Publicado originalmente no site da revista CARTA CAPITAL, em 28 de janeiro de 2019
A herança de Caim
Por Mino Carta
Segundo a “doutrina Damares”, descendemos do vilão primevo,
enquanto Olavo de Carvalho informa que o Sol gira em torno da Terra
E Galileo Galilei disse: “Eppur si muove”. Bertolt Brecht já
os escalou na ribalta. Vejo-o voltar-se para a plateia, com expressão matreira
para murmurar um trovão manso: “E, no entanto, move-se”. Falava da nossa Terra,
processado por heresia pela Inquisição, no melhor estilo de Sérgio Moro, que
pretendia o planeta no centro do universo, enquanto o Sol girava ao seu redor.
Pergunto aos meus resignados botões se o guru do presidente
Bolsonaro, Olavo de Carvalho, e a ministra Damares percebem a diferença das estações,
ao menos entre calor e frio. Ora, ora, respondem, felizmente eles não dispõem
de tempo para se interessar por fenômenos desimportantes, têm mais para pensar.
Aqui no meu canto, ocorre-me um grego chamado Tales capaz de medir de cabeça a
distância entre a Terra e a Lua por ocasião de um eclipse. Constatou então que
planeta e satélite não eram planos e errou por muito pouco no seu cálculo, algo
em torno de 10 mil quilômetros, uma bagatela diante dos 360 mil apurados com o
emprego de instrumentos modernos. Tales, de Mileto, nasceu 624 anos antes de
Cristo.
Há quem diga que a vida é um sonho e haver mais mistérios
entre o céu e a terra do que possa imaginar a nossa vã filosofia. Figuras como
o inspirador presidencial e a ministra abençoada pela visão de Jesus em um pé
de goiaba pertencem à categoria dos seres humanos imunes ao contágio da vã
filosofia. Verifico que nesta edição Nirlando Beirão das alturas do QI dirige
aos leitores umas tantas perguntas a respeito do criacionismo, certamente
sugeridas por seu infatigável espírito investigativo e melhor conhecimento das
questões ali aventadas.
Não tenho perguntas a acrescentar ao questionário, a não ser
uma constatação inevitável. Expulsos do Paraíso Terrestre para ganhar a
consciência de sua finitude e, em geral, dos riscos da vida, Adão e Eva põem no
mundo um filho bom e outro mau. Este, Caim, mata Abel. Nirlando pergunta: quem
foi a mulher para dar continuidade à estirpe? Deu-se, obviamente, o primeiro
incesto. Permito-me ir além: descender de Caim não é um trunfo, somos os
herdeiros do vilão primevo, integral e absoluto. Aterradora conclusão, embora
explique diversos aspectos da natureza humana.
O presidente Bolsonaro diz ter a missão de combater a
corrupção e a violência. São legados de Caim. Árdua, imponente, a tarefa a que
se propõe o primeiro mandatário. Como de hábito, sou assolado pelas dúvidas,
instigadas de saída por uma situação banal. Ando pela rua e observo, pendurados
nos postes, cartazes em que se estampa a garantia de que quaisquer infrações de
trânsito, até a retirada da carteira de motorista, serão perdoadas desde que o
infrator ligue para certo número de telefone. Nunca vi algo similar em países
do mundo dito civilizado. O exemplo é aparentemente pequeno, mas persuasivo, da
devastação moral provocada por uma doença endêmica. Em política, nenhuma bala é
perdida. Não há partido que escape, a começar por aqueles mais habilitados a
perpetuar as oligarquias e a servir à casa-grande.
Tanto mais pesada a missão do presidente, a se considerar a
tensão criada pelo caso do motorista Queiroz e pelas suspeitas a envolver as
famigeradas milícias cariocas. E por falar em violência, colocar armas nas mãos
da família brasileira não me soa como a medida mais adequada. Gozo, inclusive,
da aprovação até do mundo mineral.
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