Publicado originalmente no site Consciência Política, no ano de 2016.
Ética e Política
Por Alexsandro M. Medeiros
A relação
entre ética e política adquiriu formas e valores bem distintos ao longo da
história da humanidade, desde uma forte relação entre ética e política na
Antiguidade, uma ruptura entre ambas no Renascimento e início da modernidade,
uma crise de valores característica da contemporaneidade até uma proposta atual
de reaproximação entre ambas.
Como é manifesto, na história da cultura ocidental
encontram-se diferentes teorias acerca da relação entre ética e política,
algumas das quais afirmam a compatibilidade, ou também a convergência, ou
diretamente a substancial identidade dos dois termos; outras afirmam a
divergência, a incompatibilidade ou diretamente o antagonismo (BOVERO, 1992, p.
141).
É sobre
esta intricada relação que iremos discorrer ao longo deste texto. Mas antes
vejamos algumas breves considerações sobre o sentido etimológico da palavra
ética.
O conceito
de “ética” remonta aos gregos; provém de êthos (com eta inicial), e éthos (com
épsilon). Em seu primeiro significado, ethos designa a residência, morada,
lugar onde se habita[1]; em sua segunda acepção designa o conjunto de costumes
normativos da vida de um grupo social, o modo de ser, o caráter. É, pois, a
realidade histórico-social dos costumes e sua presença no comportamento dos
indivíduos que é designada pelas duas grafias do termo ethos.
O seu
último significado será vulgarizado a partir de Aristóteles que o integra
definitivamente na filosofia usando ainda o adjetivo ethiké (ethiké procede do
substantivo ethos conforme nos ensina Carlos Ferraz, 2014) que qualifica um
determinado tipo de saber surgindo a expressão ethiké pragmateia, que se pode
traduzir tanto como o exercício constante das virtudes morais, quanto como o
exercício da investigação e da reflexão metódica sobre os costumes.
Já o
vocábulo moral traduz o latim mos, apresentando evolução semântica análoga a do
termo ética. Os romanos não conseguiam fazer distinção, no latim, entre êthos e
éthos, traduzindo por mos e mores. “Tal conceito foi posteriormente traduzido,
por Cícero, para o termo latino mos, do qual advém a palavra “moral”, de tal
forma que “moral” seria uma mera tradução de “ética” (significando, pois, a
mesma coisa)” (FERRAZ, 2014, p. 09). Etimologicamente a raiz de moralis é o
substantivo mos (mores) que corresponde ao grego ethos. Desde a época clássica,
moralis, como substantivo ou adjetivo, passa a ser a tradução usual do grego
ethiké e esse uso é transmitido ao latim tardio e, finalmente, ao latim escolástico,
prevalecendo seu emprego tanto como adjetivo, para designar uma das partes da
Filosofia, ou qualificar essa disciplina filosófica com a expressão Philosophia
moralis, hoje vulgarizada nas diversas línguas ocidentais, quanto simplesmente
como substantivo, como moral em nossa linguagem corrente.
Ética e Política ao longo da História
Uma marca
característica da ética na Antiguidade é sua indissociabilidade com a política.
Desde Platão e seu discípulo Aristóteles, que a ideia de constituição da polis
é perpassada pelo princípio de que a cidade deve ser dirigida por governantes
sábios, justos e virtuosos. É de Aristóteles, por exemplo, a afirmação de que o
homem é um animal político – zoon politikon. “Trata-se de um homem
‘essencialmente destinado à vida em comum na polis e somente aí se realiza como
ser racional. Ele é um zoon politikón por ser exatamente um zoon logikón, sendo
a vida ética e a vida política artes de viver segundo a razão’” (LIMA VAZ,
2004, p. 38-39 apud PANSARELLI, 2009, p. 13). E Hélcio Corrêa afirma que na
polis grega o cidadão só é reconhecido como tal a partir de sua inserção na
comunidade política e a razão prática que norteia a ação do cidadão grego está
intimamente ligada ao ethos “[...] entendido este como um conjunto de
tradições, costumes e valores próprios da vida na polis” (2011, p. 77) e, no
caso de Aristóteles, “[...] as noções de ética e política se completam
reciprocamente na teoria da justiça” (2011, p. 77).
