A vendedora ambulante Josefa Severina de Souza mora em uma casa de três
quartos com os filhos e o marido no bairro Jardim do Colégio,
em Embu das Artes, na Grande São Paulo
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, 4 de novembro de 2019
Viver com 413 reais ao mês, a realidade de metade do Brasil
Desemprego alto e aumento da informalidade faz com que 104
milhões de brasileiros tenham de viver com o equivalente a meio salário mínimo.
Número de ambulantes na rua saltou mais de 500% entre 2015 e 2018
Por Heloísa Mendonça
Há muitos anos, Josefa Severina de Souza, de 58, não sabe
mais qual é a sensação de sair de férias do trabalho. Não consegue achar na
memória nem qual foi a última vez que conseguiu tirar alguns míseros dias de
descanso. Mãe de oito filhos, dos quais quatro ainda moram com ela, a rotina
dos últimos 25 anos de Josefa tem sido de trabalho diário nas ruas de São Paulo
como vendedora ambulante de segunda a sábado. Atualmente trabalha no bairro de
Pinheiros, onde durante todo o dia transitam centenas de pessoas e potenciais
clientes. No domingo, se dedica às tarefas domésticas. O marido, de 62 anos,
desempregado há mais de quatro anos, faz alguns bicos como pedreiro, mas é a
renda dela a principal fonte de sustento de seis pessoas. Somando os cerca de
1.450 reais que ganha com as vendas mais o salário fixo de 1.000 reais que um
dos filhos recebe trabalhando em um supermercado, cada membro da família
sobrevive atualmente com uma renda per capita mensal de 408 reais, menos do que
meio salário mínimo. "Se a gente não trabalha, não sobrevive, né?",
explica a vendedora.
A família de Josefa faz parte dos 50% mais pobres da
população, quase 104 milhões de brasileiros, que em 2018 vivia, em média, com
apenas 413 reais per capita, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Contínua (Pnad Contínua) publicada em outubro. No mesmo ano, 5% da
população, ou 10,4 milhões de pessoas no Brasil, sobreviviam com 51 reais
mensais. O levantamento revelou ainda que a desigualdade se agravou no país. A
renda domiciliar per capita desses 5% mais pobres caiu 3,8% de 2017 para 2018,
enquanto a renda da fatia mais rica (1% da população) cresceu 8,2%.
Na avaliação de Maria Lúcia Vieira, gerente da Pnad
Contínua, os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres, porque a renda
total das famílias vem majoritariamente do trabalho. "Com a recessão, o
mercado de trabalho também entrou em crise, e o desemprego aumentou [hoje
atinge 12,6 milhões de brasileiros]. O que afeta muito mais os mais pobres, já
que o estrato mais rico tem geralmente outras fontes de renda além do emprego,
como, por exemplo, dinheiro proveniente de aluguéis, pensões", explica.
Ainda que nos últimos dois anos a população ocupada tenha voltado a crescer, os
empregos criados foram, principalmente, os informais. "Os postos que estão
surgindo são pouco remunerados e de baixa qualificação", diz Vieira.
Informalidade bate recorde
Fabiano Manuel de Souza, de 26 anos, começou a trabalhar de
ambulante para sair da fila do desemprego.
Entre julho e setembro deste ano, a taxa de informalidade da
população ocupada bateu recorde da série iniciada em 2012, chegando a 41,4% dos
trabalhadores. Ou seja, a cada 10 trabalhadores, seis têm ocupação precarizada.
Segundo a gerente, o número de brasileiros que trabalham como ambulantes
informais vendendo alimentos foi um dos que mais aumentou nos últimos tempos.
Entre o segundo trimestre de 2015 e o segundo trimestre de 2019, o número
desses ambulantes cresceu 510% subindo de 78,4 mil para 478,3 mil pessoas.
Um dos filhos de Josefa, que já saiu de casa, faz parte
desse grupo de novos ambulantes. Após ser demitido de um trabalho com carteira
assinada, resolveu seguir os passos da mãe e apostar nas vendas na rua. Fabiano
Manuel de Souza, de 26 anos, ajuda a mãe a transportar no ônibus a mercadoria e
depois segue para outro ponto também em Pinheiros, na zona oeste da cidade.
"Não é um trabalho fácil, e as vendas dependem muito de cada dia. Faça
chuva ou faça sol a gente vai pra rua. Agora no calor é mais fácil ganhar com
água, mas está tudo meio parado. Não sei se as coisas vão melhorar, acho que
esse Governo novo é pior. Eu preferia o Lula, fui até em manifestação contra o
Bolsonaro no Largo da Batata para protestar, mas também para aproveitar as
vendas", conta.
