Nilton Fukuda (Do Estadão)
Publicado originalmente no site da revista ISTOÉ, em 05/04/2019
Entrevista com Miguel Reale Jr.
Bolsonaro insiste em abrir caminho para o impeachment
Por Vicente Vilardaga
O jurista Miguel Reale Jr, de 74 anos, está incomodado com
os resultados pífios dos primeiros cem dias do governo de Jair Bolsonaro. Para
ele o presidente é inoperante, não se envolve com os problemas fundamentais do
País, diz repetidas tolices e só se move pela via do conflito, do antagonismo e
da busca de inimigos. Tenta, além disso, reproduzir a antiga ideologia da Lei
de Segurança Nacional e se apresenta como um governante que está salvando o
País contra o avanço da esquerda, que, neste momento, está paralisada. “Não
existe nada que seja pacífico, nada que seja harmônico. O que me assusta é o
anacronismo de trazer de volta a mentalidade do passado”, diz Reale. “Corremos
o risco de entrar numa ditadura por meio do voto”. Em março, diante da
publicação pelo presidente de um vídeo pornográfico nas suas mídias sociais, o
jurista chegou a considerar um pedido de impeachment por falta de decoro.
Desistiu da ideia porque ainda não existem condições políticas para um pedido
desse tipo. Mas, pelo comportamento do presidente, essas condições podem surgir
rapidamente.
O que o senhor achou desse esforço do governo para comemorar
o Golpe de 64? É algum tipo de provocação?
O presidente Jair Bolsonaro desconhece a história
brasileira, desrespeita aqueles que lutaram pela liberdade durante tantos anos
e desrespeita os que foram torturados pelo major Ustra ou por outros membros
dos organismos sigilosos de repressão. Faz tábula rasa do passado, do
sofrimento e da luta que tantos empreenderam, inclusive eu. É um desrespeito,
um acinte à história. Para que isso? Para reproduzir essa ideologia da
Segurança Nacional. É sempre a mesma ideia. Na hora que quer fazer uma
releitura do golpe, ele diz que é um ato de salvação do Brasil contra a
esquerda. Na verdade, ele quer justificar esse mote do governo dele, que é
sempre de oposição a algo, sempre de guerra, sempre de conflito. Não existe
nada que seja pacífico, nada que seja harmônico. O que me assusta é o
anacronismo de trazer de volta aquela mentalidade do passado.
Que mentalidade?
A mentalidade do confronto, da Lei de Segurança Nacional. O
que é a Lei da Segurança Nacional? É o antagonismo. É combater os antagonismos
que visam evitar os objetivos nacionais permanentes. O tempo inteiro esse
sujeito, o presidente da República, vive no antagonismo. Ele vai plantar uma
oliveira em Israel e diz que a oliveira dele vai crescer mais do que a do Lula.
O tempo inteiro tem uma contraposição, uma litigiosidade. Nada é prospectivo,
nada é no sentido positivo. O tempo todo ele precisa da contraposição, ele
precisa de inimigo. É uma obsessão com o inimigo.
Como disse Umberto Eco, a mídia social deu voz ao idiota,
que antes não tinha como vocalizar e agora tem
Como a afirmação do presidente de que o nazismo é de
esquerda?
Isso é uma tolice gigantesca. Ele não conhece nada da
história. O Partido Socialista e o Partido Comunista na Alemanha foram
perseguidos. A maioria de seus membros foi morta. O principal eixo de ação
policial da Gestapo e da SS eram os partidos comunista e socialista. Todo o
ideário nazista é tipicamente, claramente, baseado no heroísmo e sustentado no
pensamento de direita, não de igualdade.
No Carnaval teve a publicação do vídeo pornográfico no
Twitter do presidente. Como interpretar isso?
Acho que se deve ter uma visão de conjunto de todos os atos
que o presidente vem praticando para compreender a motivação e a dinâmica desse
comportamento. Ele ataca a imprensa, ataca a formação esquerdista da academia
brasileira. Ou seja, o presidente atua sempre com respostas a situações que lhe
são críticas de uma forma visceral, e isto aconteceu no caso da divulgação do
vídeo. É uma resposta de maneira bruta às críticas que ele recebe. Não foi
nenhuma questão moral que levou o presidente a divulgar o vídeo. Foi uma
retaliação contra o Carnaval. Veja no que muitos blocos se transformaram? Ele
generaliza aquele ato e estabelece uma identidade falsa entre o ato e a ação
dos blocos. Por que? Porque muitos blocos fizeram críticas a ele.
O senhor falou que a publicação do vídeo poderia ser
passível de um pedido de impeachment. É mesmo?
É passível de impeachment porque o impeachment precisa ter a
configuração de um delito político e o delito está na falta de decoro. Enviar
esse vídeo para a população brasileira com acesso à internet foi escarradamente
uma falta de decoro. Esse é o pressuposto jurídico, falta o pressuposto
político. Acho que politicamente agora não tem viabilidade, nem haveria
caminho, mas o presidente está insistindo em abrir esse caminho para o
impeachment.
Dá a sensação de que o presidente se sente livre para fazer
o que quer?
Ele sente-se poderoso, ele é um mito sem dizer nada, sem
pensar nada. E ele foi incensado para isso. Sem esforço nenhum se tornou um
líder depois de 28 anos de uma legislatura medíocre.
E esse uso intensivo das redes sociais. Como o senhor vê
isso e como associa esse uso à democracia?
