segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Pensadora americana Martha Nussbaum

Aos 71 anos, a filósofa Martha Nussbaum corre 
maratona, engaja-se em polêmicas políticas e culturais e
 tenta trazer a filosofia para o século XXI 
Ullstein bild/Agência O Globo

Publicado originalmente no site da revista ÉPOCA, em 12/08/2018 

Como Martha Nussbaum firmou-se como a mais proeminente pensadora americana

Com análises sobre envelhecimento, a natureza do mal e a raiva coletiva na política, Martha ultrapassou as fronteiras tradicionais da filosofia
  
Por Marilyn Cooper 

Audaciosa e sem remorsos, a intelectual maratonista e amante de ópera já deu sua opinião sobre tudo, de envelhecimento à natureza do mal. Seu objetivo? Tornar a filosofia útil no dia a dia.

A prosa complexa da filósofa Martha Nussbaum não coube no formato de 280 caracteres do Twitter. Ainda assim, numa época em que frases de impacto dominam os discursos políticos, seu trabalho está, surpreendentemente, atraindo a atenção do público. Além de ter escrito mais de 25 livros e editado outros 21, Nussbaum discutiu sobre a natureza do bem e do mal com Bill Moyers na PBS — emissora americana — e filmou um documentário sobre Platão para o Discovery Channel. Ela apareceu na coleção Women (Mulheres, sem edição em português), de 1999, da fotógrafa Annie Leibovitz e tem como fãs Oprah Winfrey e Deepak Chopra. Já escreveu para — ou foi entrevistada por — praticamente todos os grandes veículos de comunicação americanos, e o New York Times chamou-a de “a filósofa mais proeminente dos Estados Unidos”.

Nussbaum está decidida a trazer a relevância da filosofia para o século XXI. Ela ultrapassa as fronteiras tradicionais desse campo para explorar raça, gênero e sexualidade e defende que o desenvolvimento internacional deve ser baseado num conjunto de direitos e valores universais. Acima de tudo, insiste que a filosofia deve ser útil — não esotérica. Nussbaum foi professora de Harvard por 20 anos — de forma controversa, sua estabilidade no cargo foi negada —, depois ensinou na Brown até 1995, ano em que ingressou no corpo docente da Universidade de Chicago, que lhe ofereceu estabilidade e cargos em vários departamentos, incluindo nas áreas de teologia e Direito. Esta última é essencial, pois Nussbaum quer que a filosofia seja empregada no mundo real. Ela acredita que filósofos deveriam ser “advogados da humanidade” e que ser professora da faculdade de Direito lhe permite moldar e alterar a vida pública.

Ao longo dos anos, Nussbaum não fugiu de confrontos públicos com alguns de seus colegas mais renomados. Ela ficou famosa em 1987, após atacar de forma virulenta The closing of the American mind (O fechamento da mente americana, em tradução livre), livro conservador marcante do filósofo Allan Bloom. Num longo artigo para The New York Review of Books, ela acusou a obra de ser elitista, antidemocrática e até antiamericana e ridicularizou as capacidades intelectuais do autor, escrevendo: “Allan Bloom é, então, um bom filósofo? A resposta é: não podemos ter certeza e não nos foi dada nenhuma razão para pensar que ele sequer seja um filósofo”. Nussbaum consolidou sua reputação de prosa sem pena em 1999, quando abordou a obra de Judith Butler, feminista radical, num ensaio de 8 mil palavras na revista The New Republic chamado “The professor of parody” (“A professora da paródia”). Nele, ela acusa Butler de um “feminismo egocêntrico” que incentiva as mulheres a se concentrar em ideais abstratos em vez de problemas do mundo real, como diferença de salários e assédio sexual. Ao se envolver com esse “pessimismo moderno”, Nussbaum comenta, Butler “colabora com o mal”. O artigo levou a um turbilhão que infiltrou a cultura popular. A historiadora Joan Scott chamou o ensaio de “um ato oportunista grosseiro”, enquanto a jornalista Katha Pollitt o elogiou: “Um destrinchamento habilidoso pelo qual esperávamos havia muito tempo”.

