Madeira de extração ilegal apreendida em abril pelo Ibama Terra Indígena (TI) Pirititi,
no sul de Roraima. (Foto: Felipe Werneck/IBAMA)
Publicado originalmente no site Brasil El País, em 19 de dezembro de 2018
A esquerda que não sabe quem é
Como deixar de apenas reagir, submetendo-se ao ritmo imposto
pela extrema direita no poder, e passar a se mover com consistência, estratégia
e propósito?
Por Eliane Brum *
A violência dos últimos anos, que culminou nas eleições de
2018, tampou os ouvidos para o que poderia ser considerado o outro lado. Os
gritos acusavam a impossibilidade de votar em Jair Bolsonaro (PSL) depois de
ouvir o discurso de ódio que ele pregava. Gritou-se até quase acabar a voz. O
fato é que a maioria dos eleitores que escolheu um dos candidatos escolheu
Bolsonaro, e ele está eleito e já começou a governar desde o dia seguinte ao
segundo turno, embora só assuma oficialmente em janeiro. Desde então, ou mesmo
muito antes disso, os grupos que se opõem a Bolsonaro se limitam a reagir. A
cada declaração, a cada ministro, a cada indício de corrupção amontoam-se mais
gritos. É necessário reagir. Mas só reagir é exaustivo. Como o espaço público
está saturado de gritos, a reação se esgota em si mesma. Numa época em que se
vive de espasmo em espasmo, cada vez mais rápidos, o que parece movimento com
frequência é paralisia. A paralisia do tempo da velocidade cria a ilusão de
movimento exatamente porque é feita de espasmos. Como parar de apenas reagir e
se mover com consistência, estratégia e propósito?
Quero propor uma conversa. Ou talvez duas. A esquerda foi
demonizada pela turma do Bolsonaro, do MBL (Movimento Brasil Livre), do Olavo
de Carvalho e outras. Para uma parte da população, virou tudo o que não presta,
seja lá o que for. Às vezes esquerda e comunismo e marxismo viram uma coisa só
no discurso repetitivo e feito para a repetição. E essa coisa que viram pode
ser qualquer coisa que alguém diz que é ruim. A reação daqueles que se
identificam com a esquerda é acusar os que estimulam esse desentendimento, aqui
no sentido de não entender mesmo do que tratam os conceitos, de manipuladores e
de desonestos. E com frequência é isso mesmo que são. Mas se fosse só isso
seria mais fácil.
O problema é que está muito difícil saber o que a esquerda
é. E o que a esquerda propõe que seja claramente diferente da direita. O PT se
corrompeu no poder. É um fato. Pode se discutir bastante se o PT é um partido
de esquerda. Eu, pessoalmente, acho que foi de esquerda só até a Carta ao Povo
Brasileiro, durante a campanha de 2002. Outros encontram marcos anteriores de
rompimento com um ideário de esquerda.
Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante
quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana
Para o senso comum, porém, o PT é um partido de esquerda.
Não só é como foi a principal experiência de um partido de esquerda no poder da
história da democracia brasileira. Logo, não se corromper no poder, fazer
diferente da velha política conservadora, já não é uma diferença da esquerda
para a população. Negar que o PT se corrompeu no poder é quase tão delirante —
ou mau caráter — quanto negar o aquecimento global provocado por ação humana.
Garantir o emprego e os direitos trabalhistas poderia ser
uma outra diferença visível, mas o desemprego voltou a crescer e os direitos do
trabalhador começaram a ser cortados já no governo de Dilma Rousseff, a última
experiência que a população teve de um governo de esquerda. A reforma agrária
poderia ser outra diferença, mas ela não avançou de forma significativa no
governo de esquerda. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que
hoje está sendo criminalizado pelo governo de extrema direita, se domesticou
quando o PT estava no poder. O mesmo aconteceu com grande parte dos movimentos
sociais, que viraram governo em vez de continuar sendo movimentos sociais, o
que teria sido importante para garantir a vocação de esquerda do partido no
poder. Esta, aliás, é uma história que precisa ser melhor contada.