A rede social é um novo agente político. Elas são capazes de
desconstituir, mas não de constituir. E se vê que quando a mídia social vai
constituir um governo, ela está multifacetada, com opiniões que são muito mais
emocionais do que fundamentadas em propostas, ideias e avaliações. Ela trabalha
só com elementos emocionais e toca nos pontos da superfície, como em questões
de costumes e de defesa, por exemplo.
Ela não reflete a opinião pública?
Ela reflete uma opinião emocional, não refletida. Ela deu
voz, como diz o Umberto Eco, ao idiota, que antes não tinha como vocalizar e
agora ele vocaliza sua opinião e se sente no direito de criticar todo mundo, de
forma até baixa, de fazer as relações as mais absurdas.
O senhor acha que ele está adiando o enfrentamento dos
problemas?
As vezes em que ele foi falar sobre questões de governo foi
um desastre. Quando ele vai falar sobre economia, ele fala e, em seguida, é
interpretado. Na verdade ele vive como se precisasse sempre ser interpretado,
ou pelo ministro da Economia ou pelos militares que o cercam.
Os militares viraram uma força moderadora?
Moderadora, interpretativa e acomodativa. Primeiro porque o
mundo evoluiu de tal forma que o mundo não permite mais ditaduras. Existe uma
rejeição a qualquer ato de ditadura e isso seria inadmissível na comunidade
internacional. E depois, o Brasil se consolidou como democracia, apesar de
todos os partidos políticos estarem fragilizados houve uma consciência
democrática que se cristalizou especialmente junto à classe média, à
intelectualidade e à massa crítica do país.
Mas a oposição parece muito enfraquecida.
Não existe. A classe política foi vitimada pelas denúncias
de corrupção e pegou os dois partidos que eram mais organizados e pensantes,
que são o PT e o PSDB. Lideranças importantes dos dois partidos, desde um Lula
até um Aécio, foram atingidas. E isso fragilizou muito os partidos políticos,
mas eles ainda estão estruturados e têm capacidade de mobilização contra
qualquer ato que vá violar a democracia. Há também o movimento sindical e as
entidades da sociedade civil brasileira, que estão muito amortecidas, mas no
momento em que acontecer alguma coisa mais grave haverá uma reação.
Que tipo de coisa grave?
Temos que esperar. Ele só tem uma bala de prata para tentar
compor seu governo com uma perspectiva de médio prazo, que é a Reforma da
Previdência. Ele já disse que não dá para governar o País com Congresso
Nacional, falou isso numa entrevista que deu. Dentro dessa linha de certa
coerência, o que ele falou lá atrás não está desdito pelos comportamentos de
hoje. A insatisfação do Congresso com ele é crescente, cada vez que ele solta
um Twitter perde um voto ou mais. E se não passa a Reforma? É nisso que eu vejo
lá para frente uma eventual perspectiva de confronto mais grave.
Se não conseguir aprovar a reforma?
As reações dele frente à contrariedade são reações
violentas. Não consegue dialogar, não consegue viver com uma derrota. Foi
ungido presidente sob o manto de ser um mito. Mas sua desmistificação está
ocorrendo em pequenos incidentes e na hora que vier um incidente mais profundo,
que comprometa a perspectiva do País a médio e longo prazo, como o mito vai
enfrentar isso. Esse é meu medo.
O presidente vive como se precisasse sempre ser interpretado,
ou pelo ministro da Economia ou pelos militares
Como o senhor vê o pacote anti-crime?
É pura perfumaria porque não resolve nada. Vou dar um
exemplo. O que o Código Penal e a lei de crimes hediondos propõem? Pela lei
quem pratica um crime hediondo tem que ficar no regime fechado dois quintos da
pena. O projeto propõe que passe para três quintos em regime fechado. O que
isso resolve? Nada. Estabelece que para determinados crimes, sejam de corrupção
ou violentos, o condenado cumpra pena em regime fechado. Pergunto qual é o
condenado por roubo a mão armada, por exemplo, hoje em dia, que a Justiça não
determine que cumpra pena em regime fechado?
E quantos aos crimes do colarinho branco?
Nos crimes de corrupção ele deixa de elencar o mais grave de
todos que é o de concussão, a extorsão para retirar dinheiro, exigir de alguém
que lhe dê dinheiro para fazer ou deixar de fazer algo. Esquece a concussão e
estabelece que a corrupção e o peculato tenham regime fechado. É uma posição
muito simplória que eu chamaria de ilusão penal. Ele acha que aumentando o
prazo de regime fechado resolverá o problema da criminalidade. Errado. Dou o
exemplo do feminicídio. Matar por questão de gênero passou a ser um crime
qualificado, com pena elevada de 12 a 30 anos. E os feminicídios aumentaram.
Se tivesse continuado na Lava Jato estaria fazendo um
serviço melhor?
Acho que sim, primeiro porque afastaria qualquer dúvida de
eventual parcialidade. Ele foi para um governo que é inimigo do PT, do PSDB, e
deu sentenças, a começar pelo caso do Lula, contra políticos desses partidos. E
depois fiquei insatisfeito em ver o ministro sendo desautorizado na nomeação da
cientista política Ilona Szabó para o Conselho Penitenciário. Foi uma
humilhação. Bolsonaro não respeitou o ministro. Moro não teve liberdade para
indicar a suplente de um conselho. Por quê? Porque ela critica o governo.
Bolsonaro não consegue conviver com a adversidade.
Texto e imagens reproduzidos do site: istoe.com.br
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