Aos 71 anos, Nussbaum corre todo dia, incluindo 20 quilômetros aos domingos, e faz musculação regularmente. Desdenhando fones de ouvido e música popular, ela se exercita cantando silenciosamente o libreto inteiro da ópera As bodas de Fígaro. Sua vida pessoal sempre foi tão dramática quanto a profissional. Ela largou a Wellesley College após dois anos de curso para ingressar numa companhia de teatro de Michigan. Alguns anos depois, apaixonada pelas tragédias gregas, estudou artes cênicas na Tisch School of the Arts, da Universidade de Nova York, mas trocou-as pelos estudos clássicos quando percebeu que preferia estudar os gregos do que encená-los. Foi lá que conheceu seu futuro marido, o classicista Alan Nussbaum. Ela se converteu ao judaísmo antes do casamento, em 1969, o que consternou seu pai. Embora tenha se divorciado em 1987, não deixou de ser uma judia praticante — e entusiasta.

Nos últimos anos, Nussbaum voltou sua atenção para a análise da natureza das emoções humanas e o papel que exercem na sociedade. Ela escreveu livros sobre vergonha, desejo e a relação entre raiva e perdão. Motivada pela eleição do presidente Donald Trump, seu livro mais recente, The monarchy of fear: a philosopher looks at our political crisis (A monarquia do medo: uma filósofa observa nossa crise política, ainda sem edição brasileira), investiga por que a política americana é sempre sentimental e examina aquilo que ela descreve como “a política da culpa”. Conversamos com Nussbaum sobre o feminismo de hoje, suas experiências ao se converter ao judaísmo e o papel dos filósofos nos Estados Unidos da era Trump.

Por que escrever um livro sobre o medo? A democracia pede para confiarmos uns nos outros e nos preocuparmos pelos outros; para isso acontecer, não podemos ser governados pelo medo. O medo é a percepção dolorosa de um perigo ou ameaça. Pode ser altamente consciente, mas também pode espreitar debaixo da superfície. Ocupa grande parte da vida de uma criança, que está cônscia não só de sua necessidade desesperada por comida, abrigo e conforto, mas também de sua incapacidade completa de conseguir tudo isso de forma independente. O medo é intensamente narcisista: quando você sente que sua vida está ameaçada, sua atenção se limita a seu próprio corpo. Mais uma vez, você é um bebê chorando por algo que não tem. Bebês não são bons cidadãos democráticos: por causa do medo, escravizam outras pessoas. Também são totalmente dependentes dos outros, incapazes de autonomia ou reciprocidade.

Como o medo se manifesta em nosso clima político atual? Vivemos numa época difícil. Automação, economia global, várias ameaças a nossa segurança e os problemas óbvios de desigualdade econômica e social — tudo isso leva ao medo e à ansiedade. Quando Franklin Delano Roosevelt disse que a única coisa da qual deveríamos ter medo é o próprio medo, creio que ele quis dizer que a tendência do medo é sustentar a si mesmo e impedir a cooperação, a esperança e, sim, o amor mútuo, dos quais precisamos para solucionar nossos problemas. Hoje em dia, é comum o medo ser destrutivo, impedindo um diálogo real sobre nosso futuro. Nem sempre o medo é ruim. Por exemplo, acho que devemos temer os efeitos das mudanças climáticas e a extinção de espécies de animais, mas não podemos nos afogar no medo: precisamos nos unir e fazer algo.

Qual é o papel da raiva coletiva em nosso processo político? A raiva como a de protestos, de preferência sem a parte da vingança, pode servir para nos impulsionar à igualdade ou para resolver outros problemas sérios. Com frequência, no entanto, a sede por vingança, tão fácil e atraente, confunde as pessoas, fazendo-as pensar que tudo vai ser resolvido se outro grupo sofrer. O maior obstáculo que a raiva traz é a ilusão de que a dor pode ser compensada com mais dor: os contos de fadas mais antigos nos fazem acreditar que alguns de nossos problemas reais e difíceis — como a fome em João e Maria — serão resolvidos se incinerarmos a bruxa, e creio que acreditamos muito facilmente nessa conclusão. O desejo de vingança dificulta ainda mais a resolução de conflitos reais.

