'Eu acho que tem que se lidar com realidades, e a realidade atual é que o presidente não tem maioria consolidada dentro do Congresso, nem nós temos hoje partidos
ou lideranças políticas, e vivemos uma crise muito grande'
Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
Publicado originalmente no site do jornal Correio Braziliense, em 19/05/2019
'Bolsonaro está no meio de um furacão', diz ex-presidente
José Sarney
Em entrevista ao Correio, José Sarney avalia que atitude do
presidente Jair Bolsonaro acirra os problemas que vivemos. Pela primeira vez,
Sarney vê o Brasil em um momento imprevisível
Por Ana Dubeux e
Denise Rothenburg
O ex-presidente José Sarney é um dos últimos dos políticos
de sua geração ainda “na ativa” e que tem engarrafamento na porta de casa por
ocasião do seu aniversário. Em 24 de abril, quando completou 89 anos, não foi
diferente. A política, assim, sem adjetivos, passou por lá. A nova política de
Jair Bolsonaro, Sarney diz ainda não saber o que é. Porém, não tem dúvidas em
relação aos movimentos do presidente: “Acho que ele está colocando todas as
cartas na ameaça do caos (...) O presidente é quem deve se adaptar à cadeira e
não a cadeira ao presidente”, diz, ao receber o Correio Braziliense para um
café que resultou em quatro horas e 20 minutos de conversa, com uma hora e meia
de entrevista gravada na última quarta-feira, acompanhada em parte por d. Marly
e a filha, Roseana.
As palavras de Sarney soam como um alerta. Afinal, são a voz
de quem enfrentou a ditadura Vargas, na UDN; viveu o período pré-64; o regime
militar; participou do processo de redemocratização do país; e agora, avalia o
sétimo governo da volta à democracia, torcendo por sua permanência. “Bolsonaro
está no meio de um furacão. Pela primeira vez, estamos num momento em que é
imprevisível. Fratura no Judiciário, no Legislativo e no Executivo. Todas essas
estruturas estão trincadas”, diz ele. Com tanto tempo de janela, Sarney viu
pedras virarem vidraças e vice-versa. Hoje, é só elogios a aliados que já foram
adversários, caso de Lula, e ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Quanto
às críticas que seu governo sofreu, responde que “ressentimento destrói a gente
mesmo”. E apresenta números: quando deixou o cargo, a taxa de desemprego era de
2,9%, média de 4,3% nos cinco anos. Ele encerrou a corrida nuclear Brasil-Argentina,
criou um programa de combate à Aids respeitado no mundo inteiro e, de quebra,
ainda implantou o seguro-desemprego. Em sua trajetória, só faltava ver uma
santificação. “Sempre vi os santos nos altares, terracota, madeira. Agora, vi
uma Santa viva, Irmã Dulce, feita de amor e bondade. Deus foi sempre muito
generoso comigo”. Confira os principais trechos.
O presidente Jair Bolsonaro pediu para o ministro Sérgio
Moro não nomear a Ilana Szabó para o Conselho de Segurança Pública porque disse
que ela era comunista. O senhor vê algum paralelo nesse “tirar comunistas do
governo” com o que aconteceu em 1964?
Eu não quero fazer nenhum comentário sobre os meus
sucessores. Cada um, presidente ou não, age de acordo com as circunstâncias que
ele vive no momento. Eu vivia as minhas circunstâncias, não sei quais são as
que vive o presidente Bolsonaro.
A gente vê o governo hoje muito desarticulado, até com os
militares há ruídos. Como o senhor vê a participação deles no governo de hoje?