Também nos governos do PT foram fortalecidos os laços com a
bancada ruralista, que foi ganhando cada vez mais influência no cotidiano do
poder, e se iniciou um claro projeto de desmantelamento da Funai (Fundação
Nacional do Índio). Não é permitido esquecer nenhuma palavra de Gleisi Hoffmann
atacando a Funai, quando era ministra da Casa Civil de Dilma Rousseff, assim
como não é permitido esquecer nenhuma palavra da ruralista Kátia Abreu,
ministra da Agricultura de Dilma, sobre as terras indígenas.
Não custa lembrar que, segundo a Constituição de 1988, as
terras indígenas são públicas, de domínio da União, mas de usufruto exclusivo
dos indígenas. Toda a articulação para enfraquecer a Funai, até hoje, entre
outras várias ações, tem por objetivo mudar a Constituição e abrir as terras
indígenas para exploração e lucros privados.
Lula chegou a dizer, em 2006, que os ambientalistas, os
indígenas, os quilombolas e o Ministério Público eram entraves para o
crescimento do país. Dilma foi a presidente que menos demarcou terras
indígenas. A lei antiterrorista, que pode ser piorada e usada para criminalizar
ativistas e movimentos sociais no governo de Bolsonaro, foi sancionada por ela.
Nenhuma dessas ações e omissões podem ser relacionadas com um ideário de
esquerda, pelo menos de uma esquerda que mereça esse nome.
Os governos de Lula e de Dilma reeditaram na Amazônia uma
versão das grandes obras da ditadura militar, com hidrelétricas como Jirau e
Santo Antônio, estas ainda no tempo de Marina Silva como ministra do Meio
Ambiente, no rio Madeira; Teles Pires, no rio Teles Pires; e Belo Monte, no rio
Xingu. E só não houve (ainda) as grandes hidrelétricas no rio Tapajós por conta
da resistência do povo indígena Munduruku e dos ribeirinhos de
Montanha-Mangabal. O complexo hidrelétrico no Tapajós foi temporariamente
suspenso também pelo enfraquecimento do governo no processo do impeachment,
pela desestabilização das empreiteiras pela Operação Lava Jato e pela
desaceleração das exportações de matérias-primas para a China.
Nos governos do PT, comunidades urbanas pobres foram
expulsas de suas casas para as obras superfaturadas da Copa e da Olimpíada,
assim como povos da floresta foram arrancados de suas ilhas e beiradões para a
construção de hidrelétricas. Foi também nos governos do PT que a Força Nacional
foi usada para reprimir greve de trabalhadores na construção de Belo Monte e
também reprimir protestos da população atingida contra a hidrelétrica.
No enfrentamento da questão das drogas, o governo Lula
agravou ainda mais os problemas. A chamada Lei de Drogas, sancionada em 2006, é
apontada como uma das causas do aumento do encarceramento de jovens e negros,
assim como de mulheres, por pequenas quantidades de substâncias proibidas. Além
de acentuar o horror do sistema prisional brasileiro, ainda fortaleceu a
desastrosa política de “guerra às drogas”, comprovadamente falida. O Brasil
perdeu uma oportunidade histórica de alinhar-se com as políticas públicas mais
eficientes já testadas em outros países do mundo.
No final do governo de Dilma Rousseff, até mesmo os melhores
projetos construídos nos governos do PT, os claramente de esquerda, como na
área da saúde mental, começaram a ser desmanteladas para tentar salvar a
presidenta ameaçada de impeachment. Espero que ninguém tenha esquecido que as
salas da Coordenação de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da
Saúde foram ocupadas por pacientes e trabalhadores da rede pública em protesto
contra a nomeação de um diretor de manicômio para a área. A luta antimanicomial
é claramente uma bandeira ligada à esquerda.
