Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI. de 6 de
abril de 2021
Igualdade sem mediocridade
Desde que se firmaram, palavras como “liberdade” e
“igualdade” têm sido capturadas pelos seus inimigos e usadas como armas de
arremesso para impor soluções totalitárias e de normalização do pensamento.
Rodrigo Adão da Fonseca via Observador:
As palavras nem sempre carregam o mesmo sentido ou
significado, não sendo por isso invulgar que aquilo que se ouve ou lê, ainda
que verbalizado da mesma forma, aponte para caminhos distintos sobre o que se
considera ser certo ou verdadeiro. Se um português rebarbado, por terras de
Castela, por exemplo, perguntar a uma senhora de meia idade, “qual o caminho
mais rápido até Braga?”, corre o sério risco de, na sua pura inocência, acabar
algemado, detido e acusado de molestar o sexo oposto. Não é incomum, também,
que certas marcas de automóveis tenham de adaptar a nomenclatura dos seus
modelos a certas idiossincrasias locais; por exemplo, qualquer português que
tenha visitado Espanha, no seu “Mitsubishi Pajero”, que por lá se chama
“Montero”, terá notado que na rua não passa despercebido, o mesmo acontecendo
para os que, distraidamente, adquiriram por cá um “Opel Ascona” (o qual,
entretanto, passou a designar-se “1604” ou “1904”, consoante se tratasse de um
1600 cc ou um 1900 cc), lição aprendida pela Hyundai que, por ocasião do
lançamento de um recente SUV, inspirado na bela região de Kailua-Kona, na Ilha
do Havai, achou por bem que no nosso país – ao arrepio do resto da Europa –, o
bólide se apresentasse sob o bonito nome de “Kauai”. Segundo o Autoportal,
citado pelo site da TVI24, no Brasil, fizeram furor o “Ford Pinto” e o “Lancia
Marica”, por razões que me dispenso a explicar: já na Suécia, a Mercedes
esqueceu-se que, por lá, “Vito” é a palavra que nos conduz ao órgão genital
feminino, enquanto que no Chile, e apesar das queixas dos revendedores locais,
a Mazda insistiu em manter o nome do seu enigmático “Laputa”, mostrando quão
persistentes podem ser os japoneses, na defesa da integridade das suas
estratégias empresariais. São inúmeros os exemplos que nos mostram – com mais
ou menos humor –, como o sentido das palavras se altera em função da região, da
língua, e do próprio tempo em que são utilizadas.
Ao nível das ideias políticas, existem palavras que ganharam
um estatuto tal que não há corrente ideológica que não as procure capturar para
si, moldando-as, dando-lhes sentido e conteúdo semântico muito próprios, para
que funcionem como pilares da mensagem que procuram projetar. Da esquerda à
direita, todos os políticos lançam com emoção apelos à liberdade e à igualdade,
sem que isso, para lá do significado folclórico, nos diga grande coisa. Desde
que na Revolução Francesa o marketeiro de serviço, à época, construiu o mais
forte slogan da política moderna – “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” –, que
todos os programas políticos e ideológicos se dedicam a torturar estas
palavras, para lhes dar sentido e alcance que os conduza a um resultado
qualquer. Não é por isso de espantar que os apelos à liberdade ou à igualdade
possam surgir na boca e na pena de personalidades tão distintas como o Papa
João Paulo II, John Locke, Luther King, Che Guevara, Churchill, Marx e até
Estaline.
É por isso fundamental que, no momento em que optámos por
usar certas palavras, saibamos qual o sentido que elas vão operar nos nossos
interlocutores, e que ideias de base sustentam o nosso argumentário.
Desde a modernidade, e sobretudo, pelos que bebem na
Revolução Francesa, a liberdade passou a ser vista e trabalhada na sua asserção
mais formal, traduzindo-se, sobretudo, num sistema de regras, numa rede de
restrição e ordem, assumindo, por isso, uma lógica muito mais institucional e
muito menos individualista. Já na tradição anglo-saxónica, a liberdade tem sido
vista muito mais como um legado civilizacional que distingue os britânicos e
seus descendentes dos herdeiros dos povos escravos do Continente, desprotegidos
do poder arbitrário do Estado. Esta maneira de ver a liberdade, que John Locke
perpetuou com maestria, ficou por exemplo gravada na Declaração de
Independência americana, que coloca a lei ao serviço da vida, da liberdade e da
busca da felicidade. A existência de um sentido dual para a liberdade está
também bem presente na obra, “Dois conceitos de liberdade”, de Isaiah Berlin,
ensaio que, de uma forma muito feliz, sintetiza e organiza as liberdades
positivas e negativas a partir da tensão existente entre um sistema
institucional que aspira à normalização e à ordem, e as asserções que as olham
como expressão da autonomia individual e pressuposto para a realização e a
felicidade.
Ora, se durante o século XIX e parte do século XX, a
igualdade esteve amplamente associada aos conceitos de liberdade, no sentido
dual que acima identificámos, tendo ambas sido alavancas importantes para a
afirmação de sistemas legais assentes na separação de poderes, da soberania
assente no voto, na promoção de uma cidadania que nos situa a todos no mesmo
patamar perante a lei, e na consolidação de uma tradição que coloca a pessoa
concreta no centro da decisão, com a afirmação de toda uma vaga de direitos
sociais, inspirada em correntes marxistas, socialistas, e sociais-democratas,
que juntaram à ideia de justiça, uma dimensão económica e social, estas
palavras passaram a ter um significado tão amplo e difuso, que passaram a
sinalizar tudo e o seu contrário.
Desde que se afirmaram, no plano das democracias liberais,
palavras como “liberdade” e “igualdade” têm sido capturadas pelos seus
inimigos, e usadas como armas de arremesso ideológico para imposição de
soluções totalitárias, ou de normalização do pensamento. Este processo de
captura é, como referi aqui, antes de mais, cultural, e só depois, e em
consequência, jurídico e político. Ora, no plano cultural, há muito que estão a
ser desenhadas, de forma muitas vezes artificial, mutações semânticas destas
expressões, cujo alcance as afasta do seu sentido original. A um ponto tal que,
nos dias que correm, as principais liberdades individuais – aquelas que Locke
colocava como sendo essenciais para que um qualquer cidadão construa a sua
esfera de realização –, são diariamente postas em causa pelos promotores de uma
igualdade e de uma liberdade que não aceita desvios, por as ter tornado
instrumentais.
Na verdade, quando acreditávamos que já tínhamos aprendido
tudo com as lições da História do século XX, eis que emergem, de novo, e de
forma acelerada, construções políticas que olham para a liberdade como um
instrumento ideológico e a igualdade como um resultado final que deve ser
imposto por sistemas de regras, por redes de restrição e ordem que definam o
que é ou não aceitável, muito para lá daquilo que são as opções individuais e
as aspirações de felicidade de cada um. Seja em nome do combate ao racismo,
seja na promoção de uma efetiva igualdade que, saudavelmente, deve existir
entre homens e mulheres, seja na defesa da ecologia ou da saúde, assiste-se a
uma captura do sentido e do alcance das ideias de liberdade e igualdade, ao
serviço da imposição de narrativas que nos exigem resultados tão bizarros como
o “fim da idealização da maternidade”, uma “representatividade” artificial “em
cargos de liderança”, “a inversão do ónus da prova em caso de agressão sexual”,
ou o “fim da pressão estética”, numa lamentável apologia da mediocridade que,
como já deveríamos saber, é fonte de pobreza, desilusão, e infelicidade. O
carácter autocrático destas formulações expressa-se na incapacidade de aceitar,
no debate, qualquer nuance que se afaste daquilo que alguém definiu como sendo
o desejado resultado final, um modelo de sociedade pré-definido e fechado, que
importa impor, ainda que com os devidos sacrifícios.
Ora, os sacrifícios, esses, são todos aqueles que, em liberdade, muitos de nós não estamos dispostos a prescindir. A destruição da estética e da ideia de belo, a desvalorização da maternidade, a anulação de soluções meritocráticas, a fragilização da justiça baseada num juízo de culpa concreta, a despromoção de uma moralidade que é definida pelos valores e opções de pessoas concretas, com vontade e arbítrio para saberem o que é melhor para si e para os seus, em prol de soluções baseadas na cegueira da lei e por uma ideia artificial de comunidade, ganharam hoje um espaço de afirmação que não imaginávamos possível, há dez anos atrás.
Para os promotores destas narrativas, a liberdade e a
igualdade são instrumentais, não estão ao serviço de pessoas concretas, mas de
vanguardas ideológicas que continuam a querer derrubar as democracias liberais.
Ignorando as dimensões negativas da liberdade, encaram a maioria das sociedades
contemporâneas como herdeiras de um conjunto de práticas, instituições, incentivos
e sensibilidades que promovem o que consideram ser a exploração do trabalho, a
alienação dos seres humanos, e a degradação de uma ideia de liberdade que não
pode ser alcançada dentro das estruturas atuais. Por exemplo, todas as
correntes atuais do feminismo olham as “mulheres” como um grupo autónomo com
interesses e aspirações semelhantes. Aquelas que recusem subscrever o
receituário feminista – que inclui a desvalorização da maternidade, o combate
não conivente com o “patriarcado”, a libertação da “pressão estética”, a
crítica às estruturas empresariais, e uma visão das relações entre homens e
mulheres construídas numa linguagem de opressão – são vilipendiadas e
desvalorizadas na sua “feminilidade”.
A liberdade é, assim, vista como uma forma estranha de
arbítrio, já que a decisão se traduz numa “tomada de consciência” sobre o
“estatuto feminino”, e não em escolhas que visam a realização pessoal. Este
tipo de estratificação, identitária, leva a uma completa anulação do sentido
mais intuitivo do que é a liberdade, que assenta, obviamente, na possibilidade
de cada um escolher o que é melhor para si. O mesmo tipo de mecânica está
igualmente presente em certas fórmulas de combate ao racismo, na suposta defesa
de minorias sexuais, ou de qualquer outra categoria que consiga encarcerar
pessoas em concreto nas amarras de uma pretensa identidade que possa ser
associada a uma qualquer forma de hipotética “opressão”. O mais grave, porém, é
que a sofisticação destas narrativas está a conduzir à projeção de falsas identidades,
exteriores aos sujeitos e à sua própria afirmação, que impõem construções
artificiais que anulam as pessoas e as suas aspirações, que destroem o mérito,
trazendo consigo um culto da mediocridade, da inveja, do ressentimento, do feio
enquanto valor e enquanto aspiração, da anulação da biologia, seja no sexo,
como no género, seja na desvalorização da maternidade, que faz das sociedades
ocidentais, cada vez mais, comunidades sem pluralismo, sem esperança, sem
futuro.
E sem criatividade. Tristes tempos vivemos hoje, onde há
muito que não temos a sorte de descobrir, na filosofia, na música, nas artes
plásticas, no cinema, as expressões da excecionalidade que, no passado, fizeram
avançar a Humanidade.
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com

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