O ministro Alexandre Moraes é o relator do inquérito do STF sobre fake news,
aberto após pedido de ofício do presidente Dias Toffoli.
Publicado originalmente no site do jornal El País Brasil, em 17 de abril de 2019
“Atitude do STF com ‘Crusoé’ pode ser vista como intimidação
às empresas de comunicação”
O Comitê para a Proteção dos Jornalistas, sediado em NY,
também diz que decisão "suscita sérias dúvidas" sobre o compromisso
da Corte com a liberdade de expressão
Por Beatriz Jucá
O Supremo Tribunal Federal (STF) abriu um controverso
inquérito para investigar a propagação de notícias falsas contra membros da
Corte. Embora a Procuradoria Geral da República tenha chegado a solicitar mais
informações sobre a apuração — e a legislação brasileira determine o prazo
máximo de 30 dias para essas respostas— elas nunca foram dadas. Ao tomar
conhecimento de que o relator do inquérito, ministro Alexandre de Moraes,
instruiu a Polícia Federal a cumprir oito mandados de busca e apreensão e
determinou a retirada de uma reportagem da revista Crusoé na qual o delator
Marcelo Odecrecht citava o presidente Antonio Dias Tofolli sob pena de uma
multa diária de 100.000 reais à publicação, a procuradora Raquel Dodge
recomendou o arquivamento do inquérito, que segundo é ilegal. Uma orientação
que Alexandre de Moraes preferiu ignorar, mantendo, dentre as determinações, a
censura à revista. Pesquisadores e entidades do setor analisam que a posição do
Supremo abre um "precedente perigoso" contra a liberdade de imprensa,
que no Brasil já vem sendo alvo de ataques intensos pelo menos desde as últimas
eleições.
"Nenhuma instituição está acima de um valor democrático
como é a liberdade de imprensa", diz o jornalista e professor do
Departamento de Ciências Políticas da Universidade Federal do Paraná, Jamil
Marques. Para o pesquisador, ao instaurar o inquérito sobre fake news, o STF
extrapola suas atribuições duas vezes: ao se sentir capaz de ser investigador e
juiz ao mesmo tempo e ao tolher (com a censura à reportagem) o exercício da
atividade jornalística. "Essa atitude pode ser vista como uma intimidação
não só ao profissional responsável pela investigação jornalística, mas também
às empresas de comunicação, que podem preferir não comprar uma briga com uma
instituição poderosa que sinaliza que não vai recuar", avalia.
Como o STF é a instância máxima da Justiça brasileira, Jamil
Marques acredita que o ato de censura abre um precedente perigoso. "Não se
vê um caso como este acontecer em nenhum outro poder da República. O
presidente, por exemplo, pode não gostar de uma investigação jornalística e até
acusá-la de fake news, mas não tem o poder de abrir um inquérito investigativo
e conduzir uma peça acusatória e talvez até condenatória por si mesmo",
pontua. Esse procedimento atípico — tendo em vista que historicamente o Supremo
costuma atuar quando é provocado — expõe também uma mudança de posicionamento
da corte, que tomou uma série de decisões baseadas em delações premiadas e
agora, quando tem seu presidente citado em uma delas (ainda que não seja
incriminado), passa a questionar a atuação da imprensa ao noticiar o conteúdo
das delações.
Para embasar sua decisão, o relator Alexandre de Moraes diz
que a reportagem em questão propaga fake news, já que a PGR não admite haver
recebido o documento da delação como consta na reportagem. O ministro ignora,
porém, que pelo menos outros dois veículos jornalísticos tiveram acesso ao
inteiro teor do documento incluído e dias depois retirado dos autos da Operação
Lava Jato. A relação entre o Supremo e membros da operação é conflituosa, com
acusações de enfraquecimento das investigações para evitar que elas cheguem ao Judiciário.
