quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Por que a desigualdade ainda persiste no Brasil


Publicado originalmente do site Nexo Jornal, em  25 Dez 2017 

Por que a desigualdade ainda persiste no Brasil, segundo este pesquisador Luiza Bandeira

Rafael Osorio, especialista em pobreza e desigualdade, afirma que dificuldade de ascensão social mostra que Brasil não é meritocrático

O IBGE divulgou, no dia 15 de dezembro, a “Síntese dos Indicadores Sociais”, pesquisa que analisa as condições de vida dos brasileiros. O levantamento mostra que, em 2016, o Brasil tinha 13,4 milhões de pessoas (ou 6,4% da população) vivendo em condição de extrema pobreza – com menos de US$ 1,90 (cerca de R$ 6) por dia, critério de análise adotado pelo Banco Mundial. 

A pesquisa mostrou também que a desigualdade social no Brasil persiste. De acordo com os dados, os brasileiros mais ricos, que se encontram no topo da pirâmide social, têm 14 vezes mais chances de continuar nessa posição do que pessoas mais pobres têm de ascender socialmente. A mobilidade social no Brasil, segundo a pesquisa, é de “curta distância”, ou seja, metade da população consegue melhorar de vida em relação aos pais, mas essa mobilidade está concentrada nos estratos mais baixos da população. São, por exemplo, filhos de agricultores que se tornam pedreiros ou empregadas domésticas.

“A pesquisa confirma uma coisa que a gente já sabe há muito tempo: o Brasil é uma sociedade muito pouco meritocrática”, afirmou em entrevista ao Nexo Rafael Osorio, coordenador sênior de pesquisa do Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG, na sigla em inglês) e pesquisador do Ipea. Leia abaixo trechos da entrevista, concedida por telefone.

A pesquisa mostra que mais de13 milhões de pessoas vivem em extrema pobreza no Brasil. Como interpretar esse dado, considerando os programas de proteção social? 

RAFAEL OSORIO O número é para a linha de pobreza de US$ 1,90 / dia, que é mais elevada do que o atual corte de elegibilidade para a extrema pobreza do programa Bolsa Família (PBF), o principal programa para a extrema pobreza no Brasil. O corte do PBF é de R$ 85 [por mês, por pessoa]; nesse corte, seriam por volta de 8,6 milhões os extremamente pobres. O ponto é que o PBF não é, nem nunca foi, suficiente para fazer as famílias saírem da pobreza apenas com o benefício. As famílias têm de contar com o trabalho de seus membros adultos. Esse trabalho costuma ser informal e precário, e a renda que dele advém é incerta e variável. O que o Bolsa Família faz é reduzir a incerteza, acrescentando uma fonte de renda estável para a família. Parte das famílias extremamente pobres continuava nessa situação, mesmo somando o benefício às rendas do próprio trabalho.

Embora o PBF de fato alivie a pobreza de muitas famílias e ajude outras a superá-la, o fato é que as linhas de ingresso do programa vêm se depreciando, assim como os valores dos benefícios. O PBF continua a ser uma fonte, mas não é possível mais consumir o tanto que se consumia antes. A boa notícia é que a maior parte dos extremamente pobres e pobres está no Cadastro Único.

 A coisa mais difícil para implementar um programa de pobreza é identificar os pobres, não errar muito e começar a fazer transferências para eles. O Brasil já tem tudo isso montado. Se o próximo governo decidir que, em vez de fazer Refis e perdoar dívida de ruralista, nós vamos fazer uma reforma da Previdência para acabar com aposentadoria de juiz acima do teto, e de funcionário público, e vamos usar o dinheiro para dobrar o Bolsa Família, em tamanho e benefícios, dá para fazer isso de um mês para o outro. A parte mais difícil da operação, que é montar isso, já está pronta. Temos uma desigualdade muito grande. A gente tem como tirar mais do andar de cima para dar para o andar de baixo. O que falta é vontade política para realmente enfrentar a pobreza, em vez de ficar tomando medidas que simplesmente reproduzam privilégios. 

A pesquisa do IBGE mostrou persistência na desigualdade de renda. Como a desigualdade de renda e a pobreza se relacionam no Brasil? 

RAFAEL OSORIO Uma anda junto com a outra. Estudos já mencionaram várias vezes que o Brasil não é propriamente um país pobre, mas é um país muito desigual. Há basicamente dois caminhos pra você resolver o problema da pobreza. Um é: a sociedade cresce. Você aumenta a renda, a renda de todo mundo aumenta, e pessoas saem da pobreza porque a renda está aumentando. Esse é o caminho do crescimento. E o outro caminho é o da redução da desigualdade. Como o Brasil é um país muito desigual, existe espaço para fazer transferências dos mais ricos para os mais pobres, mesmo sem não crescer muito. 

Nos últimos tempos, a redução da pobreza no Brasil ocorreu principalmente por conta do crescimento econômico, embora na última década tenha estado associada também com pequena queda da desigualdade. Daí a situação que a gente vive hoje: estamos enfrentando uma crise econômica, a pobreza está subindo. No Brasil, a pobreza tem respondido pouco às políticas, no geral, e respondido mais à dinâmica do crescimento econômico como um todo. 

E como isso se relaciona com a ascensão social?

