Em uma manhã de 1977, a Polícia Federal incinerou 3 mil
quilos de produtos culturais.
A lista é variada: dos filmes Spartacus e
Cleópatra a disco de
Caetano Veloso e desenhos dos Flintstones
Ilustração - João Brizzi
Publicado originalmente no site da revista Piauí, em 9 de novembro de 2017
Anais da Ditadura - A Grande Fogueira
Documentos inéditos mostram como o aparato de censura do
regime militar usou empresas privadas para queimar programas de tevê, filmes,
discos e livros proibidos – de Silvio Santos a José de Alencar
Por Mariana Filgueiras*
No dia 25 de janeiro de 1977, uma comitiva de intelectuais
liderada pela escritora Lygia Fagundes Telles desembarcou em Brasília para uma
reunião com o ministro da Justiça do governo Ernesto Geisel. Naquela
terça-feira, o grupo conseguiu pôr na mesa de Armando Falcão um abaixo-assinado
contra a censura, uma peça que ficaria conhecida como “Manifesto dos
Intelectuais”.
Com mais de mil signatários, entre eles Carlos Drummond de
Andrade, Jorge Amado e Otto Maria Carpeaux, o documento era a maior
manifestação pública da classe artística desde a Passeata dos Cem Mil, em 1968,
e repudiava “a sequência de inexplicáveis arbítrios” que proibiam peças de
teatro, filmes, músicas, programas de tevê e livros.
O manifesto foi encaminhado à Polícia Federal dois dias depois,
pelo próprio ministro, com a recomendação de que o órgão responsável pela
censura se manifestasse. Nunca houve resposta. Naquela mesma manhã,
funcionários do governo dedicavam-se ao exato oposto da atividade de abrandar a
repressão intelectual: eles queimavam toneladas de obras culturais em um forno
construído no Aeroporto Internacional de Brasília, a 15 quilômetros do local da
reunião.
A coincidência de eventos revelou-se numa tarde de outubro
deste ano, quando o historiador Lucas Pedretti pesquisava para sua dissertação
de mestrado sobre a repressão a bailes de soul music no Rio de Janeiro dos anos
70. Logado no sistema do Arquivo Nacional, ele se deparou com documentos
produzidos pela própria PF que comprovam a prática promovida pelo regime: são
dezoito autos de incineração registrados. Além do forno de Brasília, outro
forno de uma das empresas do grupo Votorantim também foi usado para transformar
filmes, livros e programas de tevê em cinzas.
“Às 10h do dia 27.01.77, foi cremado no incinerador do Aeroporto
Internacional de Brasília aproximadamente 3 000 kg de filmes, VT, revistas,
livros, fitas magnéticas e discos, conforme solicitação do Ministério da
Justiça – Departamento de Polícia Federal”, indica um dos autos de incineração
encontrados pelo historiador.
O documento traz a lista completa do que foi para a
fogueira: 436 filmes, desde clássicos como Spartacus, de Stanley Kubrick (1960)
e Cleópatra, de Robert Mamoulian (1963), a chanchadas e filmes B, como 007 1/2
no Carnaval, de Victor Lima (1966), com Chacrinha e Costinha no elenco, e O
Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968). Dos cinquenta videoteipes queimados
naquele dia, constavam desde gravações de programas de Silvio Santos, Hebe
Camargo e Flavio Cavalcanti, até shows completos de Elizeth Cardoso e Ray
Charles. Havia ainda 450 exemplares de O Pasquim e 71 discos contendo música
árabe.
A maioria dos livros incinerados tinha títulos eróticos e
populares como Chinesinha Erótica (21 exemplares), Cidinha, a Incansável (32) e
De Prostituta a Primeira Dama (16). Outras 204 peças eram volumes do livro O
Último Tango em Paris, de Robert Alley, inspirado no filme de Bernardo
Bertolucci, de 1972. No total, os 3 mil quilos de material compreendiam 2 854
itens.