Com
efeito, na polis grega, tanto o estudo da ética quanto da constituição da polis
(da política) lançam as bases para o comportamento justo do indivíduo e do
cidadão. Platão (1993), inclusive, compara a ideia de justiça, tanto no
indivíduo quanto na sociedade, como sendo a harmonia entre suas partes. Essa
dupla perspectiva aparece já no início da obra A República de Platão, a partir
do Livro II quando este afirma que o homem justo em nada diferirá da cidade
justa e será semelhante a ela (435b). Para Del Vecchio (1925, p. 14) aparecem
aí fundidas a norma moral e jurídica, a política e a ética, inclusive a
psicologia, ou seja, a vida interior do indivíduo e as relações sociais.
Isso de laços entre o indivíduo e a polis, se já existe
certa simetria em Platão, radicaliza-se em Aristóteles, o qual tratou
predominantemente da justiça no livro V da Ética a Nicômaco. John Morrall
afiança-nos: [...] como Platão na República, Aristóteles vê uma analogia entre
a vida da polis e a vida da família, e traça semelhanças entre os modos pelos
quais se podem governar famílias e estados[...] (1981, p.45 apud CORRÊA, 2011,
p. 78).
A
concepção de justiça para os gregos estabelece uma relação direta entre ética e
política tanto para Platão quanto para Aristóteles, pois a justiça (dikaiosýne)
é também virtude (areté). A justiça é tanto a ordem da comunidade dos cidadãos
quanto virtude individual que consiste no discernimento do que é justo ou
injusto.
Para o
filósofo grego Aristóteles, se a ética é condição de autorrealização do
indivíduo ou, mais precisamente uma vida virtuosa com base na razão, se pode
dizer o mesmo da política que é a condição de autorrealização da polis e uma e
outra não estão separadas, assim como não estão separados o indivíduo e o
cidadão. O projeto individualista do liberalismo moderno seria profundamente
estranho aos pensadores gregos (MACINTYRE, 2001) que tinham por certo a
premissa de que a liberdade situa-se sobretudo na esfera política (ARENDT,
1981) e por isso Aristóteles irá afirmar que aquele que for incapaz ou não
sente a necessidade de se associar em comunidade ou é uma besta ou um deus
(ARISTÓTELES, 1998, 1253a 25). Somente na polis, na vida em comunidade, a
felicidade (eudaimonia) pode ser alcançada, e o bem, fim último da existência
humana, pode se realizar (HIRSCHBERGER, 1969). Não existe agir ético ou
virtuoso fora da polis.
E, assim, da mesma forma que, na Política escreveu
Aristóteles: A finalidade e o objetivo da cidade é a vida boa, e tais
instituições propiciam esse fim (Pol.,1280 b 40); também o filósofo não deixou
de consignar que é preciso concluir que a comunidade política existe graças às
boas ações, e não à simples vida em comum (Pol., 1281a1) (apud CORRÊA, 2011, p.
80).
Portanto,
os gregos não possuíam essa visão que separa a ética da política como sendo a
primeira da esfera individual e a segunda exterior ao indivíduo e ambas
tratadas separadamente: “[...] na polis grega, o cidadão, em si, é reconhecido
como tal apenas a partir de sua inserção na comunidade política” (CORRÊA, 2011,
p. 83). Ademais, apenas na polis a felicidade (eudaimonia) é passível de ser
alcançada e na relação entre a vida individual e a vida em comunidade uma é
condição de realização plena da outra e vice-versa.
Para
Alasdair Macintyre (2001) foi o liberalismo moderno que rompeu os laços com a
polis, com a comunidade política, e enfatizou a dimensão humana do
individualismo. Mas antes mesmo do liberalismo moderno uma ruptura ainda maior
entre a ética e a política foi promovida por um dos maiores pensadores
italianos do período renascentista e início da modernidade: aquele que é
considerado, precisamente, o pai da ciência política, a saber, Nicolau
Maquiavel.
