Publicado originalmente no site Conjur, em 28 de agosto de 2016
"Com poderes harmônicos, o Judiciário não precisa se
imiscuir em questões políticas"
Em transição entre a toga de magistrada e a beca de
advogada, a ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça Eliana Calmon critica o
corporativismo do Judiciário, dispara contra os que atacam a "lava
jato" e classifica como preocupante a tentativa de "cortar as
asas" do Ministério Público.
Agora como titular de um escritório de advocacia em
Brasília, ela tornou-se juíza federal em 1979. Integrou o Tribunal Regional
Eleitoral da Bahia, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região e, em 1999, chegou
ao Superior Tribunal de Justiça, quando se tornou a primeira mulher a ocupar
uma cadeira na corte.
De 2010 a 2012, foi corregedora nacional de Justiça, quando
ficou conhecida como a ‘Xerife do Judiciário’ em uma jornada sem tréguas pela
defesa de investigações contra magistrados.
Nacionalmente conhecida à época de sua passagem pela
Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça, pela investida contra desvios
atribuídos a juízes e como autora da famosa frase sobre a existência de
"bandidos de toga", a jurista, em entrevista ao jornal O Estado de S.
Paulo, criticou os ataques do ministro Gilmar Mendes aos integrantes da
investigação.
"Nós temos um exemplo que não é muito antigo de que isso
é um ponto que é forjado para fazer barrar a atuação da Justiça. Quando os
órgãos incumbidos da investigação começam a se atacar mutuamente. Isto é algo
que para um sociólogo não é para estranhar. É algo previsto no cardápio de
ataque frontal ao bom resultado do poder Judiciário", afirma.
Leia a íntegra da entrevista concedida ao jornal O Estado de
S. Paulo:
Como é trocar a toga de magistrada para vestir a beca dos
advogados?
Eliane Calmon — Pelo meu temperamento e forma de agir é
praticamente a mesma coisa. Estou na defesa dos interesses daqueles que
precisam da Justiça. Seja como julgadora, na parte da imparcialidade absoluta,
seja como advogada quando sou parcial pois escolho o lado que quero ficar.
Recuso muitos clientes, até clientes que pagam muito bem, mas não aceito
participar se entendo que a parte não tem direito.
Como magistrada ou advogada a sra. enfrentará uma Justiça
que ano passado ganhou 28 milhões de novos processos. É possível funcionar um
Judiciário assim?
Eliane Calmon — Não há condição de funcionar bem. Aí é que
começamos a nos preocupar com sistema de correção nos julgamentos. Porque os
processos são tão numerosos que os juízes não podem se dedicar a um exame mais
detalhado dos processos. Um desembargador do TRF-1 me disse que 'são tantos
agravos chegando para resolver problemas processuais que não consigo julgar em
tempo real. Só julgo quando o advogado pede'. Por dia. chega uma média de 12 a
15 agravos de forma que ele recebeu um gabinete com 18 mil processos e não
consegue dar conta. Quanto mais julga, mais chega processo.
A sra. percebe o Judiciário, além de inchado, atuando além
de suas funções? Atuando em searas do Legislativo e do Executivo?
Eliane Calmon — Eu entendo que esse ativismo judicial é
próprio do modelo constitucional. A Constituição de 1988 veio estabelecer um
Judiciário com ativismo, no sentido de julgar de acordo com a Constituição e os
princípios constitucionais. Muitas vezes não existe jurídica para o caso, mas o
Judiciário está com um problema para resolver. Hoje, o juiz precisa estar
antenado com a realidade social, ele tem que resolver os conflitos para terem
eficácia nessa realidade e não dar uma decisão e descumprir-se porque a lei
assim determina. Nós precisamos ter os poderes harmônicos para cada vez mais o
Judiciário não precisar se imiscuir nessas questões políticas.
Quatro anos após sair da Corregedoria, acha que melhorou o
combate a desvios no Judiciário?
Eliane Calmon — Não, continuou tudo no mesmo. Posso até
dizer que houve um avanço do corporativismo dentro do Judiciário. Porque hoje o
que se fala é que se quer fazer dentro do CNJ um órgão que seja um conselho
estadual de Justiça, formado pelos presidentes dos tribunais. De tal forma que
só chegue ao CNJ o que passar pelo crivo desse conselho. De forma que nessa
questão de investigar juiz, isso piorou muito.
Vê na "lava jato" um bom exemplo de atuação do
Judiciário?
Eliane Calmon — Acho que sim. Acho porque hoje o Judiciário
tem meios suficientes para resolver isso. Mas não é a lei que faz essa atuação
fantástica. Houve também por parte do Ministério Público um empenho muito
grande, dos novos procuradores, de fazer valer estas leis e darem elementos suficientes
para que houvesse a atuação da Justiça. De forma que temos hoje a combinação de
elementos valiosos: a Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça com
instrumentos muito modernos.
Há um clima beligerante entre integrantes do STF e a
PGR/"lava jato" por causa de uma suposta citação a um ministro da
corte. A sra. acha que a "lava jato" corre risco se tentar investigar
o Judiciário?
Eliane Calmon — Muitas investigações são barradas quando
chegam ao Judiciário, por esta proteção jurídica em relação aos magistrados e
por uma proteção do próprio órgão: o corporativismo. Hoje, a magistratura está
com um pouco de consciência em relação a necessidade de prosseguirmos uma
investigação contra o magistrado. Haja vista a própria manifestação da AMB
[Associação dos Magistrados Brasileiros]. Porque a magistratura foi colocada em
um patamar de altivez pela atuação do juiz Sergio Moro. Nós magistrados estamos
tão satisfeitos e tão felizes que a sociedade, hoje, admira. Não queremos que
isso venha a desaparecer. O outro ponto é essa vigília cívica da população que
não está perdoando e está de olho para fiscalizar tudo o que acontece no
Judiciário.
Esse clima beligerante é correto?
Eliane Calmon — Nós temos um exemplo que não é muito antigo
de que isso é um ponto que é forjado para fazer barrar a atuação da Justiça.
Quando os órgãos incumbidos da investigação começam a se atacar mutuamente.
Isto é algo que para um sociólogo não é para estranhar. É algo previsto no
cardápio de ataque frontal ao bom resultado do poder Judiciário. Talvez por um
descuido de quem faz as acusações, por não ver o problema como um todo. Mas sem
dúvida alguma, faz parte de um cardápio de ataque. E eu vejo com preocupação,
sim, sem dúvida alguma. A operação mãos limpas, na Itália, foi assim. Quando
começaram a haver ataques, as instituições começaram a se digladiar e o Poder
Legislativo começou a tomar posições contra a legislação que eles mesmos
aprovaram. Hoje temos em tramitação projetos de lei que fazem flexibilizar
algumas conquistas populares, como a Ficha Limpa e a de leniência para
empresas. E tentam voltar com a Lei do Abuso de Autoridade. E aquela que está
querendo diminuir os poderes do Ministério Público que foram dados na
Constituição de 1988. Alguns parlamentares e magistrados também afirmam que é
preciso cortar as asas do Ministério Público. Eu vejo com muita preocupação.
Texto e imagem reproduzidos do site: conjur.com.br
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