Publicado originalmente no site GABEIRA, em 01.07.2019
Um governo que namora com a morte
Por Fernando Gabeira
Acabara de escrever um artigo sobre esses estranhos seis
meses em que o Brasil é conduzido pela direita. Pensei em mudar de assunto, mas
surgiu a notícia da prisão de um sargento da Aeronáutica em Sevilha.
Trinta e nove quilos de cocaína num avião de apoio à
comitiva presidencial. Segundo os jornais, o sargento Manoel Silva Rodrigues
fez várias viagens oficiais, inclusive com outros presidentes. Aparentemente,
era uma prática antiga. Mas foi descoberta na viagem de Bolsonaro. Isso
significa um arranhão em sua imagem internacional. É inevitável.
Internamente, a repercussão num país polarizado
transforma-se logo numa troca de acusações que dificulta uma abordagem mais
séria do problema. Sem dúvida, por partir também de um ministro da Educação, a
frase de Abraham Weintraub foi a mais infeliz. Ele sugere que os aviões de
Dilma e Lula eram mais pesados.
Além de não se basear em nenhuma evidência (portanto, uma
acusação falsa), Weintraub passa uma terrível impressão ao mundo exterior. Um
ministro sugere que os aviões do passado levavam mais cocaína, e o Brasil
conseguiu reduzir a carga para 39 quilos. Uma ética medida em peso.
Tudo isso acontece no momento em que Bolsonaro, à frente de
uma política ambiental desastrosa, afirma que o Brasil pode dar lições à
Alemanha.
Nós sabemos que Bolsonaro ignora os esforços que a Alemanha
faz nesse campo, seu avanço tecnológico, e jamais visitou as florestas do país.
Mas e os outros, o que pensarão dessa abordagem agressiva e tosca? Num tema que
obriga à cooperação, internacional, Bolsonaro quer competir.
Na conclusão do artigo em que analisava alguns pontos dos
seis meses de governo, afirmei que Bolsonaro está inspirando uma oposição que
envolve mais que a democracia. Uma frente pela vida.
As pesquisas já indicam como o capital político de Bolsonaro
escorre pelos dedos. Ele está longe de perceber como a extrema direita é
minoritária.
No momento, sua agenda espontânea já indica uma linha
condutora. É um flerte com a morte: das armas ao agrotóxicos, estradas sem
radares, leis mais frouxas no trânsito.
Na Espanha da Guerra Civil, os adeptos de Franco expressavam
essa tendência de uma forma mais nítida: “Viva la muerte.”
É uma luta inglória, um programa sob o signo de Tânatos.
Suas manifestações não se limitam à destruição das espécies. Mas também da
diversidade humana.
Na Rio-92 houve dois focos: a defesa da diversidade das
espécies e, num outro palco, da diversidade cultural. São interligadas.
Para completar a semana, a notícia de que, recuando de
nossas posições internacionais, o Brasil deixa de reconhecer as pessoas que se
sentem mulheres, apesar do órgão sexual masculino, ou homens, apesar do órgão
feminino. É uma visão de mundo que despreza a felicidade humana em nome de suas
rígidas regras de vida.
Nosso consolo é que Tânatos, o deus da morte, inspira apenas
uma política de governo. A sociedade é cheia de vida, diversa; dentro das
limitações, centenas de experiências ambientais se desenvolvem no Brasil.
De fato, temos uma grande floresta em pé, por razões
históricas e econômicas. Parte da destruição de nossas matas conseguimos conter
com a legislação. Isso talvez seja uma conquista.
Bolsonaro deveria se lembrar de que foi contra muitas dessas
leis. Participei delas, sinto desapontá-lo: em vários temas, nos inspiramos na
Alemanha e outros países europeus aos quais ele quer dar lições.
Finalmente, o caso da cocaína merece uma investigação
profunda e transparente. É uma questão nacional. O que o general Heleno disse
também é um espanto: foi falta de sorte a droga ter sido descoberta numa viagem
para a reunião do G-20. Segundo o jornal “El País”, a mala de cocaína sequer
estava escondida junto à roupa. Droga nua. Não era falta de sorte, mas de
controle.
Em qualquer circunstância que uma carga dessas fosse
descoberta num avião presidencial, seria um grande azar para o Brasil. Em
matéria de sorte, a gente vai levando, mas a fase, francamente, é de fechar o
corpo, enquanto ainda temos nossos pais e mães de santo.
Os músicos de metrô já perdemos por inspiração de um dos
filhos de Bolsonaro. Gostava de ouvi-los na Praça Nossa Senhora da Paz tocando
“There Will Never Be Another You”.
Artigo publicado no jornal O Globo em 01/07/2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário