segunda-feira, 7 de outubro de 2024

São Paulo desvairada


 Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI 5 de outubro de 2024

São Paulo desvairada

A cidade já deu múltiplos saltos ideológicos, sem nunca deixar de entreter o cidadão. Orlando Tosetto para a revista Crusoé:

Na véspera da eleição municipal, quero fazer a vindicação da alma porra-louca da minha cidade: São Paulo. Nos próximos parágrafos, tentarei demonstrar que a pauliceia não ganhou à toa o apelido de “desvairada”, e que aliás ela nunca é mais desvairada do que quando da escolha de seus alcaides.

Antes, um pouquinho de história. Tirei meu título de eleitor em 1985, quando fiz dezoito anos. Era um pedação de papel branco meio acartonado, no qual ficava grampeada uma fotografia do infeliz portador e em cuja traseira eram carimbadas as comprovações de comparecimento às urnas. Nestes meus quase quarenta anos de eleitor, participei de mais pleitos do que sou capaz (ou tenho vontade) de me lembrar. Os municipais, que são os dos quais quero falar, foram dez até agora (serão onze no domingo). É muita coisa, não é? A rotina desgasta um pouco nossa relação com a Democracia, você não acha?

Enfim, estreei meu título na eleição municipal daquele mesmo 1985. Foi o pleito que Jânio Quadros ganhou, e, na posse, desinfetou a cadeira na qual Fernando Henrique Cardoso, líder nas pesquisas, se sentara dias antes, posando para um jornal. A vitória do Jânio, esquizóide ideológico e exemplar prototípico daquilo que os ingleses descrevem como tired and emotional, foi o primeiro sinal da excentricidade eleitoral da minha cidade: não esquecer que sua fuga da Presidência, em 1961, foi tida por todo mundo como causadora primeira do golpe de 1964. E aqui se elegeu para, entre outras coisas, criar ônibus de dois andares e recriar a Guarda Municipal.

Três anos depois, a cidade surpreendia novamente: elegeu Luiza Erundina. Mulher, nordestina, abertamente – que digo? escancaradamente, esfuziantemente, aos berros mesmo – socialista. Um senhor plot twist ideológico, e uma demonstração notável de falta de preconceito, já que também se dizia que ela era homossexual, o que nunca se comprovou, e também nunca fez a menor diferença.

A eleição de Paulo Maluf, em 1992, não chegou a surpreender ninguém: a cidade sempre o amou. Mas a de seu sucessor, Celso Pitta, em 1996, sim: o homem era carioca, negro, de direita, sem passado político nenhum, e vivia às turras públicas com a mulher. A cidade gosta de entretenimento. Tanto que Sílvio Santos, outro entertainer carioca, tentou concorrer e não conseguiu.

Antes de ser eleita, em 2000, e apesar de já ter um mandato de deputada federal, Marta Suplicy ainda era mais lembrada como socialite (é filha de industrial, neta de visconde, bisneta de conde e de quatrocentões) e sexóloga: tinha um programa matinal na TV no qual discutia com as donas de casa, entre outras amenidades correlatas, as vantagens contraceptivas do sexo anal. Mais surpreendente do que isso, entretanto, foi uma socialite ser eleita pelo socialista PT, duplo twist carpado ideológico a suceder duas administrações à direita. Nesse pleito, dos mais divertidos, concorreu e causou comoção também o Dr. Enéas Carneiro.

As eleições de José Serra, em 2004, e de Gilberto Kassab, em 2008, ambos homens de centro, não surpreenderam ninguém (o abandono da cadeira por parte do Serra também eram favas contadas); surpreendente foi, na campanha de 2008, ver e ouvir a ex-sexóloga Marta esquecer suas afinidades prévias e pôr em dúvida a heterossexualidade de Kassab. Felizmente, a insinuação não prosperou, como já não tinha prosperado com a Erundina: a cidade não dá bola para essas coisas.

Em 2012, outra guinada à esquerda: a eleição de Fernando Haddad, do PT, cujo amor pelas ciclofaixas impulsionou grandemente a indústria química, que fabricou tinta pra dedéu. Foi corrido, ou bicicletado, do cargo no primeiro turno de 2016, quando a cidade, em mais uma reviravolta da ideologia, elegeu seu primeiro marqueteiro: João Doria. Ele até que foi útil por cerca de duas semanas, capinando uns matos e recolhendo um pouco de lixo. Doria refez os passos de Serra e abandonou a cadeira para voos mais altos, deixando-a nas mãos de seu vice, Bruno Covas, eleito em 2020. Bruno também a deixou para seu vice, Ricardo Nunes, desta vez por óbito.

Agora está posto ante a cidade o leque mais curioso dos últimos tempos: o alcaide atual, homem que abarca todo o espectro entre a nulidade e a falta de carisma; o suave e amoroso rapaz do Celtinha, que os tais jornalistas, intelectuais e artistas de sempre, muito mal disfarçadamente petistas, escolheram para seu pedido de “voto útil” (sic); e o frágil e desbocado coach cheio dos erres retroflexos, que não aguenta uma cadeirada. Duas ou três voltas atrás estão um apresentador de TV atrabiliário, uma menina dos olhos dos movimentos estudantis e uma economista que parece não saber muito bem o que fazer e nem onde se meteu.

Diante de tal bestiário, não espanta que a cidade esteja indecisa e haja empate técnico nas pesquisas. É o que acontece quando há excesso de opções. Seja qual for o resultado, entretanto, podemos confiar que São Paulo não nos decepcionará, e se deixará alcaidar, outra vez, por um desses tipos que não têm vez em nenhum outro circo.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

Nenhum comentário:

Postar um comentário