Se a esquerda quiser se mover, é preciso enfrentar as
contradições do PT no poder
A lista pode continuar. Mas acredito que já está de bom
tamanho para expor aquilo que acho importante afirmar se quisermos compreender
esse momento tão delicado. De forma nenhuma eu entendo que o governo do PT foi
igual aos anteriores, muito menos que seja parecido com o governo de extrema
direita que já começou.
O avanço nas cotas raciais, a ampliação do acesso ao ensino
superior, a expansão do Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo, a
consequente redução da miséria e da pobreza mudaram o país. Já escrevi bastante
sobre isso e me posicionei com bastante clareza nestas eleições. Mas não é
permitido desviar das contradições. É necessário caminhar com elas e enfrentar
as complexidades se a esquerda quiser se mover — e não apenas reagir e reagir.
E reagir de novo.
O que afirmo é que a última — e em certa medida única —
experiência de esquerda que marca a memória da população foi construída pelos
governos do PT. E que as diferenças não são suficientes para que a população
possa compreender um projeto de esquerda. Como o cérebro humano em geral
recorda e torna totalizante o que vem por último, a diferença de um governo de
esquerda para qualquer outro fica ainda mais nebulosa. É possível que, no
futuro, quando for um passado mais distante, os anos de Lula ganhem os tons da
nostalgia.
Mas não agora. Logo na sequência, os anos de melhoria de
vida determinadas por políticas públicas vão sendo apagados pelas dificuldades
imediatas num país formado em sua maioria por sobreviventes com medo de perder
o que ainda têm. A vitória de Fernando Haddad (PT) sobre Bolsonaro no Nordeste
mostra justamente que, nos estados mais pobres do país, a maioria entendia
muito claramente qual era a diferença. Mas essa diferença, marcada por
políticas públicas como o Bolsa Família, não teve o mesmo impacto nas demais
regiões de um país gigante, desigual e culturalmente diverso.
Uma das chaves para compreender por que Lula ocupava um
primeiro lugar folgado nas pesquisas pré-eleitorais para a presidência, em
2018, antes de sua candidatura ser impedida pelo judiciário, também aponta para
algo importante. O Brasil cheio de potência da primeira década do século está
intimamente ligado à figura de Lula, que terminou o segundo mandato com quase
90% de aprovação — e não está ligado ao PT e à esquerda, ou está muito menos
ligado ao PT e à esquerda. Também nisso não se fez diferente da extrema direita
populista.
O tratamento de eleitores como adultos infantilizados – e
não como cidadãos emancipados – é uma conta alta que o PT e toda a esquerda
estão pagando agora
A relação de Lula com os eleitores, em especial a partir do
segundo mandato, foi populista e paternalista. Os eleitores não eram tratados
como cidadãos autônomos, que conferiam ao governante um mandato de poder
temporário, que seria rigorosamente fiscalizado por eles, mas sim filhos a quem
um pai afetuoso concedia agrados. Foi também como “mãe do PAC” ou “mãe dos
pobres” que Dilma foi apresentada na primeira eleição, embora não tenha
funcionado graças ao desconforto louvável que ela sentia com o figurino.
O tratamento de eleitores como adultos infantilizados — e
não como cidadãos emancipados — é uma conta alta que o PT e toda a esquerda
estão pagando agora. O PT tem grande responsabilidade em converter direitos em
concessões ou favores no imaginário popular, o que marca o pior da política.
Não me parece, portanto, que a demonização da esquerda seja
apenas conferida pela manipulação articulada pela extrema direita e também
resultado da ignorância de grande parte da população sobre conceitos básicos.
Em parte, sim. Mas há algo concreto, factual e legítimo, embora nem sempre
claro, na reação de parte da população contra a esquerda. Se você não consegue
ver a diferença entre os projetos e a sua vida está ruim, o culpado é quem
estava no governo. E o PT esteve no governo por mais de 13 anos. Se você não
consegue ver diferença, esquerda é o nome de tudo o que você odeia.