"O que aconteceu é que se perdeu um pouco o controle. Boa parte das
condenações da Lava Jato foram baseadas somente em delações, o que já é atípico
na Justiça brasileira, que costumava decidir com base em provas materiais. A
imprensa caiu em um denuncismo, e o STF também. Agora, quando ele é atingido,
reage contra o método que avalizaram", afirma o professor da Escola de
Comunicação e Artes da USP, Dênnis de Oliveira.
"Corremos um risco muito sério [sobre a garantia da
liberdade de expressão], e o STF abre um precedente perigoso. O Brasil vive um
vácuo jurídico sobre a regulamentação da comunicação, e as decisões acabam
ficando sob a interpretação do Judiciário a seu bel prazer", avalia
Oliveira. A professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas, Eloisa Machado,
pondera que a citação em uma delação não necessariamente é verdadeira e que
isso só será esclarecido ao final das investigações. Ainda assim, ela defende o
direito de a imprensa reportar o conteúdo. "Essa decisão de Alexandre de
Moraes desconsidera a liberdade de imprensa, a importância do trabalho
jornalístico e promove censura sim", analisa. Ela cita também como exemplo
de cerceamento à imprensa a decisão do ministro Fux em impedir que o
ex-presidente Lula concedesse entrevista na campanha eleitoral desde Curitiba,
onde está preso. "Não é o ministro que pode decidir o que a sociedade pode
ou não ler", argumentou Machado, em entrevista ao repórter Felipe Betim.
Acredito no Brasil e em suas instituições e respeito a
autonomia dos poderes, como escrito em nossa Constituição. São princípios
indispensáveis para uma democracia. Dito isso, minha posição sempre será
favorável à liberdade de expressão, direito legítimo e inviolável. (Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) 16 de abril de 2019).
O Comitê para a Proteção dos Jornalistas, entidade da
sociedade civil baseada em Nova York, também criticou a posição do STF, que tem
repercussões claras para a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão no
país. A coordenadora da entidade nas Américas, Natalie Southwick, afirma que a
decisão sobre um membro da própria Corte "suscita sérias dúvidas quanto ao
compromisso do STF de defender e garantir plenamente a liberdade de imprensa em
um país onde a imprensa já enfrenta ameaças legais", incluindo casos de
difamação, estes mais comuns nas decisões de juízes brasileiros para retirar
conteúdo jornalístico do ar.
Eleições intensificaram ataques à imprensa
Os ataques à imprensa, argumentam os pesquisadores, não são
uma novidade. Mas foram intensificados principalmente nas últimas eleições
presidenciais, onde candidatos — inclusive o presidente Jair Bolsonaro —
endossaram a retórica contra os veículos de comunicação. Nesta terça-feira, o
próprio Bolsonaro se manifestou no Twitter a favor da liberdade de expressão. O
vice Mourão, por sua vez, afirmou que este caso "vai além da
censura".
Entidades jornalísticas e também de outros setores, como por
exemplo a Ordem dos Advogados do Brasil, emitiram notas com críticas à
determinação do ministro Alexandre de Moraes para retirar do ar a reportagem da
Crusoé. A posição do relator do inquérito sobre fake news também desagradou
outros membros do Supremo. O ministro Marco Aurélio Mello disse ver censura na
decisão. "Isso pra mim é inconcebível", declarou ao Estadão. Para o
pesquisador Jamil Marques, os impasses que rodeiam o inquérito sobre fake news
mostram que o STF está mergulhado em uma crise mais complexa do que apenas a de
ameaça à liberdade de expressão.
"O que me preocupa mais é que a questão parece ser mais
ampla que o cerceamento à liberdade de trabalho do jornalista. Abre uma serie
de conflitos internos [na Corte] e externos, com outros integrantes do sistema
de Justiça. Isso pode trazer consequências imprevisíveis porque não se sabe
quem tem jurisdição sobre o que. Tudo isso neste momento de crise em que o
Brasil precisa de estabilidade para o funcionamento das instituições",
finaliza.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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