A minha experiência com militares sempre foi muito boa,
encontrei sempre da parte deles o melhor procedimento. Tanto que a minha
diretriz enquanto presidente foi: primeiro, a transição se fará com os
militares e não contra os militares. Segundo, se eu sou comandante-chefe das
Forças Armadas, o dever de todo comandante é zelar pelos seus subordinados, e
eles são absolutamente disciplinados, leais e competentes. A participação deles
no governo é sempre benéfica. De acordo com minha experiência, os militares são
sempre uma voz sensata, competente e, ao mesmo tempo, ponderada. Falo do tempo
em que vivi e convivi. Evidentemente, os excessos foram cometidos, e foram
muitos, mas não se pode penalizar a instituição (militar) por esses excessos.
As pessoas que foram responsáveis é que devem ser punidas, e não a instituição.
Como vê a relação do
governo com o parlamento hoje?
A política é a arte do possível. Eu acho que tem que se
lidar com realidades, e a realidade atual é que o presidente não tem maioria
consolidada dentro do Congresso, nem nós temos hoje partidos, nem lideranças
políticas, e vivemos uma crise muito grande.
O que o governo tem que fazer para sair disso?
O presidente Bolsonaro está no meio de um furacão. A crise
internacional de recessão catalisou a crise brasileira. Estamos em um momento
da história mundial em que presenciamos não um mundo de transformação, mas um
mundo transformado. Temos que lidar com o choque das civilizações, o fim da
civilização industrial, o começo da civilização e das comunicações digitais.
Temos que lidar com a pós-verdade, com uma sociedade líquida, como bem fixou
Zygmunt Bauman. Temos que compreender que estamos, no Brasil, muito atrasados
para enfrentar essa crise que o mundo está vivendo. Então, o presidente
Bolsonaro está tendo que enfrentar esses problemas, todos mundiais. Era o
momento de nós termos um presidente que tivesse uma visão de todas essas
modificações que vive o mundo, para poder enfrentá-las.
Poderia dar um exemplo?
Estamos com a morte da verdade, com um novo interlocutor da
sociedade democrática, que se chama opinião pública, que hoje se manifesta por
meio da rede social, principalmente. E as crises que o Brasil vive? O Brasil
vive uma crise sem partidos, porque quando temos 60 partidos, entramos na lei
do Montesquieu, que diz que quando temos muitos partidos, não se tem nenhum.
Nós, também, estamos com uma classe política vivendo a crise da democracia
representativa, isso é no mundo inteiro, os políticos estão demonizados. E a
busca do povo é partir para uma democracia direta, sem representantes.
Mas isso não é um risco?
É um risco, porque os ingleses levaram 700 anos para
construir esse sistema atual em que vivemos, da democracia representativa, dos
Três Poderes, cada um controlando o outro. O Brasil acrescentou mais um poder,
destruindo e desestabilizando todos os três: o Ministério Público.
Quando diz que esse é o momento em que precisávamos de um
presidente que entendesse toda essa transformação, o presidente Bolsonaro não
consegue identificar esses problemas?
Ele (Bolsonaro) está colocando todas as cartas na ameaça do
caos. E isso, na realidade, aumenta os problemas que nós vivemos, porque
desapareceram as utopias e nós não podemos matar a esperança. O que se vê é que
todo dia se dá uma solução, uma visão escatológica do fim do mundo, em face da
reforma da Previdência, sem se oferecer outras perspectivas de esperança.
Quando se mata as utopias, é difícil que se sustentem as expectativas do país
somente com uma reforma. Na realidade, a reforma é uma coisa que se fala
permanentemente, porque vivemos em um mundo em transformação.
A reforma da Previdência não é necessária?
A reforma da Previdência é extremamente necessária, mas está
também ao lado da reforma administrativa, da política, da tributária, da
fiscal. Todas as cartas estão jogadas em um único objetivo, sem esquecer de que
o presidente não tem maioria dentro do Congresso. Quando se fala em
presidencialismo de coalizão, é melhor dizer presidencialismo sem partido.
Vamos citar uma frase do Clinton, que é muito apropriada: “Os partidos no mundo
atual não são importantes para a eleição, mas sem eles é impossível governar”.
Ou seja, eles precisam estar estruturados, e se governa por meio de partidos,
senão é uma situação anárquica e niilista que vamos viver.