É óbvio que esse sentimento é manipulado pelos grupos que
disputam o poder, mas isso não significa que não exista lastro, experiência e
racionalidade nessa interpretação. Todos têm direito a querer uma vida melhor e
todos sabem qual é a vida que estão vivendo.
A eleição de Bolsonaro mostrou que a esquerda não convenceu
a maioria dos eleitores de que pode mudar sua vida para melhor. Então muita
gente preferiu tentar algo extremo, porque o desamparo é grande. E como a vida
no Brasil está ruim mesmo, é catártico poder culpar alguém por todas as merdas
que acontecem no seu dia, assim como pela imensa sensação de fracasso e de insegurança.
A esquerda — ou o comunismo ou o marxismo — virou esse nome para tudo o que não
presta, já que não dá para saber o que ela é e o que propõe de fato.
Quando se exige uma autocrítica do PT é exatamente porque
sem ela não é só o PT que não avança, mas todo o campo da esquerda que foi
identificado com o PT, com ou sem razão. Como o PT usa inúmeras justificativas
para não fazer autocrítica, o que me parece não só desrespeito aos eleitores,
mas também um tremendo equívoco político, nada avança. Se você não pode falar
sobre o que errou, e que todo mundo viu que errou, como alguém vai acreditar em
seus acertos?
Como o PT é a experiência de esquerda que a população viveu,
a autocrítica é fundamental para que a esquerda possa construir um outro
projeto para o país
A credibilidade se dá também pela coragem de assumir os
erros cometidos e de ter respeito suficiente pelo voto de quem o elegeu para
debater seus equívocos publicamente. Quando insisto na autocrítica do PT não
estou preocupada com o futuro do partido, mas sim com a necessidade de a
esquerda ser capaz de criar um projeto que mostre a sua diferença. Como o PT é
a experiência de esquerda que a população viveu, a autocrítica é fundamental
para que a esquerda possa construir um outro projeto. Autocrítica não como
expiação cristã, mas como dever democrático, compromisso público com o público.
No início de dezembro, durante uma palestra na Universidade
de Londres, a ativista Bianca Jagger afirmou que o movimento que confronta a
ditadura de Daniel Ortega, na Nicarágua, não é de esquerda ou de direita. Os
manifestantes, muitos deles estudantes, “walk for life”. Esta é possivelmente a
interpretação acurada da ativista sobre movimentos que se caracterizam por não
serem marcados por uma coesão ideológica. Mas é também uma resposta à
estratégia dos apoiadores do regime de opressão.
Daniel Ortega e Rosario Murillo, sua mulher e
vice-presidente, assim como seus partidários e parte da esquerda mundial tentam
vender à opinião pública internacional a ideia de que Ortega estaria sendo
atacado por um complô de direita. O problema da teoria conspiratória é que
Ortega não tem mais qualquer resquício de identificação com um projeto de
esquerda há vários anos. Mas essa parcela da esquerda, corroída e ultrapassada,
finge não saber disso e insiste em contornar os fatos porque eles mancham seus
heróis e suas revoluções.
As ditaduras de Daniel Ortega e Rosario Murillo, na
Nicarágua, e de Nicolás Maduro, na Venezuela, colaboram bastante para que as
diferenças entre esquerda e direita sejam apagadas. Há muitos anos Ortega traiu
a revolução sandinista e qualquer ideário de esquerda e está fortemente
conectado ao que há de pior na direita. Da mesma forma, Maduro não pode ser
considerado um democrata de esquerda por várias razões, uma delas a de matar e
prender opositores de um regime que há muito deixou de ser uma democracia.
