segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Lula está livre. E agora?

Coordenadores da Vigília Lula Livre se reúnem para uma última foto.
Foto: Henry Milleo 

Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em 11 de novembro de 2019

Lula está livre. E agora?

Militância que acompanhou o ex-presidente do lado de fora da prisão quer atuar como uma rede descentralizada pelo país. Um dos desafios é lidar com frente antipetista que pode virar o jogo para uma direita mais moderada

Por Talita Bendinelli 

Havia um ar calmo de ressaca, como se uma festa explosiva e planejada há tempos tivesse deixado, no dia seguinte, um certo gosto de nostalgia. Nos arredores da Polícia Federal de Curitiba, onde por 580 dias o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ficou preso, já não havia neste sábado mais cordões de isolamento. No final da manhã, no exato local onde centenas de pessoas se mobilizaram um dia antes à espera do petista, apenas um punhado de militantes se reunia para uma foto em frente a placa que dizia: "estamos há 580 dias em resistência". Tudo apontava para o final de um ciclo: o último "boa noite, presidente Lula" foi gritado na noite anterior, como ocorreu 579 vezes antes. E o livro de visitas ilustres que estiveram naquele espaço de vigília já tinha a assinatura final: a do próprio ex-presidente, feita também na sexta-feira.

A retirada da placa para a foto foi o último rito, seguido de uma despedida já cheia de planos: "nos vemos na quarta-feira!". Para a militância de Lula, a próxima reunião do Comitê Nacional Lula Livre em São Paulo, um colegiado que se reuniu a cada 15 dias e que desta vez promete contar com a presença do ex-presidente, marcará o começo do próximo ciclo, o das reuniões estratégicas para discutir como manter a mobilização em torno do ex-presidente, agora que o mote gritado por todos se tornou realidade. Lula está livre. Mas e agora?

A principal figura de esquerda do Brasil volta aos holofotes do cenário político impossibilitado de disputar qualquer eleição, já que a condenação em segunda instância o enquadra na Lei da Ficha Limpa. Mas seu nome é, ainda, apontado por seus seguidores como o único viável para qualquer pleito. Para a militância reunida em Curitiba, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que permitiu sua liberdade ao determinar que só podem ser presos condenados sem direito a recurso, trouxe o otimismo de que a Corte possa ser favorável à ação de suspeição de Sergio Moro, o juiz que o condenou e hoje ocupa o ministério da Justiça de Bolsonaro. Se o STF considerar que o antigo magistrado da Lava Jato não era isento para tomar sua decisão, o processo é anulado e volta à estaca zero. A condenação cai. E um próximo julgamento em segunda instância poderia demorar para além de 2022, abrindo a possibilidade para que ele ocupe um lugar na urna eletrônica.

Mas a expectativa que inflamou o lulocentrismo desde sexta-feira vai para além da disputa eleitoral. A presença física do principal líder político da esquerda brasileira nas ruas sinaliza um rumo para a oposição ao ultradireitista Jair Bolsonaro. Lula —e ninguém mais em todo um partido que parecia anestesiado nos últimos 580 dias— é visto como o guia capaz de ordenar e liderar os discursos e as ações a partir de agora. As pistas do caminho já foram dadas em suas duas falas públicas pós-prisão. O ataque que se baseia nos três principais pilares que sustentam o atual Governo: o próprio Bolsonaro, a quem acusou de "governar para as milícias"; Sérgio Moro, apontado como um "canalha", e Paulo Guedes, o superministro da economia, acusado de ser um "demolidor de sonhos". Um discurso sob medida para o atual momento político brasileiro.

Bolsonaro tem a popularidade em queda e um teto de vidro, causado pela investigação contra seu filho, que o impede de fazer uma crítica enfática à Corte cuja decisão colocou Lula nas ruas. Moro tem a imagem abalada pela troca de mensagens mantidas com os acusadores da Lava Jato obtidas pelo The Intercept, e publicadas por veículos parceiros, entre eles o EL PAÍS. E Guedes ainda não foi capaz de alavancar os números da economia brasileira com sua política liberal, para que o povo pudesse sentir os efeitos: a taxa de desemprego caiu, mas ainda há 12,6 milhões de pessoas sem emprego no país; a extrema pobreza está em ascensão, com 13,5 milhões de miseráveis que sobrevivem com até 145 reais por mês.

Da vigília que apoiou Lula em Curitiba, Roberto Baggio, um dos coordenadores do espaço e membro do MST, dissecava a estratégia das palavras do petista no final da manhã de sábado —antes mesmo de o ex-presidente subir ao palco naquela tarde e proferir seu discurso em São Bernardo. "O núcleo que sustenta Bolsonaro não chega a 10% [12%, segundo o Datafolha de setembro]. É muito pouco se comparado ao do PT, que historicamente sempre teve 30%. É um núcleo pequeno, ignorante e atrasado. Bolsonaro envergonha o grupo de forças políticas que foram com ele [contra o PT nas eleições] porque não está à altura do país", afirma. "É claro que tem esse grupo econômico ao redor do Guedes, que está se aproveitando para se apropriar de tudo. Mas a crise social está se ampliando", ressalta. "Existe uma crise social estrutural que só se resolve com políticas públicas. E o projeto do PT está experimentado: o povo viu na era Lula que é possível melhorar a condição material através das iniciativas estatais", ressalta ele.

