segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

'A vida aqui é ruim de noite. Queria ter uma casa, um lugar pra ficar..."



 Ginaldo dos Santos, morador em situação de rua em Aracaju (SE)
Foto: Anderson Barbosa/G1 Sergipe.

 O barraco de dona Maria José fica em uma praça na Zona Sul da capital sergipana
Foto: Anderson Barbosa/G1 SE.

 Depois que a casa desabou, dona Maria José foi morar nas ruas de Aracaju (SE) 
Foto: Anderson Barbosa.



Os profissionais do "Consultório na Rua" atendem a população 
levando vários serviços, como serviços de médicos e psicológos.
 Foto: Consultório na Rua

Publicado originalmente no site G1/SE., em 20/12/2017 

'A vida aqui é ruim de noite. Queria ter uma casa, um lugar pra ficar, era melhor', diz morador de rua

Cerca de 200 pessoas vivem nas ruas de Aracaju (SE), segundo a prefeitura.

'A vida aqui é ruim de noite. Queria ter uma casa, um lugar pra ficar, era melhor', diz morador de rua 'A vida aqui é ruim de noite. Queria ter uma casa, um lugar pra ficar, era melhor', diz morador de rua

Por Anderson Barbosa, G1 SE, Aracaju

A poucas horas da abertura do Centro Comercial de Aracaju, o dia amanhece lentamente e revela uma cidade que muita gente nem imagina. Nas calçadas das lojas, sob as marquises, dezenas de pessoas despertam para mais um dia de luta. Segundo a prefeitura, cerca de 200 pessoas vivem em situação de rua na capital, longe das famílias, muitas desempregadas e com pouco estudo.

"A vida aqui é ruim de noite, porque pra dormir, tem muitos atentados, a pessoa dorme e não dorme, não vive. Eu queria ter uma casa, um lugar pra ficar, era melhor. Vim para Aracaju a procura de emprego, mas acabei ficando nas ruas", conta Ginaldo dos Santos, 49 anos, sergipano que há 10 anos saiu do município de Ilha das Flores, Região do Baixo São Francisco, a procura de trabalho, depois de perder o emprego em uma fazenda de arroz.

Longe do barulho do trânsito e do vai e vem das pessoas focadas nas compras, o senhor de olhar triste revela um desejo nas primeiras horas da manhã. "Bom é tomar um banho, né? Primeiro. Às vezes eu tomo banho outras vezes não. Hoje mesmo não tomei. É difícil", conta deixando escorrer lágrimas no rosto, enquanto permanece sentado na cama improvisada feita de papelão.

A conversa é interrompida por uma buzina. Uma senhora entrega uma quentinha, que é a primeira refeição do dia. “O povo aqui é muito solidário. Essa mulher vem todos os dias”, conta.

Quanto mais se entra nas ruas do comércio, mais pessoas são encontradas dormindo sobre o papelão, algumas usam plásticos para os dias de chuva, outras um lençol para as noites frias. Quem está acostumada a essa situação, nem mesmo os raios intensos do sol do Nordeste interrompem o sono de quem nem sempre tem uma noite e madrugada tranquilas.

Há três quilômetros dali, na rotatória do Posto Sinhazinha, na Zona Sul, caixas de papelão protegem tudo o que dona Maria Silva possui. A área cercada no meio da praça é sala, quarto, cozinha, tudo junto. Doações se espalham nos chão, são roupas, cadernos, livros. Tudo o que a flanelinha recebe fica por ali.

O barraco improvisado não tem teto. “Ontem, estava chuviscando. Aí joguei o papelão e botei por cima deles”, apontando para dois netos e a filha que passaram a noite anterior com a avó. E segue: “Eu morava no Parque dos Faróis, tinha uma casa, aí a casa caiu. Cheguei a ter auxílio moradia, mas perdi depois que fui morar na Bahia”, conta.

O trabalho da dona Maria começa quando o trânsito fica mais intenso. Com água, sabão e uma espécie de rodo, dona Maria Silva limpa os vidros dos carros, ganha sorrisos, moedas e proibições para não limpar o veículo, tudo em alguns minutos enquanto o sinal permanece fechado.

"Estou suja porque limpo vidro de carro, mas tem gente que discrimina, que pensa que a gente é ladrão. Não são todos que são ladrões, não é todo mundo que quer estar nessa vida. Eu queria ter uma vida digna para dar a meu neto uma casa, um teto, uma comida, um trabalho", desabafa.

Consultório das Ruas

Há pouco mais de dois anos, uma equipe do projeto Consultório nas Ruas, da Secretaria da Saúde de Aracaju, iniciou um trabalho com essas pessoas. Música e conversa se intercalam nos atendimentos das equipes que contam com vários profissionais, como assistente social, médico e psicólogo.

O médio Edney Vasconcelos explica que sair do consultório convencional e fazer o atendimento nas ruas é viver uma experiência desafiadora e ao mesmo tempo de aprendizado para o profissional, independentemente do tempo de atuação.

"A gente pensa que vai ser um ambiente violento, um ambiente perigoso. Pelo contrário, a gente é muito bem recebido. Afinal, quem é que não gosta de cuidado? Nas abordagens à noite, a gente já foi até protegido por alguns deles. Eles querem ser cuidados, ainda mais eles que estão em uma trajetória de invisibilidade. Eles querem ser visíveis", observa.

Edney conta que se depara com problemas de saúde que exigem atendimento rápido. “A gente vê muitos casos de infecções de pele, por exposição ao sol e a chuva. Inclusive temos casos de tuberculose. Estamos acompanhando mais de perto sete casos. O fato é que essa população tem 10 vezes mais chances de adquirir a doença e infecções respiratórias por conta da vulnerabilidade", justifica.

A psicóloga e coordenadora do Consultório nas Ruas, Kamila Fialho, destaca os motivos que levam a situação de rua . "É bem comum a gente encontrar pessoas que tiveram problema conjugal. Outro motivo são os transtornos mentais, os andarilhos que se perdem da família e acabam ficando na condição de rua”, explica.

Uso de drogas

O G1 Sergipe conversou com um homem de pouco mais de 30 anos, que trabalha como flanelinha na Região Cental de Aracaju, e há um mês está nas ruas. Ele conta que os entorpecentes foram os responsáveis por afastrar-se da família, que já ofereceu tratamento em casas de apoio, mas optou por unir-se a outros usários na ruas.

“Não sou o primeiro e nem vou ser o último, mas o crack tem complicado muito a vida, não só a minha, como a de muitos amigos que se encontram na mesma situação. E poucas pessoas entendem o nosso lado. Não sabem que isso é uma doença crônica, né?", diz, enquanto faz o café da manhã com doações de um grupo religioso.

O homem também revela que o maior desejo é livrar-se do vício. “Ainda hoje vivo nas drogas, tentando me segurar para não usar o crack. Maconha fumo todo dia, que é para tentar esquecer o outro lado, mas só que isso também é ilusão, né? Uma grande ilusão e eu não consigo largar o vício de jeito nenhum", justifica.

A psicóloga Kamila Fialho explica que eles transformam a droga em solução, acreditando que se não fizerem uso não vão resistir. “Um dos efeitos colaterais da droga é a resistência, é a coragem, é a agressividade. A gente tem um número altíssimo de pessoas nas ruas que fazem uso de alguma droga, lícita ou ilícita. Este é o nosso desafio na articulação com a saúde mental para ver como a gente pode reduzir o dano desse uso abusivo", relata.

Texto e imagens reproduzidos do site: g1.globo.com/se

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