Apesar dos tempos de economia fraca e pouco dinheiro no
bolso, Josefa está mais tranquila nos últimos meses. Neste ano, conseguiu,
finalmente, uma autorização na prefeitura da capital paulista para legalizar a
sua atividade e o carrinho que utiliza na calçada para expor os produtos que
vende: água, refrigerantes, salgadinhos e balas. O local escolhido por ela é
estratégico, fica em frente a um ponto de ônibus, a poucos metros do metrô
Faria Lima. "Agora estou na paz, despreocupada. Antes era uma corrida de
gato e rato entre eu e os fiscais. Cheguei a perder 13 vezes a minha mercadoria
aqui, a polícia levou tudo. Eles corriam atrás de mim como se eu fosse um
ladrão, vivia tensa. Eu estava apenas trabalhando. Eu nem tinha o carrinho,
vivia com sacolas para sair correndo", conta ao lado da filha Kelly, de 20
anos, que está cursando faculdade de educação física, mas ajuda a mãe nas horas
vagas.
Josefa de Souza trabalha como ambulante há 25 anos.
Para regularizar sua atividade, Josefa entrou no programa Tô
Legal! da Prefeitura de São Paulo e paga um imposto trimestral de quase 700
reais. Somou-se aos novos gastos um estacionamento para seu carrinho de 150
reais mensais e mais 10 reais diários para que outro vendedor da região a ajude
a levá-lo à garagem. Para que o dia seja lucrativo, ela precisa trabalhar das
10/11h da manhã até 21h/22h da noite, de segunda a sábado.
O dia de Josefa começa, no entanto, muito mais cedo, e
termina muito mais tarde. A vendedora acorda 6h da manhã para preparar o café
da manhã dos dois filhos, de 18 e 16 anos, que vão para a escola e para
organizar a marmita do filho que trabalha. Todos moram em uma casa simples de
três quartos. Como vive no bairro Jardim
do Colégio, em Embu das Artes, na Grande São Paulo, ela leva quase duas horas
para chegar ao local de trabalho e precisa pegar dois ônibus para percorrer um
trajeto de cerca de 25 km. Na volta, acaba chegando em casa depois da
meia-noite. É quando Josefa começa a preparar o jantar e o almoço do dia
seguinte dos filhos e marido. "Acabo dormindo 3h da manhã. Mas o jantar é
a única refeição forte do dia que eu faço. Não tenho onde aquecer a comida lá
no meu carrinho e se compro na rua gasto 15 reais. Não posso, preciso economizar
para os remédios. Por isso, nem almoço", explica.
Há três anos, a vendedora trata algumas feridas na perna
ocasionadas pela má circulação sanguínea, chamadas úlceras varicosas. O tipo de
lesão acomete, muitas vezes, pessoas que passam muito tempo em pé.
"Preciso passar uma pomada cara, de 52 reais, que compro toda semana, e
enfaixar as pernas. Nem passo mais no posto de saúde porque eles não têm nada.
O médico diz que preciso ficar de repouso uns três meses, mas cada dia que não
trabalho o dinheiro no fim do mês diminui, não dá".
Se pudesse escolher, Josefa optaria hoje por ter um emprego
com carteira assinada, onde pudesse usufruir dos direitos trabalhistas, como o
de tirar uma licença médica remunerada. "Mas, infelizmente, eu já não
tenho mais idade. Ninguém vai me contratar com 58 anos", lamenta a
vendedora que chegou a trabalhar 13 anos registrada em diferentes empregos
antes de virar ambulante.
Ela veio da Paraíba para São Paulo aos 13 anos e já
conseguiu, quando chegou, um posto em uma fábrica. "Como contribui esses
anos, agora estou pagando o INSS para completar os 15 anos e tentar aposentar
por idade. Ainda tenho que ver o que essa reforma da Previdência vai mudar nos
meus planos, mas a aposentadoria vai ajudar muito, porque não vou poder trabalhar
para sempre na rua", explica. O marido também deve conseguir se aposentar
por idade daqui a 3 anos.
Enquanto as aposentadorias não chegam, Josefa tem um plano B
para melhorar de vida. Está há alguns anos construindo um novo andar na casa,
com quartos separados para cada filho, para onde pretende se mudar com toda a
família. "Aí vamos alugar essa parte de baixo e ganhar um dinheiro extra.
A obra a gente começou com um acerto que meu marido ganhou quando foi demitido.
Mas não conseguimos terminar e está difícil sobrar dinheiro, vivemos
apertados", explica. O dinheiro anda tão escasso que, às vezes, ela pede
para um primo um empréstimo. Ele empresta um vale alimentação para que ela
compre novas mercadorias e ela só paga dez dias depois. Josefa acredita, no
entanto, que com o dinheiro que fizer nas vendas no Carnaval de 2020 talvez
consiga poupar um pouco. "É a melhor época. Acho que no ano que vem
conseguimos terminar a obra e mudar lá pra cima. Acho que vai melhorar
muito", diz sorrindo.
Texto e imagens reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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