Já estamos vivendo essa situação?
As perspectivas que temos e que estão sendo construídas nos
levam a esperar, lá na frente, um impasse grande, que pode ser a pequeno, a
médio ou a longo prazo, mas a verdade é que ele vai ocorrer. Por quê? Porque a
Constituição de 1988 criou todas as condições para levarmos o Brasil a essa
situação que estamos vivendo. Ela (a Constituição) é híbrida, é parlamentarista
e presidencialista, deu ao Parlamento poderes executivos e deu ao Executivo
poderes parlamentares, com as medidas provisórias que fez. E o Parlamento
precisa aprovar todas as medidas que o Executivo tem que tomar. Na terça-feira,
vimos, por exemplo, o ministro da Economia (Paulo Guedes) pedir ao Parlamento,
desesperadamente, que aprovem um crédito de R$ 248 bilhões. Mas a nossa
Constituição de 88 é excelente em dois pontos: a parte de direitos individuais,
e a dos direitos sociais. Fora disso, é extremamente detalhista, de tal modo
que nós já temos 105 emendas. Em tramitação, quando eu deixei a Presidência,
tínhamos, no Congresso, 1.500 emendas constitucionais. Hoje em dia, é mais
fácil se modificar a Constituição do que fazer uma lei, e a única Constituição
que sobrevive no mundo há 200 anos é a americana, que foi feita por 55 pessoas
e que é tão avarenta de emendas. E graças a Deus, à lucidez dos americanos, a
primeira coisa que eles fizeram foi a primeira emenda, que é a da liberdade.
O que recomendaria para evitar o caos?
Pela primeira vez, estamos em um momento que é imprevisível,
é preciso buscarmos e tirarmos uma medida mágica para resolver isso. Porque as
coisas acontecem não porque vão acontecer, mas porque são levadas por um
conjunto de fatores, que levam tempo para acontecer e chegam a essa situação,
que nós vivemos atualmente, com a fratura no Poder Judiciário, no Poder
Legislativo e no Poder Executivo.
Ou seja, não tem nada de pé?
Todas essas estruturas estão em um momento de abalo. Como os
cristais, estão trincadas. Outra coisa é a crise da democracia que está se
vivendo no mundo inteiro. Crise da democracia liberal.
E como é que o senhor vê essa crise?
Falou-se no fim dos anos 1980, no fim da história. Francis
Fukuyama (filósofo) foi quem criou essa tese. Agora, estamos chegando à
conclusão de que a história não chegou ao fim. Pensávamos que a democracia
liberal ia ser a continuidade do mundo. Mas estamos vendo que não, ela precisa
ser reformada, porque está levando a uma concentração de riqueza
extraordinária. E não é mais o país rico, cada vez mais rico e os pobres mais
pobres, não. É só os ricos cada vez mais ricos. A própria dinâmica do mundo
levou a isso.
Por meio de quê?
Da automação, das novas tecnologias, a biotecnologia. E isso
tudo nos leva à matança dos empregos. E nós então, os que têm analisado isso no
mundo inteiro, eu procuro estar sempre atualizado, estamos vendo um mundo em
que se vê a inteligência artificial substituindo o próprio homem. E quando
analisamos isso, para pegar um exemplozinho pequeno, olhamos e a previdência é
colocada dentro desse contexto. Um robô não paga Previdência e não se aposenta.
Não é? E se nós verificarmos hoje, a crise da previdência não tem também só
esses aspectos de que no futuro não vai pagar aposentados. Ela tem um aspecto
do desemprego que existe. Porque temos hoje, no Brasil, 13 milhões de pessoas
desempregadas. Temos mais 13 milhões que nunca ocuparam emprego e estão
desocupadas. E temos mais 20 milhões que são da informalidade. Então, com uma
quantidade dessas, é impossível administrar.
Qual seria o foco para enfrentar o problema?
