A naturalização da morte é um das vias para tornar a sociedade ainda mais violenta.
(JUVENTUDES CONTRA VIOLÊNCIA)
(JUVENTUDES CONTRA VIOLÊNCIA)
Publicado originalmente no site Brasil El País, em 10 DEZ 2018
Direitos humanos para humanos sem direitos
O ser humano que não conhece os próprios direitos está
fadado a se resignar com a tirania de quem trata garantias básicas como
privilégios
Por Breiller Pires
Para salvar uma senhora de 83 anos rendida como refém, dois
policiais aproveitam a distração do assaltante e o executam com cinco tiros em
plena luz do dia. A tentativa de roubo a uma joalheria de Valença, no sul
fluminense, termina em morte. Testemunhas filmam a cena como se fosse um jogo
de futebol e comemoram seu desfecho como um gol em final de campeonato. A
quatro dias do 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o
Brasil escancarado em mais uma tragédia para a conta do Rio de Janeiro
celebrava sem constrangimentos seu irremediável processo de desumanização.
Os aplausos diante do corpo estendido na rua poderiam ser
interpretados como um desabafo perante a exaustiva sensação de insegurança, que
agora se estende às pequenas cidades, ou um gesto de reconhecimento pela ação
da polícia que mais mata e mais morre ao libertar a refém, não fossem gritos
tal qual os de torcida num estádio que bradavam “atira nele”, “pega fogo”,
“mata logo”. O que de fato se comemorava naquela manhã da última quarta-feira
era a materialização do lema “bandido bom é bandido morto” ao alcance dos
olhos. Um deleite coletivo pelo abate do assaltante.
Tratados como heróis, policiais receberam cumprimentos de
Jair Bolsonaro nas redes sociais, prontamente respondidos pela PMERJ, que prestou
continência ao “Exmo. presidente eleito”. Em uma situação extrema, que
representava risco à vida de uma mulher, os agentes agiram como manda o
protocolo das forças de segurança. Entretanto, um incidente resolvido com o
assassinato de um ser humano, independentemente do delito praticado, jamais
deveria ser motivo de comemoração. A naturalidade com que passamos a encarar a
morte na rotina de uma sociedade violenta insinua que a barbárie tem vida
própria, está dissociada da nossa conduta e só pode ser combatida com mais
sangue derramado. Esses sentimentos primitivos, da sede por justiceiros e
linchamentos ao regozijo com a bala na cabeça do ladrão, são diariamente
insuflados por políticos e discursos midiáticos irresponsáveis.
Bordões como “CPF cancelado”, utilizados por pregadores do
caos na televisão em referência a suspeitos abatidos pela polícia, dão um toque
de humor sádico à selvageria. A assimilação da violência como norma só foi
possível graças à popularização de programas policialescos que, não bastasse o
empenho em construir uma narrativa que resume o país à fama de recordista de
homicídios, contribui para distorcer o significado dos direitos humanos,
demonizando-os sob o malfadado estigma de “muleta para defensores de bandido”.
Vende-se a falsa ideia de presos gozam de regalias e
criminosos são superprotegidos pela lei. Ignora-se, no entanto, que o Brasil
possui a terceira maior população carcerária do mundo, sendo que mais de um
terço corresponde a presos que nem sequer foram julgados, submetidos – salvo
raras exceções, onde o índice de reincidência após cumprimento da pena costuma
ser bem menor que a média nacional – a condições de tratamento desumanas. Ao
contrário da lenda que virou verdade nos grupos histéricos do Whatsapp, ninguém
comete um crime para viver de “bolsa cadeia”. Menos de 8% dos detentos
brasileiros têm direito ao auxílio-reclusão, um benefício do INSS destinado
apenas aos dependentes do preso de baixa renda (salário inferior a 1.300 reais)
com histórico de contribuição à Previdência Social.
O auxílio-reclusão, por sinal, ilustra bem para que serve um
direito humano. Se todas as famílias de contribuintes devem ser contempladas
com o benefício em caso de morte, doença, afastamento ou invalidez, as dos
encarcerados também precisam se enquadrar na mesma regra, pois não é justo que
elas paguem por eventuais crimes cometidos pelos provedores de seu sustento.
Princípios básicos dos direitos humanos se estabelecem pelo caráter da
universalidade: só fazem sentido se compreenderem todos os indivíduos. Justamente
para evitar que sejam convertidos em privilégios de poucos. A partir do momento
em que negamos um direito fundamental a qualquer pessoa, ele deixa de valer
para todo o resto.
Como cobrar punição rigorosa para bandidos sem farda se os
maus policiais já contam com licença para matar e, caso o futuro governo cumpra
a promessa de ampliar os excludentes de ilicitude, abusarão ainda mais da
impunidade institucional para transformar a premissa de proteger o cidadão em
aparato de genocídio? Qual o sentido de dizer que os direitos humanos
atrapalham o trabalho da polícia ao passo que um de seus propósitos é evitar
que agentes de corporações militares arrisquem a vida em guerras sem sentido?
Por que acreditar que a redução da maioridade penal pode diminuir a violência
sem antes levar em consideração que, numa mesma cidade, convivem jovens que
saem da sala de aula preparados para o vestibular e outros, da mesma idade, que
se escondem de tiroteios debaixo das carteiras? O que se esconde por trás de
tantos apelos em prol da revogação do Estatuto do Desarmamento em um dos países
mais perigosos para ativistas e militantes, capaz de promover um notório
estimulador do ódio a movimentos sociais a ministro do Meio Ambiente no mesmo
fim de semana do assassinato de dois trabalhadores sem terra? A perspectiva das
campanhas difamatórias contra os direitos humanos despreza a realidade, dados e
inúmeros estudos que refutam a tese de que a maioria da população desfruta de
direitos demais.
Não por acaso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
sublinha que “toda pessoa tem direito à educação”. Seus mandamentos deveriam
ser disciplina obrigatória nas escolas. O ser humano que não conhece os
próprios direitos está fadado a se resignar à tirania de quem trata garantias
básicas como privilégios, banaliza a matança e sentencia que as minorias se
curvem à maioria. O termo “minorias”, para que fique claro, não está
relacionado ao tamanho de um grupo, mas sim a seu grau de vulnerabilidade:
pobres, negros, mulheres, índios, LGBTs. Os direitos humanos têm de estar ao
alcance de todos, mas, principalmente, dos humanos sem direitos.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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