Essa esquerda apodrecida, que morre abraçada com ditadores e
não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada
Parte da esquerda mundial, dos partidos que se dizem de
esquerda e dos intelectuais que se dizem de esquerda, porém, simplesmente
ignora os fatos ou torce as evidências para defender o indefensável. Como
afirmar então que a população é que é ignorante e não consegue compreender a
diferença entre esquerda e direita? Se a esquerda não se dá o respeito, a
esquerda não merece respeito. Essa esquerda apodrecida, que morre abraçada com
ditadores e não consegue admitir que se corrompeu, precisa ser superada. Essa
esquerda que já não é está atrapalhando a esquerda que quer ser.
Há muita gente, de diferentes matizes ideológicos,
defendendo que “essa coisa de esquerda e direita acabou”. Não é minha posição.
Pelo contrário. Acho mais urgente do que nunca a criação de um projeto de
esquerda para o Brasil, uma visão de esquerda para um dos países mais
culturalmente diversos do mundo. Um projeto criado junto com os vários povos
brasileiros, porque uma das diferenças da esquerda é criar junto, como num dia
longínquo o PT fez com o orçamento participativo de cidades como Porto Alegre.
Em artigo no The Intercept, a cientista social e antropóloga
Rosana Pinheiro-Machado escreveu sobre o que tem chamado de “revoltas
ambíguas”. Aquelas que não se definiriam por estar alinhadas com a esquerda ou
com a direita, como aconteceu nas manifestações de 2013, com a greve dos
caminhoneiros, em 2018, no Brasil, e acontece agora com os “coletes amarelos”,
na França. Tentar enquadrá-las como de esquerda ou de direita é um equívoco:
“Fruto da crise econômica de 2007 e 2008, as revoltas
ambíguas são um fenômeno que veio para ficar. Elas são uma resposta imediata do
acirramento de austeridade do neoliberalismo do século 21, marcado pela
crescente captura dos estados e das democracias pelas grandes corporações. Se o
neoliberalismo flexibiliza as relações de trabalho e, consequentemente, as
formas de fazer política sindical, atuando como uma máquina de moer
coletividades, des-democratizar, desagregar e individualizar, os protestos do
precariado tendem a ser desorganizados, uma vez que a esfera de politização
deixa de ser o trabalho, mas ocorre de forma descentralizada nas redes sociais.
Os protestos ocorrem mais como riots (motins) para chamar atenção. Eles nascem,
muitas vezes, de forma espontânea e contagiosa, sem grande planejamento
centralizado e estratégico, expressando um grande sentimento de revolta contra
algo concreto vivenciado em um cotidiano marcado por dificuldades. São um grito
de ‘basta”.
Ao voltar a entrevistar os jovens que participaram dos
“rolezinhos”, em 2016, Rosana e a antropóloga Lúcia Scalco constataram que
parte deles virou “bolsominion”, nome pejorativo dado aos seguidores de
Bolsonaro. Outra parte aderiu a lutas mais identificadas com a esquerda, como
contra o machismo, contra o racismo e contra a homofobia. Mas os rolezinhos não
eram um movimento de a esquerda ou de direita quando aconteceram, como ficou
claro, embora tivessem uma expressão política. “Direita e esquerda são os polos
para onde as rebeliões ambíguas podem pender. São, portanto, uma disputa, um
fim. (...) Isso significa que a ambiguidade não é um lugar no qual conseguimos
nos manter por muito tempo”, escreveu Rosana.
Parte dos pensadores de esquerda decidiu parar de pensar com
medo de enfrentar as contradições da experiência concreta de poder
Se a ambiguidade é uma marca das revoltas recentes no Brasil
e no mundo, me parece que o desafio não está em superar os conceitos de
esquerda ou de direita, mas sim de atualizar os conceitos de esquerda e de
direita, exatamente para que as pessoas consigam estabelecer as diferenças. Não
são os conceitos que estão ultrapassados, mas muitos dos pensadores de esquerda
é que decidiram parar de pensar, com medo de enfrentar as contradições, e se
blocaram em significados de um mundo que já não é. O pensador só é vivo
enquanto continuar pensando e se pensando. O que estanca, paralisa, é dogma.