É o do crescimento econômico. Sem crescimento, não
resolvemos, qualquer reforma que seja feita não subsiste. No Plano Cruzado,
tivemos superavit na previdência naquele tempo porque a nossa taxa de
desemprego era de 2.9% de dezembro, de uma média dos cinco anos de 4.3%. Se
tivéssemos hoje 30 milhões de pessoas contribuindo para a Previdência, que hoje
estão fora (do mercado formal), não teríamos esse problema que temos. Então, é
preciso que se analise dentro desse contexto. O problema maior hoje é o
crescimento econômico, é o desemprego. Porque por aí é que está a fonte de
todas essas coisas, além da destruição do sistema político brasileiro que,
hoje, ninguém sabe o que é, e o caos que nós vivemos.
Como avalia esse sistema político?
Nem avalio. Não dá
para avaliar porque não existe. Ele foi destroçado.
Destroçado por reformas políticas?
Pela Constituição de 1988. As reformas corrigiram os erros
que foram feitos na Constituição de 88.
Qual é o maior erro da Constituição de 1988?
Nenhuma Constituição é elaborada sem um projeto antecipado.
Na nossa resolveu se fazer um projeto na bacia das almas. Todo mundo ia lá, e
queria tomar um pedaço corporativista. Então, criou-se uma Constituição
corporativista.
Então, a culpa é das corporações hoje? Ou elas são parte do
problema maior?
É, ela é corporativista, ao mesmo tempo ela, não pegou,
destruiu o Congresso com uma grande formação dos partidos. híbrida, criou essas
medidas provisórias. Até hoje, estamos tentando corrigir a Constituição de
1988. E ainda temos mais de 50 dispositivos na Constituição que demandam serem
regulamentados.
O senhor aceitaria fazer uma nova Constituinte?
Os ingleses não têm Constituição, mas têm o seu Bill of
Rights. Há poucos dias, estava lendo um livro sobre a formação da Constituição
americana. Até ela foi feita num projeto básico porque, na realidade, foi baseada
nas notas que o Madison tinha levado para serem discutidas. Tem uma história, o
Ulysses (Guimarães, ex-presidente da Câmara) chegou e disse: “Olha, presidente,
eu quero lhe comunicar que passaram 10 milhões de pessoas pelo Congresso para
fazermos a Constituição, é uma grande coisa que fizemos”. E, então, eu disse a
ele: “Ô Ulysses, a Constituição que mais dura no mundo, que tem mais de 200
anos, é a americana. Foi feita por 55 pessoas, com um pacto de ninguém dizer ao
outro qualquer coisa, nem em casa, de que ele estava tratando. E ela tem mais
de 200 anos. E foi a base de se criar uma nação que hoje é o país líder do
mundo”.
O senhor disse que a Constituição tornaria o país
ingovernável...
Sim, a primeira coisa que ela fez: tirou 20% do orçamento da
União. Agora, temos esses problemas todos que chegaram até hoje. Então, isso
leva tempo, me senti no dever de advertir que isso ia acontecer. Quando nós
fizemos essa Constituição, destruímos os estados também. Porque, hoje, nós não
temos mais Federação, todos os estados estão quebrados.
Mas a culpa é só da Constituição? E os planos econômicos,
ajudaram ou atrapalharam?
Muitos ajudaram o país. O Plano Cruzado foi a iniciativa de
maior coragem que já teve. Eu ouvi do Brizola que eu tinha sido o homem de maior
coragem porque havia rompido com a ortodoxia econômica e procurado um outro
caminho. O Plano Cruzado deu estabilidade, nos deu a menor taxa de desemprego
da história do Brasil até hoje. O Plano Cruzado nos permitiu fazer a
Constituição porque sem ele nós não tínhamos feito a Constituição. Ele permitiu
que eu não fosse deposto, proporcionou estabilidade para o país e ele nos
permitiu chegar ao Plano Real. Porque todos os outros planos até chegarmos ao
Plano Real foram resultados da coragem inicial de nós optarmos por uma forma
fora da recessão, que era o modelo do FMI. Se tivesse feito a recessão, eu
teria caído. Teria sido deposto. Não tinha condições de permanecer, porque iria
levar ao desemprego, à paralisação do país, nós atravessamos naquele período a
tudo isso.
