e que esse é um aspecto crítico da situação atual. O que quis dizer
com isso? As pessoas associam muito política emocional ao fascismo. Todos os
políticos, no entanto, precisam provocar emoções para fazer com que as pessoas
se importem com suas propostas e lutem por elas. A pergunta não é se políticos
deveriam apelar para os sentimentos, mas quais são esses sentimentos, quando, e
com quais argumentos eles serão relacionados. Durante o New Deal, (o então
presidente americano) Franklin Delano Roosevelt precisava convencer os
americanos a aceitar uma série de propostas radicais. Ele pensou bastante sobre
formas de comover o eleitor e fazê-lo apoiar os programas do New Deal. Nós
temos seguridade social por causa da engenhosidade com que ele fez um apelo ao
emocional. Foi semelhante a nosso progresso quanto aos direitos civis, que
ocorreu por causa da habilidade de (Martin Luther) King de despertar emoções
positivas de esperança e amor em tempos sombrios. Então me parece equivocado
quando os liberais dizem que não devemos apelar para as emoções. Imagine se
King tivesse falado no mesmo estilo de John Stuart Mill (filósofo e economista
britânico) ou John Rawls (filósofo político americano). Sua missão teria sido
um fracasso.
Como os filósofos podem influenciar o mundo de hoje? Eu não
gosto de mandar nos outros, mas acho que seria bom se pelo menos alguns
filósofos tentassem cativar o público. O problema é que há poucos lugares onde
um filósofo pode escrever para o público. Jornais não costumam publicar artigos
de opinião escritos por filósofos. Então aqueles de nós que são sortudos e
conseguem ser publicados nesse clima desfavorável têm de aproveitar!
Por que a senhora acredita que precisamos de “uma sociedade
de cidadãos que reconheçam que são carentes e vulneráveis”? Pense novamente no
bebê. Enquanto ele se desenvolve, torna-se capaz de fazer mais por si e não
obtém nada escravizando os outros. Nesse ponto, ele entende que as outras
pessoas deste mundo também têm necessidades e sentimentos e começa a construir
relacionamentos baseados na interdependência e na ajuda mútua em vez de apenas
mandar e obedecer. É disso que a democracia precisa: pessoas que admitam que
são todos igualmente humanos, carentes e vulneráveis e que firmem uma aliança
de reciprocidade e ajuda mútua.
A senhora já escreveu bastante sobre intolerância religiosa.
Qual foi sua experiência pessoal em relação a isso quando se converteu ao
judaísmo? Como essas experiências influenciaram seu trabalho? Infelizmente, o
antissemitismo que conheço é mais um preconceito racial do que religioso. E
todos os antissemitas de Harvard, percebendo que meu nome havia mudado de
Craven — quando eu havia me inscrito na graduação — para Nussbaum — quando
comecei os estudos —, continuaram me tratando como uma Wasp (sigla em inglês
para pessoa branca, anglo-saxã e protestante) enquanto desdenhavam de meu
marido. Com frequência me perguntam, na Europa, se sou “realmente” judia, pois
meu nome é muitas vezes — mas não sempre — um nome judeu, mas minha aparência
denota para muitos uma identidade não judia, já que esses estereótipos ainda
são abundantes. Então não sou bem uma vítima de antissemitismo. Mas é claro que
observo essas irracionalidades e as ideias horríveis que elas encarnam, e um
dos tópicos principais de meu trabalho é como conceitos irracionais de estigma
e de aversão brotam em todas as sociedades, de diferentes formas em diferentes
lugares. As pessoas se sentem inseguras por terem corpos de animais e então
projetam esses traços — hiperanimalidade, hipersexualidade — sobre diversos
grupos de minoria e em seguida dominam esses grupos, levando ao antissemitismo,
ao racismo e à homofobia.