Até o início do século XVI, política e moral não constituíam
campos separados; ao contrário, eram tratadas de forma indistinta, sendo as
avaliações dos fatos políticos afetadas por julgamentos de valor. Algumas obras
revelavam a redução total da política à moral, tal como se pode observar em A
educação do príncipe cristão, de Erasmo de Rotterdam, livro publicado em 1515,
no qual Erasmo traça o perfil do bom príncipe, enfatizando a relevância da
magnanimidade, da temperança e da honestidade, enfim, de atributos definidores
da retidão moral do soberano. Maquiavel rompe com essa forma de subordinação da
política aos ditames da moral convencional e afirma que a política tem uma
lógica própria e razões nem sempre compatíveis com princípios consagrados pela
tradição (DINIZ, 1999, p. 61).
Ao
rejeitar os sistemas utópicos da filosofia grega e procurar a verdade efetiva
dos fatos (MAQUIAVEL, 1999, cap. XV), Maquiavel promove uma certa ruptura entre
o campo do dever ser (determinado pela ética) e a realidade dos fatos que é
objeto de estudo da política. A principal preocupação de Maquiavel é o Estado:
não o Estado ideal imaginado na República de Platão ou nas utopias dos
filósofos renascentistas como Thomas Morus e Tommaso Campanella, mas o Estado
real, concreto, seguindo a trilha inaugurada pelos historiadores antigos como
Tácito, Políbio, Tucídides e Tito Lívio. Ao desvincular o Estado ideal do
Estado real Maquiavel defende a autonomia da política em relação à religião e à
moral cristã e promove uma ruptura entre aquilo que é e o que deveria ser
(SADEK, 1995, p. 17-18). “Maquiavel reivindica a irredutibilidade e a autonomia
da política, a política como um campo específico do saber, a exigir um enfoque
também específico, distinto da moral, da ética e da religião” (DINIZ, 1999, p.
60). A análise política deve se ater à realidade concreta dos fatos, pautar-se
pelos aspectos objetivos e reais que existem na sociedade devendo se desprender
de considerações de caráter moral e religioso sobre como a sociedade deveria
ser e de critérios valorativos expressos em um plano ideal. O argumento de
Maquiavel consiste “[...] em admitir que a ótica do indivíduo e a ótica do
Estado são distintas e que nem sempre o que é bom para o indivíduo é igualmente
adequado para o Estado. Trata-se de dois sistemas de juízos não necessariamente
coincidentes” (DINIZ, 1999, p. 61).
Cumpre
notar, todavia, que Maquiavel não advoga a rejeição de princípios éticos.
Apenas irá defender a autonomia da política em relação a ética e que, se
necessário, um Príncipe deve aprender a saber usar de artifícios estratégicos
que conflitam com a moral cristã, por exemplo, se quiser se manter no poder. A
ética maquiaveliana tem características distintas da tradição cristã, de alguma
forma determina a conduta do príncipe, mas não é condição necessária da
organização política já que, dependendo da situação, um Príncipe deve saber
agir pelas leis ou pela força, devendo empregar adequadamente o homem e o
animal (MAQUIAVEL, 1999). “Podemos lembrar ainda o conselho que dá aos
príncipes, no cap. XVIII, ressaltando que devem reunir ao mesmo tempo as
qualidades do leão e da raposa, isto é, a força e a astúcia, se quiserem ter
sucesso na condução dos negócios do Estado” (DINIZ, 1999, p. 60).
Com a
ruptura promovida por Maquiavel, a ética vai cada vez mais se distanciando do
campo da política e os filósofos modernos e contemporâneos vão cada vez mais
tratando a ética de forma autônoma e independente da política, mas não sem
exceções, como é o caso do filósofo do iluminismo francês Jean-Jacques Rousseau
ou dos filósofos Hegel e Habermas: o primeiro em fins do século XVIII e início
do século XIX e o segundo no século XX.
Ética e Política Hoje
Embora nem
sempre haja convergência entre as práticas políticas e os princípios morais, é
fato hoje que a sociedade em geral está cansada de tantas notícias envolvendo
escândalos de corrupção e posturas não condizentes com nossos representantes
políticos (tanto na esfera do poder executivo quanto do legislativo) e clama
por uma sociedade mais justa, no mesmo sentido em que desde a antiguidade
Platão e Aristóteles já destacavam o importante papel que a justiça deve
desempenhar para a vida em sociedade. Em um de seus pronunciamentos como
candidato à presidência da República, Rui Barbosa afirmou: “Toda a política se
há de inspirar na moral. Toda a política há de emanar da Moral. Toda a política
deve ter a Moral por norte, bússola e rota” (apud NOGUEIRA, 1993, p. 350). Além
disso, “a intensa crise política no país impõe que faça algumas reflexões sobre
o problema da ética na política” (CHERCHI, 2009, p. 15).