Há um enorme risco quando tudo se confunde, como hoje. Se os
limites entre esquerda e direita são borrados, como fazer escolhas
consistentes? Como criar um projeto se você não consegue dizer claramente nem
mesmo aquilo que não é?
No caso dos “coletes amarelos”, na França, há um ponto que
também vale a pena prestar atenção, como assinalaram alguns analistas. Como se
sabe, o presidente francês, Emmanuel Macron, colocou um “imposto ecológico”
sobre os combustíveis, causando revolta naqueles que dependem deles para trabalhar.
A taxação de combustíveis fósseis é uma das medidas importantes para enfrentar
as mudanças climáticas provocadas por ação humana, que podem destruir o planeta
e nossa vida nele, assim como a das outras espécies, se não forem tomadas
medidas urgentes.
O aumento dos combustíveis seria um dos vários passos em
direção ao compromisso da França de reduzir as emissões de carbono em 40% até
2030 e proibir a venda de veículos a gasolina e a diesel até 2040. Aumentar o
preço do carbono tem sido apontado por alguns economistas como uma ferramenta
essencial para manter o aquecimento global abaixo do nível perigoso de 1,5
graus Celsius.
O problema foi a escolha feita por Macron: o ônus não estava
sendo compartilhado de forma justa. A maioria dos manifestantes estava nas ruas
porque gasta uma parte desproporcional de seus ganhos em combustível e
transporte. Em contrapartida, o imposto seria usado principalmente para reduzir
o déficit orçamentário da França, pagando credores ricos. Na prática, o
“imposto ecológico” de Macron agravaria a desigualdade.
Embora alinhada com a necessidade de tomar medidas urgentes
diante do aquecimento global, a escolha de Macron não foi orientada por
princípios de esquerda, mas sim por princípios de direita. Visto como um
político de centro, quando foi eleito, o presidente francês é da nova safra de
políticos que se elegeu repetindo não ser “nem de direita nem de esquerda”. No
Brasil, a principal expoente dessa linha nem cá nem lá é Marina Silva.
A esquerda brasileira é incapaz de dar à mudança climática o
lugar central que ela tem na realidade
Cito o caso francês não só porque está se desenrolando
nestes dias, mas porque uma grande parcela do que se chama esquerda,
principalmente no Brasil, é incapaz de colocar a mudança climática como uma
questão central que deve ser enfrentada a partir de princípios de esquerda. A
mudança climática foi causada por ação humana, mas não de todos os humanos.
Alguns humanos, os mais ricos, assim como os países mais ricos, Estados Unidos
na liderança, são os grandes responsáveis pela destruição em curso do planeta.
Mas as consequências atingirão primeiro os mais pobres e muito mais os mais
pobres. É o que já está acontecendo.
Não há nenhuma grande questão atual que não seja atravessada
e determinada pela crise do clima. Um outro exemplo deste momento: a caravana
de milhares de pessoas de Honduras, El Salvador e Guatemala que marchou rumo à
fronteira do México com os Estados Unidos pode apontar a primeira migração em
massa da América Latina provocada por mudança climática. Eles falam de fome e
de violência, mas porque isso é o que aparece como causa imediata. Ao serem
entrevistados por jornalistas que sabem perguntar, porém, uma parcela
significativa conta que o clima começou a mudar e as colheitas diminuíram,
causando um série de consequências que os levou a essa marcha desesperada.
Qual é a resposta da esquerda brasileira para a mudança
climática? Qual é o projeto para enfrentar e se adaptar ao que virá, para além
dos discursos habituais? Não há. Fora iniciativas pontuais, parte dos partidos
e políticos de esquerda sequer compreende o que está em jogo.