“Os documentos são a comprovação cabal de que, além de
proibir a publicação e a circulação de livros, a ditadura militar brasileira
também os queimava usando fornos de aeroporto e de empresas privadas. Em alguns
casos, ainda os transformava em pastas de papelão”, citou Pedretti, enquanto
mostrava a documentação a uma de suas professoras, a historiadora Luciana
Lombardo, especialista em estudos sobre a censura no Brasil, num café do Largo
do Machado, no Rio de Janeiro. “Como os documentos disponíveis no Arquivo
Nacional representam uma parcela ínfima do que foi efetivamente produzido, é
provável que tenham sido muitos mais”, completou.
Pedretti debruçou-se sobre os documentos, produzidos à época
com o respaldo da Lei da Censura, mais especificamente pelo artigo 5o inciso II
(“A distribuição, venda ou exposição de livros e periódicos que tenham sido
proibidos, após a verificação prevista neste decreto-lei, sujeita os
infratores, independentemente da responsabilidade criminal, à perda de todos os
exemplares da publicação, que serão incinerados a sua custa”). Os autos
registrados na coleção encontrada pelo pesquisador foram cumpridos entre 1976 e
1988 no Distrito Federal, no Rio Grande do Sul, no Ceará e em São Paulo. Em
comum, tinham a descrição detalhada dos itens destruídos e o fato de usarem
também incineradores de empresas privadas.
Além do aeroporto, houve queimas de livros, revistas e
filmes entre 1977 e 1979 na Companhia de Papel e Papelão Pedras Brancas,
empresa hoje inativa que à época pertencia ao Grupo Votorantim e ficava no
município de Guaíba, no Rio Grande do Sul; na empresa Brasil Oiticica S/A, em
Fortaleza, em 1976 e 1977, também desativada; na Riopel S/A, em São José do Rio
Preto, em 1987; e na empresa Aparas São Caetano, assinado em Porto Alegre em
1988. Nesta última, os autos registram ainda a queima de documentos antigos da
censura (memorandos, ofícios de Justiça, correspondências e “laudos de exame de
material obsceno”) e até de figurinos de Carnaval.
“É outro dado que chama atenção: há autos de destruição que
datam de fins de 1987 até 1988. Ao mesmo tempo que as discussões da
Constituinte evoluíam, livros continuavam sendo queimados. Nesse caso, é
possível imaginar que a Censura, sabendo que um regime democrático estava
prestes a ser instalado, procedeu à destruição e queima de materiais
apreendidos em seus galpões”, arrisca Pedretti, lembrando que esses lotes
citados nos documentos eram resultados de apreensões feitas em distribuidoras,
editoras e emissoras de tevê.
“A informação contrasta com as narrativas que tentam afirmar
que a ditadura teria terminado em 1979, por exemplo. A Nova República nasceu
sob o signo da queima de livros. Para uma democracia, é uma marca difícil de
apagar. Pensando de forma mais ampla, isso mostra que o fim da nossa ditadura
não inaugurou um processo de reformas institucionais, prestação de contas e
transparência, pelo contrário: velhas práticas se reafirmaram, e no lugar de
investigações e pedidos de perdão por parte do Estado, tivemos o silêncio”,
analisa o historiador, que pretende levar a pesquisa adiante.
Os documentos apareceram enquanto Pedretti procurava o nome
do apresentador de tevê dos anos 60 e 70 “Flavio Cavalcanti” no acervo
digitalizado do Arquivo Nacional. Depois de trabalhar por três anos como
estagiário da Comissão Estadual da Verdade do Rio – órgão criado no governo
Dilma Rousseff para elucidar crimes ocorridos durante a ditadura, com
atividades encerradas em 2015 –, ele continuou pesquisando atos de arbítrio do
regime militar. Escolheu a repressão aos bailes de soul como tema para o
mestrado e deparou-se com o nome de Cavalcanti, monitorado por militares desde
30 de agosto de 1970 – quando levou ao seu programa o cantor Tony Tornado,
também fichado pelo regime.