Com toda a turbulência que teve, não é?
Com toda a turbulência que teve. Com tudo isso, todos os
problemas que vivemos, a morte do Tancredo, mais a transição democrática,
saindo do regime militar para a plena democracia, nós conseguimos atravessar
esse período todo. Fala-se hoje que foi um período de inflação muito alta, eu
digo “não foi”. Não se pode comparar inflação com correção monetária com
inflação sem correção monetária. Se calcula o PIB dos países em dólar. Se nós
calcularmos a inflação do meu governo em dólar, eu mandei a consultoria Tendências
fazer o cálculo. A inflação do meu período foi alta, foi 17%, de todo o
período. Então, isso aí (de inflação
alta) é uma leitura porque não tive apoio político, fiquei sem partido
político, fiquei jogado às feras. E, até hoje, eu sou vítima da pós-verdade,
quer dizer, aquela mentira que se torna verdade. Por exemplo, para citar uma,
todo mundo diz que eu lutei para ter cinco anos de governo e que dei rádios.
Fiz um esforço tremendo para fazer isso, quando, na realidade, eu tinha seis
anos e abdiquei de um ano. Passei, como todo mundo acredita, é o que hoje se
chama pós-verdade. Todo mundo acredita que eu fiz tudo para não ter um ano. Os
outros governos, depois de mim, distribuíram 10 vezes mais rádio do eu. Mas eu
não precisava disso, eu tinha uma grande maioria dentro do Congresso.
Vivemos uma situação de desemprego, o país parando, os
estudantes estão indo às ruas. Bolsonaro pode acabar deposto?
O presidente, hoje, tem que se legitimar das 6h até as 6h do
dia seguinte. Porque há uma força permanente dos problemas que nós temos, tão
complexos como estão os do Brasil hoje, que levam os presidentes a serem
responsabilizados por tudo e que termina no que nós temos visto. A Constituição
de 1988, além de ter dado essa estabilidade, que é muito boa, dos problemas
sociais, nos deu três impeachments, dois que chegaram ao fim, o do Collor e da
Dilma, e o terceiro, do Temer, que não chegou ao fim, mas que o pedido foi
feito. Então, acho que uma solução, a primeira e mais simples, para evitar esse
problema do presidente ter que viver essa pressão permanente, seria adotarmos o
parlamentarismo. É um governo de primeiro-ministro, quando temos uma crise de
gravidade paroxística, cai o primeiro-ministro, não leva a uma crise
institucional da República e do presidente. Eu acho que o Bolsonaro está sendo
vítima de uma leitura errada que ele fez. Ele achou que, quando ganhasse a
eleição, superando essa visão internacional de que o Brasil era um país de
esquerdista, porque estava alinhado com a Venezuela, Cuba e outros países
socialistas, iria receber dos americanos e da economia internacional um apoio
muito grande, que imediatamente atrairia para o Brasil investimentos e nós
iríamos crescer. Na realidade, de certo modo, acho que não tem ninguém mais
decepcionado com isso do que ele, porque foi logo visitar o Trump mostrando
essa visão. E, na realidade,o Trump não deu nada. A visão do Trump é
nacionalista, América acima de tudo.
Foi ingenuidade do presidente achar que isso aconteceria?
Eu acho que foi. Quando, na realidade, hoje, o que nós vemos
é que o primeiro importador do Brasil é a China. E que a China está marchando
para ser, dentro de 10 anos, o primeiro país do mundo. Inclusive, o general
Mourão com uma prova de lucidez, está indo para lá. Ele sempre foi tido no Exército
como um homem de grande capacidade, sempre teve grandes missões, sobretudo, na
área internacional.