Para
alguns há uma incompatibilidade inelutável entre ética e política e ambas devem
ser consideradas em domínios opostos. Para outros “[...] há uma forte
expectativa, particularmente nos regimes democráticos, de que os governantes se
conduzam de acordo com critérios de probidade e justiça na administração dos
negócios públicos” (DINIZ, 1999, p. 57). De qualquer forma é preciso considerar
que o âmbito da esfera política não pode ser reduzido ao universo da ética e da
moral, pois como afirma Frota: “Os valores políticos transcendem os valores
éticos e o universo da política não pode ser confundido com o da ética” (2012,
p. 14).
Tanto a
ética quanto a política são temas de uma longa tradição do pensamento
filosófico e continuam a permear nossa realidade contemporânea por uma razão
muito simples: não há como pensar a vida em sociedade sem valores morais e sem
organização política. A questão é: as duas questões estão relacionadas ou devem
ser tratadas de forma independente? Como vimos, ao longo da história, nem
sempre os filósofos tiveram a mesma opinião sobre o assunto e ainda hoje esse
tema é motivo de conflitos de ideias. Afinal, ética e política podem convergir
entre si? “Podem ser ambos referidos a um mesmo termo de comparação, ou
pertencem a universos incomensuráveis porque muito distantes? Pode-se responder
de um e outro modo e articular a resposta de muitos modos diferentes” (BOVERO,
1992, p. 143). Para Cherchi, “a ética na política, diz respeito à conduta de
cidadãos investidos em funções públicas, que como agentes públicos são
responsáveis por manter uma conduta ética compatível com o exercício do cargo
público para os quais foram eleitos” (2009, p. 15).
Por fim
vale ressaltar que a sociedade contemporânea parece, de fato, cansada de ouvir
falar de tantos escândalos na política e a apatia e até mesmo repulsa de muitos
cidadãos pela política são a consequência direta da forma como a política é
conduzida pelos nossos governantes. Mas nem todos os cidadãos ficam passivos
diante dos problemas que envolvem a classe política. As mais recentes
manifestações da população brasileira como as do ano corrente ou as de 2014 ou
2013 atestam isso. A sociedade está cada vez mais disposta a se mobilizar pela
“moralidade pública”. Escândalos de corrupção envolvendo as mais importantes
empreiteiras do país na famosa operação Lava-Jato, os esquemas de corrupção
conhecido como Mensalão, e até mesmo décadas atrás, no conhecido “movimento
pela ética na política” de 1992 que culminou com o impeachment do ex-presidente
Fernando Collor de Melo demonstram o quanto a população está disposta a tomar
as ruas se for preciso para acabar com a corrupção que assola o nosso país.
Sabemos que muito há ainda por ser feito e que a corrupção, talvez,
dificilmente tenha fim, já que são muitas as formas de manipulação, utilização
e desvios de verba pública para beneficiar interesses particulares e
partidários. Contudo, há nos corações e mentes de homens e mulheres sempre uma
fagulha de esperança de que é possível viver numa sociedade mais justa e menos
desigual. E é este sentimento que nos anima e nos move rumo a um futuro melhor.
Referências Bibliográficas
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São Paulo: Ática, 1995. vol. I.
[1] Nesse seu uso, que irá prevalecer na linguagem
filosófica, ethos é a transposição metafórica da significação original com que
o vocábulo é empregado na língua grega usual e que denota morada, covil ou
abrigo dos animais, donde o termo moderno Etologia, ou o estudo do
comportamento animal. A transposição metafórica de ethos para o mundo humano
dos costumes é extremamente significativa e é fruto de uma intuição profunda
sobre a natureza e sobre as condições de nosso agir (práxis), ao qual ficam
confiados à edificação e preservação de nossa verdadeira residência no mundo
como seres inteligentes e livres: a morada do ethos cuja destruição
significaria o fim de todo sentido para a vida propriamente humana.
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