O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), responsável
por ação na
Justiça que censurou a TV Globo (Foto: Joédson Alves/EFE)
Publicado originalmente no site do jornal EL PAÍS BRASIL, em
8 de setembro de 2020
Casos de censura à imprensa no Brasil expõem clima de
“degradação da liberdade”
Decisões costumam ser revistas pelo STF, mas são indicativo
de “judicialização da política”, dizem especialistas. Globo, Portal GGN,
revista ‘Crusoé’ e TV RBS foram alvo de censura este ano
Por Gil Alessi
Nas últimas semanas, uma série de decisões judiciais
amordaçou veículos de imprensa após ações movidas por integrantes da classe
política ou do mercado financeiro. O caso mais recente envolveu o parecer da
juíza Cristina Serra Feijó, do Tribunal de Justiça do Rio. Na sexta-feira ela
proibiu a TV Globo de exibir documentos ou trechos de peças relativas à
investigação do caso das rachadinhas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro
(Republicanos-RJ), que à época era deputado estadual. Trata-se de um caso de
censura prévia, vedada pela Constituição Federal. Alguns dias antes, o
Judiciário fluminense também determinou que o portal GGN retirasse do ar uma
série de reportagens sobre o banco BTG Pactual. Em um contexto no qual o
próprio presidente Jair Bolsonaro ataca veículos de imprensa e ameaça
jornalistas que criticam sua gestão ou que abordam assuntos incômodos,
especialistas alertam para um clima de “degradação” do ambiente de liberdade de
expressão e de imprensa no país.
Quando uma reportagem é barrada pela Justiça antes mesmo de
ter sido publicada, “quem perde é a sociedade. A censura prévia é sempre uma
violação da liberdade de expressão e imprensa”, afirma Marcelo Träsel,
presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e professor da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele destaca que, nos casos
mencionados, ocorre ainda um “prejuízo de informações de interesse público, que
ao serem ocultadas deixam a sociedade sem acesso a fatos fundamentais para monitorar
atividades de um governante, empresa ou representante público”. No caso da
investigação envolvendo Flávio, por exemplo, se a imprensa tivesse sido
proibida de divulgar documentos do caso desde o início não se saberia que a
primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu 89.000 reais em depósitos feitos pelo
ex-assessor Fabrício Queiroz, ligado a milicianos. Os Bolsonaro negam ter
cometido qualquer crime, mas o Planalto ainda não explicou porque Michelle
recebeu mais valores do que a devolução de um empréstimo, sem comprovante ou
declaração no imposto, que o presidente diz ter feito ao ex-assessor.
Se no curto prazo a população fica sem informações
relevantes, Träsel destaca também prejuízos no horizonte distante. “Esse tipo
de decisão degrada o ambiente público e a liberdade de expressão de uma maneira
geral. Se não é revertida em instâncias superiores, mesmo a longo a prazo, isso
tem um efeito ruim”, afirma. Ele diz que geralmente nestes casos o Supremo
Tribunal Federal tende a derrubar as decisões de primeira instância de censura
prévia.
Estes movimentos do Judiciário contra a imprensa precisam
ser entendidos em um contexto maior, de “judicialização da política no Brasil”,
afirma André Augusto Salvador Bezerra, juiz e pesquisador da Universidade de
São Paulo. “É um fenômeno mundial, e tem atingido temas sensíveis para os
valores democráticos”, diz. Para o magistrado, “a judicialização da política
nunca deve ser comemorada, pois ela é sintoma de anomalia no sistema político:
ou ele não está funcionando direito ou está com problemas de legitimidade”. Ele
cita como um dos primeiros casos deste movimento as decisões jurídicas que
obrigavam o poder público a fornecer medicamentos para tratamento do HIV.
“Começou como garantia de direitos —o que já aponta anomalia do sistema, uma
vez que os Governos deveriam garantir estes remédios para a população fora dos
tribunais—, e se espalhou para praticamente todas as esferas”, diz. “Por isso
nosso sistema democrático tem um tribunal constitucional: para que ele dê um basta
quando entender que a Constituição foi desrespeitada”, conclui.
Mas nem sempre o STF age com a velocidade esperada. Um caso
emblemático de censura e morosidade do Judiciário envolveu o clã Sarney e o
jornal O Estado de São Paulo, que teve uma reportagem censurada a pedido de
Fernando Sarney, filho do ex-presidente, por 3.327 dias. O ministro Ricardo
Lewandowski derrubou em 2018, após nove anos de silêncio, a decisão de primeira
instância da Justiça do Distrito Federal e Territórios. O caso em questão dizia
respeito à publicação de gravações obtidas no âmbito da Operação Boi Barrica
que apontavam para ligações entre Sarney e a contratação de parentes e
afilhados políticos por meio de atos secretos.
Nem Bezerra nem Träsel, da Abraji, acreditam que a censura a
veículos de imprensa piorou sob o Governo Bolsonaro. Ambos apontam para a
existência de uma “pluralidade do Judiciário”, o que ajudaria a deixar os casos
de censura prévia restritos a uma parcela menor de juízes.
Censura à Globo, GGN, RBS e Crusoé
A ação que censurou a Globo na semana passada foi movida
pela defesa de Flávio Bolsonaro. No entendimento da magistrada que deferiu o
pedido, como o processo corre em segredo de Justiça a divulgação dos dados
comprometeria “sua imagem [de Flávio] no cenário político” e seria
“potencialmente lesiva à sua honra”. O senador comemorou a censura nas redes
sociais: “Não tenho nada a esconder e expliquei tudo nos autos, mas as
narrativas que parte da imprensa inventa para desgastar minha imagem e a do
presidente Jair Messias Bolsonaro são criminosas”.
Já no caso do GGN, a Justiça afirmou que as matérias
publicadas não poderiam “causar danos à imagem de quem quer que seja”. O juiz
Leonardo Grandmasson Ferreira Chavez afirma que “pelo conjunto da obra [do
GGN]” parece haver uma “campanha orquestrada para difamar o banco, cuja imagem
é “patrimônio sensível para seus acionistas”. Contrariando a jurisprudência da
Corte, o ministro do STF Marco Aurélio Mello manteve a decisão do juiz do Rio
que censurou o GGN. Os advogados do portal informaram que vão recorrer, mas
ainda não existe data para que o plenário do Tribunal discuta a questão.
O próprio STF, no entanto, também pode agir de forma
corporativa. No ano passado houve um caso de censura que partiu da própria
Corte: o ministro Alexandre de Moraes ordenou que se retirasse do ar uma
reportagem da revista Crusoé que envolvia o presidente do Tribunal, Antonio
Dias Toffoli, e o delator Marcelo Odebrecht. Em seu despacho, Moraes ainda
chamou a matéria de “fake news”, acusação refutada pela publicação.
Em junho deste ano, outro caso de censura prévia, desta vez
envolvendo a TV RBS. O juiz Daniel da Silva Luz, do Rio Grande do Sul, concedeu
decisão liminar proibindo a veiculação de uma reportagem sobre concessão
irregular do abono emergencial.
A Associação Nacional de Jornais (ANJ) se manifestou por
nota sobre o caso da Globo, e afirmou que a decisão é inconstitucional: “A ANJ
espera que a decisão inconstitucional da juíza seja logo revogada pelo próprio
Poder Judiciário”. A reportagem tentou sem sucesso entrar em contato com os
juízes mencionados.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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