Como vê esse contraponto entre o vice e o presidente?
No Brasil, há sempre uma tendência de querer colocar o
vice-presidente como um adversário do presidente. Na realidade, eu fui vice e
sei o que é isso. Tanto que a minha primeira providência foi chamar o Tancredo
e dizer que eu queria ser um vice-presidente fraco de um presidente forte.
Citei a ele o caso do Mondale, que, quando foi vice do Carter, estabeleceu uma
regra de convivência, e quando mostrei a ele o documento, Tancredo, com aquela
amizade pessoal que nós tínhamos, ele disse: “Não me mostra documento nenhum,
eu sei que nós vamos nos entender muito bem”.
Quando o senhor fala nesse mundo transformado, o senhor acha
que a oposição aqui tem agido corretamente?
Não há oposição. Nós estamos em um momento no Brasil em que
não temos nada. Até a oposição não existe.
Sem partidos, sem oposição... Vamos ficar no deus-dará?
Por isso é que eu disse que o nosso presidente está vivendo
no olho do furacão.
Quando o senhor vê como alternativa o parlamentarismo, isso
demora. O país aguenta?
Sim, ninguém vai acabar. O país vai viver suas vicissitudes,
suas dificuldades e vai encontrar seu caminho. Porque é um grande país, um
extraordinário país. Reconheço que estamos muito atrasados em termos de ciência
e tecnologia. Está se renegando a um segundo plano a ciência e a tecnologia. No
meu tempo, dei uma importância muito grande a isso, visitei o acelerador de partículas
do Fermilab, no qual se estuda as partículas de altas energias. Montamos um
pequeno acelerador de partículas, fabricamos a fibra ótica. Foi no meu tempo
que enriquecemos o urânio, coisa que a Coreia do Norte e o Irã estão brigando
com os Estados Unidos e criando uma
crise mundial. Fizemos tranquilamente isso no Brasil. Em toda a história
da Capes, nunca tinha tido o número de bolsas que demos para a formação de
cientistas brasileiros no exterior. Se não caminharmos nessa direção, vamos
ficar sempre muito atrasados em relação ao mundo. Hoje, a gente pode ver que o
erro que nós tivemos em relação ao Brasil foi um problema de educação. Nós
demos prioridade à economia, primeiro à criação do bolo. E, depois, dividir o
bolo. Hoje sabemos que, para criar esse bolo, temos que ter um desenvolvimento
tecnológico e educacional. Os países que progrediram na Ásia marcharam para a
educação. Investiram na educação. A educação criou a prosperidade econômica e,
aí, então, se dividiu o bolo. Nós entramos no caminho inverso: Queremos
primeiro criar o bolo. Resultado: é a crise nacional que temos, que é a
educacional. Cada vez mais atrasados, sujeitos a uma colonização cultural e
isso vai ter consequências grandes.
E o governo ainda
pensa em bloquear os recursos...
Isso são acidentes que estão ocorrendo resultados desse
desequilíbrio orçamentário e a estagnação que o país vive.
O senhor tem dois filhos políticos. Roseana foi governadora,
Zequinha Sarney foi ministro, hoje é secretário. Como avalia o comportamento dos
filhos de Bolsonaro?
É uma questão que não desejo abordar. Já que não critico
meus presidentes e meus sucessores nem pelas atitudes nem pelo seu governo, não
devo tratar desse assunto que envolve família.
E as declarações de Olavo de Carvalho, que às vezes usa
palavras de calão, se mete no governo, o presidente vai e apoia ele, como o
senhor vê isso?
Eu confesso que antes do governo Bolsonaro eu não conhecia o
Olavo de Carvalho. Nem conheço as suas ideias. Nunca li os livros dele.
Nem está fazendo falta?
Eu tenho lido resumos das suas ideias. Ele deve ser um homem
inteligente pela influência que exerce no governo.