A senhora descreveu seu pai tanto como um exemplo a ser
seguido, que “simbolizava a beleza e a maravilha”, quanto como um racista e
antissemita. Como você concilia essas duas coisas? As pessoas são uma mistura
de bem e mal. Pessoas maravilhosas, carinhosas e inspiradoras podem nutrir
defeitos graves e pontos cegos. Meu pai nasceu em 1901, em Macon, na Geórgia, e
se mudou para o norte depois dos 40 anos. Então seu comportamento era bem
típico daquele lugar e daquela época; só haveria apoio para a integração racial
em Macon mais tarde, talvez nos anos 1960. Isso é uma explicação, não uma desculpa,
mas a maioria das pessoas não é capaz de heroísmo moral clarividente. E elas
não mudam opiniões profundamente enraizadas depois de velhas. Não se esqueça de
que muitos abolicionistas e, depois, heróis do movimento dos direitos civis dos
negros eram contra a igualdade de gênero. Elizabeth Cady Stanton (ativista
social americana) relata que sua entrada não era permitida quando
abolicionistas se reuniam. Como é que esses heróis eram tão intolerantes?
Muitos antirracistas também eram contra a igualdade de direitos civis para gays
e lésbicas. Estamos todos em fase de desenvolvimento, moralmente falando, e
nossa cultura também. Nem sabemos quais são nossos pontos cegos que serão
condenados pelas gerações futuras.
Tanto o ramo da filosofia como o dos estudos clássicos são
vistos como hostis para as mulheres. A senhora enfrentou algum obstáculo nesses
espaços devido ao gênero? Certamente deparei com machismo em ambos, além de
assédio sexual e total falta de apoio para mães — minha filha nasceu quando eu
estava começando a dissertação. Cheguei na hora certa, porque, cinco anos
antes, nenhuma das vagas nas grandes universidades estava aberta para mulheres.
Fui a primeira mulher da Society of Fellows, grupo de acadêmicos de Harvard.
Encontrei muitos obstáculos, e o machismo foi pelo menos parte do motivo de eu
não ter me tornado titular em Harvard. Também encontrei alguns homens que eram
feministas de verdade e que lutavam pela igualdade de gênero: o economista
Wassily Leontief, que levou mulheres à Society; o filósofo Bernard Williams, um
de meus professores mais importantes; os filósofos Hilary Putnam e Stanley
Cavell, dois colegas de Harvard. Hoje, eu diria que o ramo dos estudos
clássicos é melhor para mulheres do que a filosofia: a proporção de mulheres em
cargos de chefia é muito maior e isso cria uma atmosfera melhor para todos. Mas
estamos nos esforçando e temos alguns procedimentos que asseguram o devido
processo legal, o que não é o caso na Europa, onde ainda reina um sistema de
Clube do Bolinha.
No passado, a senhora criticou feministas acadêmicas por
estarem muito distantes das mulheres de verdade. De que tipo de feminismo
precisamos hoje? Em termos reais, como isso pode ser promovido? Acho que as
feministas hoje em dia estão bem engajadas em resolver problemas reais, então
estou menos preocupada do que estava antes. Houve um tempo, porém, em que
pensei, e escrevi, que feministas acadêmicas haviam se tornado muito
acadêmicas: discutindo tópicos confusos, usando jargões impenetráveis e sem
fornecer uma orientação inteligível a pessoas que pudessem pôr em prática os
ideais feministas. Constrastei entre esse tipo de feminismo acadêmico com as
primeiras feministas americanas — que contribuíram para mudanças em legislações
que tratam de estupro, assédio sexual e violência doméstica — e também com a
realidade atual do feminismo acadêmico na Índia. Lá, as feministas acadêmicas
nunca se tornaram pedantes: elas continuam com o compromisso de fornecer
orientação inteligível para a prática política. Acho que a maré nos Estados
Unidos começou a mudar: feministas mais novas estão aprendendo a escrever com
clareza e eloquência e a usar sua voz de maneira eficaz. O feminismo acadêmico,
como o restante da sociedade, precisa respeitar e aceitar pontos de vista
divergentes. Não podemos progredir sem debater uma ampla variedade de
posicionamentos de boa-fé. Existem limites: revistas não podem publicar artigos
de negacionismo do Holocausto ou artigos racistas. Mas devemos poder fazer
explorações de boa-fé sobre assuntos difíceis. Não há uma “versão oficial” do
feminismo. Deveríamos ensinar uma ampla variedade de posicionamentos
divergentes.
Texto e imagem reproduzidos do site: epoca.globo.com
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