“Tony havia sido levado ao Departamento de Ordem Política e
Social por evocar os Panteras Negras no palco do Festival Internacional da
Canção. Conhecendo essa história, pesquisei pelo nome do cantor e achei
inúmeros documentos, inclusive relatórios do Centro de Informações do Exército
e Centro de Informações da Aeronáutica (CISA) sobre uma ida dele ao programa do
Flavio Cavalcanti. Incluindo um relatório que termina com a recomendação de
censura a qualquer menção aos termos ‘raça’ e ‘racismo’. Ao aprofundar a
pesquisa a partir do nome de Cavalcanti, um dos documentos que apareceu foi precisamente
um ‘Termo de Incineração’, que informava a queima de videoteipes dos seus
programas de tevê.”
A partir deste primeiro, em que anotou o termo “Auto de
Incineração” e “Termo de Incineração”, Pedretti encontrou os outros documentos
ao buscar palavras semelhantes no sistema de informações do Arquivo Nacional,
onde estão abrigadas as coleções do fundo da Divisão de Censura de Diversões
Públicas. Fisicamente, os autos estão guardados dentro de 12 caixas na sede do
Arquivo, em Brasília.
Autora de uma tese de doutorado sobre livros apreendidos
pela polícia política no Rio de Janeiro e professora de História da PUC-RJ,
Lombardo ficou animada com os detalhes revelados na papelada. Como se desse uma
aula informal numa das mesas do café, ela lembrou que as fogueiras de livros
remontam principalmente à Inquisição e ao Nazismo – na noite de 10 de maio de
1933, integrantes do partido nazista queimaram 20 mil livros na praça conhecida
como Bebelplatz, em Berlim, onde hoje há um memorial para recordar o episódio –,
mas que também aconteceram nas ditaduras latino-americanas e na brasileira, com
características particulares.
“Esses documentos são fascinantes e confirmam algo que a
historiografia já discute há um certo tempo: a existência de uma prática
sistemática de destruição de livros no período. O fato de a ditadura brasileira
ter incinerado milhares de livros não faz parte de nossa memória coletiva sobre
o período pós-64”, afirmou Lombardo, comparando: “No Chile, sabemos da
existência de fogueiras públicas ao mesmo tempo que Pinochet alimentava com as
apreensões de livros sua biblioteca privada. Na Argentina, um dos crimes pelos
quais foi acusado o General (Jorge Rafael) Videla foi o de ‘genocídio
cultural’, por ter queimado 80 mil livros da biblioteca de Rosário, em 1977.
Mas aqui essas histórias ainda precisam ser mais conhecidas.”
Apesar de terem sido citados na historiografia brasileira,
autos de incineração como os descobertos por Pedretti foram objeto de poucos
estudos acadêmicos: a pesquisadora da USP Sandra Reimão cita documentos desse
tipo em seu livro Repressão e Resistência: Censura a Livros na Ditadura
Militar, de 2011; Douglas Marcelino, da UFRJ, também trata desses autos em sua
dissertação de mestrado “Subversivos e pornográficos: censura de livros e diversões
públicas nos anos 1970”, também de 2011; e Adriane Piovezan e Antonio Fontoura
Jr. os citam no artigo “Corpos censurados: moralismo no período da ditadura
civil-militar e a literatura de Cassandra Rios”, de 2013. Os trabalhos, no
entanto, não enveredam pelos detalhes de cada sessão de incineração, como os
usos de fornos de empresas e aeroportos para a queima, informação que pode ser
crucial em novas investigações sobre as relações entre a ditadura militar e
empresas privadas.
Nos autos de incineração cumpridos em 1976, a lista de
livros queimados repetia o padrão: a maior parte dos títulos era de literatura
erótica (Emanuelle, a Antivirgem, Maldição Erótica, Belas e Corrompidas, entre
outros), mas havia ainda Lucíola, de José de Alencar; Feliz Ano Novo, de Rubem
Fonseca; ou O Abajur Lilás, de Plínio Marcos. No dia 16 de junho de 1976, foram
incinerados nos fornos da mesma Companhia de Papel e Papelão Pedras Brancas, em
Guaíba, 36 capas do disco Jóia, de Caetano Veloso, em que ele aparecia nu com a
mulher, Dedé, e o filho, Moreno Veloso.