O trabalho que o PT tem pela frente para reestruturar suas bases não será fácil, já que nos últimos anos o partido se desorganizou nas pontas. E o plano é que isso ocorra para além das caravanas de Lula. E é neste ponto que a experiência de Curitiba ganha uma importância estratégica. A vigília não serviu apenas como base de apoio moral ao ex-presidente encarcerado. Mas se propôs a ser um espaço de formação de militantes, com a pretensão de atuar como uma rede descentralizada pelo país, explica Baggio. É a retomada da ideia básica de criação do partido, que cresceu na redemocratização apoiado na organização dos movimentos sociais.

"A esquerda brasileira nos últimos anos se encantou com os processos eleitorais, priorizou os parlamentos, os governos, as institucionalidades. Muitos militantes se incorporaram a essas estruturas e renunciaram aos processos de organização popular, de formação política. A vigília, de certa forma, tentou incorporar o método organizativo que a esquerda brasileira tinha abandonado. Ela se organizou de maneira independente das forças partidárias. O centro era um conjunto das forças populares, as centrais sindicais, o MST, as bases religiosas. E neste período se transformou na maior universidade popular do Brasil", afirma o coordenador Baggio, que explica que durante o período de prisão do ex-presidente uma das estruturas alugadas pela equipe da vigília, a Casa Marielle Vive, funcionou como um espaço de formação, com cursos que explicavam como se fazer uma reunião e organizar forças nos municípios e discutiam o contexto histórico e social do país.

"Com a liberdade do Lula, temos o sujeito que vai contribuir para armar um processo de organização e luta popular no Brasil. Ele sozinho resolve? Não. Mas vai ajudar o campo popular a retomar suas iniciativas organizativas e de participação. Em um curto espaço de tempo, vamos ter uma grande retomada de organização popular no Brasil inteiro, no campo, na cidade, nas universidades, nas periferias", espera Baggio. "Temos que voltar a fazer o trabalho de base, diminuir a valorização da institucionalidade e construir uma força popular para além da eleição, que também seja capaz de sustentar um Governo", diz. "E a vigília preparou e lapidou a militância para isso." O desafio agora é como fazer essa organização sobreviver para além do Lula preso ganhar força no partido.

"O futuro político é promissor, porém temos que trabalhar bastante para isso. Essa foi uma pequena etapa do processo de luta. Claro que o Lula simboliza uma parte muito significativa deste processo, uma parte fundamental para a atual conjuntura, mas foi o início da etapa", explica Cristôtes Chaves, 33 anos, militante do PT há 20 e coordenador da Casa Marielle Vive. "O partido precisa ter um vigor mais orgânico, mais plural. A centralização em torno de Lula sempre me preocupou, porque a luta não é de uma única pessoa. O Lula é fundamental neste processo, mas o que está em torno dele, as pessoas, as organizações, talvez sejam mais conservadoras do que ele em relação ao papel que ele tem. Essa proteção ao culto da personalidade de Lula é mais do partido", diz. "Mas acredito que com esse processo que ele passou, Lula vai trazer esse debate internamente."

Contra-ataque antipetista

Mas se por um lado a presença de Lula nas ruas alimenta suas bases, por outro também representa um desafio: a força antipetista que alavancou Bolsonaro para além de seu núcleo duro de extrema-direita e o fez chegar à Presidência é forte e capaz de virar o jogo em direção a uma direita mais moderada que já nega o presidente ultradireitista, mas que até o momento ainda não consolidou seu candidato forte. Números da consultoria Atlas Político de setembro mostram que a rejeição ao nome de Lula beira os 58%. O ex-presidente busca retomar os espaços nas ruas que o partido perdeu nos últimos anos, e, por isso, planeja viajar pelo país em uma nova caravana. E também mobilizar sua militância — não por acaso, dedicou grande parte de seu primeiro discurso livre para agradecer nominalmente todas as pessoas que mantiveram a vigília nestes 580 dias.

Ainda na sexta-feira, logo após a soltura de Lula, outro líder petista ganhou a liberdade, beneficiado pela mesma decisão do Supremo. José Dirceu, o grande estrategista das campanhas petistas, apontado como responsável pela guinada ao centro conciliadora com o mercado que elegeu Lula pela primeira vez, encontrou-se em Curitiba à noite com a cúpula petista, Lula incluído. Em um vídeo obtido pela colunista da Folha Mônica Bergamo, ele anuncia sua volta "à trincheira da luta". E explica os novos rumos, calculadamente opostos aos que implementou ao partido naquele início dos anos 2000. "Agora não é por Lula Livre, é para nós voltarmos e retomarmos o Governo do Brasil." Para isso, explica ele, é preciso deixar claro: "somos petistas, de esquerda e socialistas", concepções que colocam o partido no espectro antagônico de Bolsonaro —e também do centro que rejeita Lula e pretende se firmar como liberal— e o situa mais à esquerda, um campo onde o PT também perdeu a hegemonia nos últimos anos. Um discurso que mais alimenta a militância do que se calca na realidade, já que só com os votos da esquerda o PT dificilmente consegue voltar ao poder.

Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com

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