Em sua opinião, o presidente Donald Trump provocou medo e raiva no público americano de propósito? Se sim, como? Acho que o presidente alimentou de forma deliberada o medo contra imigrantes, minorias raciais, muçulmanos e o islamismo. São medos ignóbeis, porque abrangem e condenam grandes grupos de pessoas sem questionar precisamente sobre quem estamos falando e qual o problema real e alimentam nossas piores tendências — do bode expiatório, da demonização —, em vez de resolver a questão central ou até mesmo perguntar que questão é essa. O medo costuma se espalhar como fogo, e um bom político precisa conter isso e impedir que esses grupos se tornem alvos. Depois do 11 de setembro, o presidente George W. Bush discursou bem sobre o medo crescente voltado a muçulmanos e ao islamismo, dizendo que não deveríamos demonizar um povo ou religião inteiros, e sim procurar por criminosos. De fato, isso foi tão importante que ele manteve um arquivo de todas as suas declarações sobre o islamismo. Eu falo sobre isso no livro, fazendo um contraste com a retórica do presidente Trump.

A senhora escreveu que “a questão política é sempre sentimental” e que esse é um aspecto crítico da situação atual. O que quis dizer com isso? As pessoas associam muito política emocional ao fascismo. Todos os políticos, no entanto, precisam provocar emoções para fazer com que as pessoas se importem com suas propostas e lutem por elas. A pergunta não é se políticos deveriam apelar para os sentimentos, mas quais são esses sentimentos, quando, e com quais argumentos eles serão relacionados. Durante o New Deal, (o então presidente americano) Franklin Delano Roosevelt precisava convencer os americanos a aceitar uma série de propostas radicais. Ele pensou bastante sobre formas de comover o eleitor e fazê-lo apoiar os programas do New Deal. Nós temos seguridade social por causa da engenhosidade com que ele fez um apelo ao emocional. Foi semelhante a nosso progresso quanto aos direitos civis, que ocorreu por causa da habilidade de (Martin Luther) King de despertar emoções positivas de esperança e amor em tempos sombrios. Então me parece equivocado quando os liberais dizem que não devemos apelar para as emoções. Imagine se King tivesse falado no mesmo estilo de John Stuart Mill (filósofo e economista britânico) ou John Rawls (filósofo político americano). Sua missão teria sido um fracasso.

Como os filósofos podem influenciar o mundo de hoje? Eu não gosto de mandar nos outros, mas acho que seria bom se pelo menos alguns filósofos tentassem cativar o público. O problema é que há poucos lugares onde um filósofo pode escrever para o público. Jornais não costumam publicar artigos de opinião escritos por filósofos. Então aqueles de nós que são sortudos e conseguem ser publicados nesse clima desfavorável têm de aproveitar!

Por que a senhora acredita que precisamos de “uma sociedade de cidadãos que reconheçam que são carentes e vulneráveis”? Pense novamente no bebê. Enquanto ele se desenvolve, torna-se capaz de fazer mais por si e não obtém nada escravizando os outros. Nesse ponto, ele entende que as outras pessoas deste mundo também têm necessidades e sentimentos e começa a construir relacionamentos baseados na interdependência e na ajuda mútua em vez de apenas mandar e obedecer. É disso que a democracia precisa: pessoas que admitam que são todos igualmente humanos, carentes e vulneráveis e que firmem uma aliança de reciprocidade e ajuda mútua.

A senhora já escreveu bastante sobre intolerância religiosa. Qual foi sua experiência pessoal em relação a isso quando se converteu ao judaísmo? Como essas experiências influenciaram seu trabalho? Infelizmente, o antissemitismo que conheço é mais um preconceito racial do que religioso. E todos os antissemitas de Harvard, percebendo que meu nome havia mudado de Craven — quando eu havia me inscrito na graduação — para Nussbaum — quando comecei os estudos —, continuaram me tratando como uma Wasp (sigla em inglês para pessoa branca, anglo-saxã e protestante) enquanto desdenhavam de meu marido. Com frequência me perguntam, na Europa, se sou “realmente” judia, pois meu nome é muitas vezes — mas não sempre — um nome judeu, mas minha aparência denota para muitos uma identidade não judia, já que esses estereótipos ainda são abundantes. Então não sou bem uma vítima de antissemitismo. Mas é claro que observo essas irracionalidades e as ideias horríveis que elas encarnam, e um dos tópicos principais de meu trabalho é como conceitos irracionais de estigma e de aversão brotam em todas as sociedades, de diferentes formas em diferentes lugares. As pessoas se sentem inseguras por terem corpos de animais e então projetam esses traços — hiperanimalidade, hipersexualidade — sobre diversos grupos de minoria e em seguida dominam esses grupos, levando ao antissemitismo, ao racismo e à homofobia.