A concentração dessas pautas de costumes é tão importante a
ponto de renegar assuntos como educação ?
Não, eu acho que nós fixamos em um único ponto como se a
salvação nacional fosse essa. A reforma da Previdência. Quando, na realidade,
nós temos um universo de problemas aí, o país é muito complexo para ficar só na
Previdência. A Previdência é uma consequência, não é uma causa. É um efeito.
Como vê esse decreto que ampliou o porte de arma no
país?
Eu apoiei o desarmamento. Enquanto presidente do Senado,
criei a comissão que resultou no Estatuto do Desarmamento.
Mas já foi armado para uma reunião...
(silêncio) E me arrependo. Foi numa reunião do PDS, na qual
estava ameaçado de ser destituído à tapa. E doía muito. Física e moralmente.
Mas não deu um tiro, não é?
Não. Felizmente todos, até os meus inimigos, tiveram bom
senso. Não me deram tapa nem eu não dei tiro. Rezas da minha mãe.
Como o senhor gostaria de ser julgado?
Daqui a 100 anos com o modo que vivemos hoje, ninguém julga ninguém. Cristo
já dizia, nós não devemos julgar para não sermos julgados. Eu cumpri com o meu
dever e dei uma contribuição importante para a história do Brasil. Só eu sei o
que foi a transição democrática. Se não fosse o meu temperamento e a minha
experiência de muitos anos. Sou o parlamentar mais antigo da história da
República, eu passei 52 anos no parlamento. Quarenta como senador e 12 como
deputado. Além de ter sido governador e presidente da República, então, mais do
que tudo isso, tem o fato de ter uma vocação intelectual. Se eu tivesse que
escolher ao nascer, eu escolheria e ficaria só nessa vocação. A política, já
dizia o Napoleão, é o destino. A literatura é a vocação. Eu já escrevi 120
títulos, com 168 edições traduzidas em 12 línguas. Isso me ajudou muito dentro
da política. É difícil ser político e, ao mesmo tempo, escritor e intelectual,
porque a política, como eu disse, lida com a realidade e a literatura com a
ficção.
O senhor falaria sobre o Lula? A prisão…
Eu lamento profundamente o que acontece com o presidente
Lula e o que aconteceu recentemente com o presidente Temer, ambos, eu acho,
estão sendo vítimas de injustiças.
O superpoder do MP provocou isto?
Ocorreu aquilo que o ministro falou, nós politizarmos a
Justiça e judicializamos a política.
Como o senhor vê essas dificuldades que o MDB está passando?
Nós tivemos o Geddel com apartamento de dinheiro... Todas
essas coisas estão dentro desse contexto que analisamos.
O governador Ibaneis
sonha ser o presidente do MDB. Ele consegue?
O Ibaneis é um homem de grandes virtudes. E acho que ao
mesmo tempo é uma prova de patriotismo dele, de espírito público, querer
dirigir o MDB nesse momento. Na realidade, todos estão fugindo de querer entrar
na política.
Não será difícil para ele?
Na política tudo é difícil. Nada é fácil. Até ser político.
O MDB tem futuro na atual conjuntura?
Cada partido nasce e vive dentro de determinadas
circunstâncias e com uma determinada missão. Eu vivi muito tempo isso na UDN,
quando nós enfrentamos a ditadura Vargas e saímos para ser o grande partido que
fomos. Vi isso também na trajetória do MDB quando ele começou. E ambos os
partidos esgotaram a sua missão, porque nasceram sob determinado signo. O
partido tem que se reinventar.
Quem está na crista da onda é o DEM.
Todos os partidos cumpriram sua missão, é um outro tempo.
Um tempo em que a opinião pública, como disse o senhor, domina...
Nós estamos em um tempo, como diz o Bauman, da sociedade
líquida (risos). As coisas se transformam muito rapidamente. Por isso, que se
liquidificam.
O senhor sempre muito crítico da estrutura eleitoral...