RAFAEL OSORIO A pesquisa do IBGE confirma uma coisa que a gente já sabe há muito tempo: que o Brasil é uma sociedade muito pouco meritocrática, onde a mobilidade é essencialmente de curta distância. As pessoas não estão longe do seu status de origem, e os grandes estratos da base da pirâmide se diferenciam apenas entre o rural e o urbano. A ascensão está ligada ao processo de urbanização, industrialização e modernização. É a mobilidade estrutural, que ocorre porque a estrutura mudou. Quando se olha para empregadas domésticas e pedreiros, você percebe que muitos são filhos de trabalhadores rurais. Eles aparecem na pesquisa como exemplos de ascensão social. Mas isso não é porque a sociedade está mais aberta às trocas entre classes. Eles melhoraram de vida em alguma medida. Mas, do ponto de vista relativo, da pirâmide social, elas estão em posição que não é muito diferente da de seus pais, no passado. A sociedade foi muito aberta para que filhos de trabalhadores rurais se tornassem empregadas domésticas e pedreiros, mas não para que os filhos dessas famílias se tornassem médicos, advogados e engenheiros. Essa mobilidade não representa uma maior abertura da sociedade para trocas entre classes, que é o que você espera numa sociedade meritocrática. 

Isso é muito ruim, porque a grande promessa do liberalismo é que você teria uma desigualdade que seria justa, que funcionaria como um sistema de incentivo para que as pessoas se esforcem. Os médicos, por exemplo, ganham bem, mas têm de estudar muito. Eles merecem uma recompensa. O problema é que, no Brasil, a recompensa está muito além. Ela não está recompensando simplesmente esforço, mas ela está remunerando privilégios. 

Quando a gente vai ver em outros lugares do mundo, os países que têm menor desigualdade, como Holanda, Suécia, Dinamarca, Finlândia, são os países que têm menor desigualdade de oportunidades. Nenhum país do mundo é meritocrático de verdade, a origem social influencia todos eles, mas em alguns influencia menos. E quais são esses países? Os países onde em geral você encontra um sistema de ensino, principalmente para primeira infância, em que as pessoas sequer pensam em matricular os filhos em escolas privadas. Como as crianças passam por estímulos razoavelmente uniformes, determinados por uma política educacional, o Estado consegue contrapor de alguma forma a desvantagem que as crianças trazem de casa. Quando os indivíduos estão formados, você pode até adotar medidas compensatórias, mas é muito difícil você fazer com que isso seja redistributivo e não apenas compensatório.

 A pobreza no interior do Nordeste, por exemplo, é muito elevada. O Censo de 2010 mostra que, em áreas rurais de Alagoas, quase 40% da população com mais de 15 anos é analfabeta. Algumas pessoas dizem: vamos fazer inclusão produtiva, qualificação profissional. Mas como você faz isso com pessoas analfabetas ou analfabetas funcionais? Qual o material de curso, você vai dar alguma coisa para ela ler? E vamos dizer que fosse possível educar grande parte dos analfabetos adultos de Alagoas. Tem emprego no município onde eles moram? As soluções não são fáceis e imediatas. 

Em relação a políticas públicas, quais são as perspectivas em relação à pobreza no futuro?

RAFAEL OSORIO  As políticas sociais vão continuar sendo fundamentais por muito tempo. A gente pode ter momentos melhores, em que o Bolsa Família vai diminuir de tamanho, mas é uma despesa que a gente vai ter de continuar tendo. Essas famílias das quais a gente está falando têm uma capacidade limitada de se empregar, e quando estão ocupadas a ocupação é incerta, instável. O Brasil tem ido bem nos últimos anos, mas a gente tem de entender que vamos ter de fazer assistência social e transferência de renda ainda por muito tempo, porque é a solução que a gente tem para essas pessoas, porque não investimos nelas no passado. Algumas vão ter meios para superar essa condição, mas não todas. 

E educação é muito importante. É clichê, mas tem de investir em educação. Isso entra na esfera de uniformizar os estímulos. O período mais importante para definir o futuro das pessoas é o que acontece antes do seis anos de idade, onde a influência da família é muito grande. Quando eu falo com meu filho, passo para ele um vocabulário que ele vai encontrar, quando chegar à escola. O filho da família de baixa renda não necessariamente vai ter isso. Ele vai chegar numa escola cuja linguagem não é a que ele fala. Ele vai ter mais dificuldade de dominar essa linguagem, ele vai ter um percurso a mais que o outro já teve. 

Depois você tem de cuidar da trajetória. No Brasil a gente teve uma expansão do ensino superior, mas ainda é muito difícil que jovens de baixa renda completem o fundamental, façam a transição para o médio, da educação básica, obrigatória e gratuita.

Pense em uma pessoa que nasceu na fronteira do Piauí com o Maranhão. Se fosse um menino ou menina que tinha potencial para inventar a cura da Aids, nós o perdemos, porque essa pessoa não terminou o segundo grau, não terminou ensino médio, não vai para a faculdade. Nós estamos desperdiçando esse talento quando a gente permite que as estruturas que garantem os privilégios dos filhos do ricos se mantenham, e isso é ruim pra todo mundo, inclusive para os ricos.

Texto e imagem reproduzidos do site: nexojornal.com.br 

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