A senhora descreveu seu pai tanto como um exemplo a ser seguido, que “simbolizava a beleza e a maravilha”, quanto como um racista e antissemita. Como você concilia essas duas coisas? As pessoas são uma mistura de bem e mal. Pessoas maravilhosas, carinhosas e inspiradoras podem nutrir defeitos graves e pontos cegos. Meu pai nasceu em 1901, em Macon, na Geórgia, e se mudou para o norte depois dos 40 anos. Então seu comportamento era bem típico daquele lugar e daquela época; só haveria apoio para a integração racial em Macon mais tarde, talvez nos anos 1960. Isso é uma explicação, não uma desculpa, mas a maioria das pessoas não é capaz de heroísmo moral clarividente. E elas não mudam opiniões profundamente enraizadas depois de velhas. Não se esqueça de que muitos abolicionistas e, depois, heróis do movimento dos direitos civis dos negros eram contra a igualdade de gênero. Elizabeth Cady Stanton (ativista social americana) relata que sua entrada não era permitida quando abolicionistas se reuniam. Como é que esses heróis eram tão intolerantes? Muitos antirracistas também eram contra a igualdade de direitos civis para gays e lésbicas. Estamos todos em fase de desenvolvimento, moralmente falando, e nossa cultura também. Nem sabemos quais são nossos pontos cegos que serão condenados pelas gerações futuras.

Tanto o ramo da filosofia como o dos estudos clássicos são vistos como hostis para as mulheres. A senhora enfrentou algum obstáculo nesses espaços devido ao gênero? Certamente deparei com machismo em ambos, além de assédio sexual e total falta de apoio para mães — minha filha nasceu quando eu estava começando a dissertação. Cheguei na hora certa, porque, cinco anos antes, nenhuma das vagas nas grandes universidades estava aberta para mulheres. Fui a primeira mulher da Society of Fellows, grupo de acadêmicos de Harvard. Encontrei muitos obstáculos, e o machismo foi pelo menos parte do motivo de eu não ter me tornado titular em Harvard. Também encontrei alguns homens que eram feministas de verdade e que lutavam pela igualdade de gênero: o economista Wassily Leontief, que levou mulheres à Society; o filósofo Bernard Williams, um de meus professores mais importantes; os filósofos Hilary Putnam e Stanley Cavell, dois colegas de Harvard. Hoje, eu diria que o ramo dos estudos clássicos é melhor para mulheres do que a filosofia: a proporção de mulheres em cargos de chefia é muito maior e isso cria uma atmosfera melhor para todos. Mas estamos nos esforçando e temos alguns procedimentos que asseguram o devido processo legal, o que não é o caso na Europa, onde ainda reina um sistema de Clube do Bolinha.

No passado, a senhora criticou feministas acadêmicas por estarem muito distantes das mulheres de verdade. De que tipo de feminismo precisamos hoje? Em termos reais, como isso pode ser promovido? Acho que as feministas hoje em dia estão bem engajadas em resolver problemas reais, então estou menos preocupada do que estava antes. Houve um tempo, porém, em que pensei, e escrevi, que feministas acadêmicas haviam se tornado muito acadêmicas: discutindo tópicos confusos, usando jargões impenetráveis e sem fornecer uma orientação inteligível a pessoas que pudessem pôr em prática os ideais feministas. Constrastei entre esse tipo de feminismo acadêmico com as primeiras feministas americanas — que contribuíram para mudanças em legislações que tratam de estupro, assédio sexual e violência doméstica — e também com a realidade atual do feminismo acadêmico na Índia. Lá, as feministas acadêmicas nunca se tornaram pedantes: elas continuam com o compromisso de fornecer orientação inteligível para a prática política. Acho que a maré nos Estados Unidos começou a mudar: feministas mais novas estão aprendendo a escrever com clareza e eloquência e a usar sua voz de maneira eficaz. O feminismo acadêmico, como o restante da sociedade, precisa respeitar e aceitar pontos de vista divergentes. Não podemos progredir sem debater uma ampla variedade de posicionamentos de boa-fé. Existem limites: revistas não podem publicar artigos de negacionismo do Holocausto ou artigos racistas. Mas devemos poder fazer explorações de boa-fé sobre assuntos difíceis. Não há uma “versão oficial” do feminismo. Deveríamos ensinar uma ampla variedade de posicionamentos divergentes.

Texto e imagem reproduzidos do site: epoca.globo.com

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