Quando Ernesto Araújo, o chanceler de Bolsonaro, afirma que
a mudança climática é uma “ideologia de esquerda”, ele não está apenas sendo
irresponsável e falando uma tremenda bobagem. Ele está também superestimando a
esquerda. E especialmente o PT. Alguns, inclusive, devem ter acordado naquele
instante para o aquecimento global e corrido para a Wikipédia.
Lula e Dilma Rousseff, os dois últimos presidentes do PT,
nunca chegaram sequer perto de compreender que a mudança climática era assunto
deles. Ao contrário. Deixavam claro que adoravam ver as ruas cheias de carros
individuais, movidos a combustíveis fósseis, construir hidrelétricas na
Amazônia e ver a floresta convertida em soja e boi. Os dois estavam cimentados
no século 20, às vezes no 19. Como afirmou o antropólogo Eduardo Viveiros de
Castro, em entrevista a esta coluna, a esquerda que estava no poder era uma
“esquerda velha”, que não alcançou sequer 1968, referindo-se às mudanças
profundas provocadas pelos movimentos de maio daquele ano, na França.
Há vários pensadores no mundo elaborando respostas de
esquerda para o desafio da mudança climática provocada por ação humana. Ou
enfrentando a necessidade de refletir sobre o que pode ser uma resposta de
esquerda para um fenômeno que é, ao mesmo tempo, causado pela desigualdade e
causador de desigualdades.
Uma resposta de esquerda, por exemplo, seria taxar os
grandes produtores de combustíveis fósseis ou taxar todos aqueles que causam
danos ao que é comum a todos, ao que é patrimônio coletivo, inclusive de outras
espécies. Se há bastante sendo pensado no mundo, essa reflexão não parece estar
acontecendo no Brasil, para além de nichos especializados. Acredito não cometer
injustiça ao dizer que a maior parte dos intelectuais brasileiros não tem ideia
das implicações e efeitos da mudança climática, o que compromete qualquer
análise do momento atual.
Se a esquerda não tem resposta consistente nem mesmo para o
maior desafio da trajetória humana, para que serve a esquerda?
Em várias partes do mundo, os jovens estão chamando os
atuais líderes e também seus pais de “uns merdas” que estão ferrando o planeta
que viverão. São adolescentes como a sueca Greta Thunberg, de 15 anos, que em
setembro deixou de ir à escola para se plantar em frente ao parlamento para
protestar contra a falta de medidas para combater o aquecimento global, ou os
estudantes australianos que foram às ruas no final de novembro inspirados por
ela.
Esses adolescentes vão virar adultos num mundo em que a
esquerda não mostrou a sua diferença. Mesmo que tenham sido beneficiados por políticas
públicas de esquerda no passado, eles não saberão. Se a esquerda não tem
resposta consistente nem mesmo para o maior desafio da trajetória humana, para
que serve a esquerda?
Qualquer projeto de esquerda para o Brasil precisa ter uma
resposta de esquerda para o enfrentamento da mudança climática e do
desmatamento da Amazônia e do Cerrado. Sem isso não há qualquer possibilidade
de começar qualquer conversa que possa interessar quem vive no século 21 e que
sabe que suas crianças viverão num planeta pior, o que já é uma certeza, ou num
planeta terrível, o que acontecerá caso as medidas necessárias não sejam
tomadas nos próximos 12 anos. Sem isso não há qualquer possibilidade de começar
qualquer conversa que possa interessar quem vive no país que tem a maior porção
da maior floresta tropical do planeta no seu território e no país mais
biodiverso do mundo.
Ao contrário de muitas pessoas engajadas no enfrentamento da
mudança climática e nas medidas de adaptação à nova realidade do planeta, eu
acredito que esse enfrentamento precisa ser travado a partir de princípios de
esquerda. Não estamos todos no mesmo barco. Não estamos mesmo. Muitos só têm
barquinhos de papel.
* Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora
dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém
vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma
Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:
@brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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