“Havia uma verdadeira obsessão censória com o tema da
sexualidade, como demonstrou Deonísio da Silva ainda nos anos 80, no livro Nos
Bastidores da Censura. Um profundo moralismo e conservadorismo nos costumes levava
a constantes denúncias na Divisão de Censura de Diversões Públicas, porque
havia a crença de que a chamada literatura ‘obscena’ ameaçaria a ordem política
e social tanto quanto a literatura ‘subversiva’”, avaliou Luciana. “Longe do
cânone e mais próxima de uma literatura marginal, essa produção literária era
sobretudo feminina e popular, peça importante para a compreensão da sociedade
brasileira na época.”
A historiadora cita Robert Darnton, diretor da biblioteca de
Harvard, que estudou o papel desse tipo de literatura no Ocidente,
especialmente na França pré-revolucionária. “A literatura erótica é importante
porque desafia os costumes da época, a moral religiosa e, no limite, os poderes
instituídos. Darnton mergulha no que ele chama de ‘submundo das letras’ para
mostrar como os livros proibidos publicados por autores e editores malditos
eram mais conhecidos que iluministas como Rousseau ou Voltaire. Livros
‘pornográficos’, libelos políticos, obras contrárias à religião, biografias
escandalosas e escritos utópicos circulavam de forma clandestina e se tornaram
os livros mais vendidos da França no século XVIII”, explicou.
Procurado pela piauí, o Grupo Votorantim, que tem um centro
de memória da empresa em São Paulo, alegou desconhecer o que se passava na fábrica
de Guaíba, apesar de os documentos mostrarem que a prática se repetiu por três
anos seguidos (1977, 1978 e 1979). Em nota oficial, o setor de Comunicação da
empresa informou: “Nunca houve conhecimento por parte da direção da empresa
desse fato relatado em relação à fábrica de Guaíba. A Votorantim lamenta
profundamente essa postura da planta em Guaíba, pois ela contraria os seus
valores. A companhia, inclusive, foi protagonista da primeira manifestação
pública de empresários contra o regime militar, em 1978. Naquela ocasião, o Dr.
Antônio Ermírio de Moraes foi o porta-voz do ‘Manifesto dos 8’ – documento
assinado por oito empresários, entre eles Cláudio Bardella, José Mindlin, Paulo
Villares, Jorge Gerdau e Severo Gomes, e que pedia a redemocratização do país.”
Questionada, a empresa afirmou que vai incluir em seu centro de memória as
informações sobre a queima de filmes e livros na antiga fábrica de papel do
grupo.
A Infraero afirmou que não tem mais registros sobre a
prática citada. Em relação aos incineradores, a empresa informou que de fato
aeroportos antigos contavam com este tipo de equipamento para “tratamento de
resíduos de risco biológico e químico”, mas que todos foram desativados “por
não atenderem mais aos parâmetros evolutivos da legislação”.
Enquanto pedia mais um café, a historiadora Lombardo lembrou
de uma frase do escritor argentino Julio Cortázar, ao comentar as fogueiras de
livros da ditadura em seu país: “Ele dizia que quando se queimam livros, são
queimados também todas as pessoas que cercam os livros, ‘os leitores desses
livros e aqueles que os haviam escrito’. A prática arbitrária de destruição de
livros não se limita a cercear a livre circulação de ideias, mas indica um
desejo de destruir o outro, eliminar registros dissidentes”, detalhou a
professora, fazendo um paralelo com as recentes manifestações contra exposições
artísticas e nudez no país.
“O que esses documentos mostram é sobretudo a inutilidade da
censura e da interdição moralista que costuma criar efeitos opostos aos desejados
pelos censores: uma vez proibidas, as obras de arte e literárias se tornam
ainda mais desejadas e encontram caminhos criativos para seguir circulando.” A
historiadora relembra ainda a distopia descrita por Ray Bradbury no romance
Fahrenheit 451, de 1953, adaptado para o cinema por François Truffaut em 1966,
e que descreve uma sociedade na qual os livros eram completamente proscritos.
Numa das cenas do filme – que não figura em nenhum dos autos de incineração
encontrados no Arquivo Nacional –, uma personagem pergunta a um sujeito que tem
por ofício incinerá-los: “É verdade que houve um tempo em que se apagavam
incêndios em vez de queimarem livros?”
Texto e imagem reproduzidos do site: piaui.folha.uol.com.br
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