Discuto isso desde 1972, apresentei projeto no Congresso
sobre o voto distrital, o voto distrital misto, o parlamentarismo. Mas tudo
isso é muito difícil, porque quem está no governo, e foi ao poder por
determinadas circunstâncias, jamais abdica. Só conheço uma pessoa que tenha
abdicado de poder no governo: eu,quando acabei com a conta de movimento do
Banco do Brasil, que era o poder de todos os presidentes, até então. Era uma conta sem-fim que se sacava, jogava, sem
precisar depositar. Também, como já disse, abdiquei de um ano de mandato. Tomei
essa decisão baseado no Dutra, que foi eleito com a Constituição de 1937, seis
anos de mandato. Quando teve a Constituinte de 45, ele combinou com a
Constituinte e abdicou de um ano. Eu julguei que ia fazer a mesma coisa, só que
o Dutra eles compreenderam e a Constituinte aceitou. Em 1988, não, porque todo
mundo queria ser candidato o mais rápido o possível. Tinham medo da Constituinte,
não vou citar nomes, todos já faleceram,
mas foi isso, tanto que a Constituinte foi feita com os olhos no retrovisor,
eles colocaram os olhos no passado, e queriam imediatamente ocupar o governo.
O senhor guarda mágoas desse período?
Eu acho que a mágoa é um sentimento que destrói a gente. Eu
que cheguei à Presidência, não posso ter mágoa, o criador foi muito generoso
comigo. Nasci numa casa de 50m² e de chão batido.
A propósito, e o Maranhão, como está hoje?
Vai bem, obrigado.
O que dizer de FHC?
É um homem muito inteligente. Todo presidente faz o que pode
fazer e vive suas circunstâncias. E sempre quer fazer o melhor. Não acredito
que alguém que vire presidente queira fazer o pior. Acontece é que a cadeira da
Presidência sempre é maior que o presidente, o presidente que tem que se
adaptar à cadeira, e não a cadeira ao presidente. Isso vale pra todos, eu acho
que o Fernando Henrique fez o que ele podia fazer no momento dele e eu o
respeito muito. Acho que ele é um homem muito capaz e que ele procurou fazer
sempre o melhor.
O presidente Lula, na última entrevista que deu, disse que
ele deveria ter sido mais incisivo com a presidente Dilma na hora de cobrar
mudanças na política econômica, em 2015,
2016. Foi um erro?
O presidente Lula ele teve uma importância muito grande na
história do Brasil, porque nós comemoramos os 100 anos de República, começamos
a República com os militares, depois com os barões do café, depois os
bacharéis. Todo mundo teve oportunidade, o mundo inteiro lutou por esses
ideais, terminamos com um operário no poder, o que é uma coisa extraordinária.
Não há nesse país quem não tenha tido oportunidade de chegar à Presidência e o
Lula chegou sendo o homem que alargou os direitos sociais. O país ficou mais
justo com o Lula.
O maior legado dele é esse?
É esse mesmo, é uma coisa extraordinária para o Brasil. Nós
começamos todo o século XIX lutando entre duas palavras, revolta e revolução, a
revolta como um fenômeno individual e a revolução como um fenômeno coletivo.
Chegamos ao operário, fomos do capital
ao trabalho sem derramamento de sangue, sem lutas fratricidas. O que no mundo
inteiro foi feito com muito derramamento de sangue, aqui nós fizemos dentro de
um sistema de entendimento e de diálogo que é muito do brasileiro, do que nos
caracteriza, essa capacidade de dialogar e
compreender o outro.
Que conselho o senhor daria aos políticos?
Procurem ter uma boa formação. É preciso ter cultura e isso
abrange todas as áreas de conhecimento. E como toda cultura tem que ter dente
de serra. Uns mais altos, outros mais baixinhos. De culinária, não sei nada.
Sou adepto do provérbio chinês: comer pouco, dormir muito e não discutir com
mulher.
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