1 de 3 Liminar: O ministro Marco Aurélio Mello, autor da canetada que quase libertou Lula
Foto: montagem sobre Fotos: Dorivan Marinho; banco de imagem STF
“Se o ministro Toffoli não suspendesse a medida, o Judiciário teria sua seriedade posta em xeque” Raquel Dodge, procuradora-geral da República
3 de 3 “Esta nova medida liminar contraria decisão soberana já tomada pela maioria do tribunal pleno” Antonio Dias Toffoli, presidente do STF
Publicado originalmente no site da revista ISTOÉ, em 20/12/18
Quase foi o “liberou geral”
Adotando ativismo judicial e cada vez menos preocupado em
exercer suas funções elementares, como a de guardião da Constituição e da
estabilidade do País, o Supremo encontra-se ainda mais desmoralizado perante a
sociedade brasileira
Por Sérgio Pardellas
Em 1968, durante uma sessão plenária do Supremo Tribunal
Federal, o então ministro Adauto Lúcio Cardoso, envergonhado de seus pares que
haviam acabado de legitimar a censura à imprensa, despiu-se da toga e a
arremessou longe. Hoje, com raríssimas exceções, o STF se ressente de ministros
com a coragem do ex-colega da Corte. O STF alcançou o estágio de desmoralização
atual porque muitos ali são incapazes de distinguir espírito de grandeza de
grandeza de espírito. Enquanto o primeiro lhes sobra, falta-lhes o outro.
Contrariando o artigo 102 da Carta Magna, o STF, em vez de guardião da
Constituição e fiador da estabilidade, tornou-se nos últimos tempos um vetor de
insegurança jurídica e desagregação social. O ativismo judicial do qual
investiram-se certos ministros não apenas envergonha a Nação, como concorre
para desacreditar o Judiciário perante a sociedade brasileira. Para atender a
interesses inconfessáveis, certos integrantes do STF não se importam em
enlamear as próprias togas — paramentos que deveriam ser o símbolo sacrossanto
da imparcialidade e seriedade da Corte, mas que viraram a representação e o
retrato mais bem acabado da perda completa de noção ética.
Não há mais como descer na escala da degradação
institucional. Na quarta-feira 19, um dia antes do recesso do Judiciário, a
presepada burlesca dos homens de preto alcançou o seu auge, quando o ministro
Marco Aurélio Mello resolveu, com uma canetada, libertar todos os 169 mil
presos que foram condenados no País por tribunais de segunda instância. Uma
medida que — sabe-se — pretendia alcançar o mais notório deles, o ex-presidente
Lula, que há seis meses vê o sol nascer quadrado a partir de uma sala-cela na
sede da Polícia Federal em Curitiba. A aberração jurídica de Marco Aurélio
durou apenas pouco mais de cinco horas. E não libertou ninguém. Tempo
suficiente, de todo modo, para vastas consequências negativas na já amarrotada
imagem da instituição. É a segunda vez em dois anos que Marco Aurélio, com
esperteza típica de político mal intencionado, vê-se à frente de uma decisão
jurídica que contribuiu apenas para desmoralizá-lo pessoalmente e aos demais
dez colegas. Em 2016, o então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL),
tornara-se réu por crime de peculato (desvio de dinheiro público), acusado de
destinar parte da verba indenizatória do Senado para uma locadora de veículos
que, para a Procuradoria Geral da República (PGR), não teria prestado serviço
algum. Quatro dias depois de Renan tornar-se réu, o ministro Marco Aurélio
Mello expediu uma liminar atendendo a um pedido do partido Rede
Sustentabilidade, e afastou Renan da presidência do Senado. A justificativa
jurídica era que Renan, como réu, não poderia fazer parte da linha sucessória
da Presidência. Renan simplesmente ignorou a decisão de Marco Aurélio. Diante
da iminência de uma crise entre os Poderes, o plenário do Supremo acabou por
revogar a decisão.
Conhecido pelos colegas como “ministro voto vencido”, outra
vez Marco Aurélio viu-se às voltas com decisões que provocam polêmica e nenhum
resultado prático. “O enfrentamento à corrupção revelou na Suprema Corte uma
divisão marcante”, avaliou à ISTOÉ o ministro Luís Roberto Barroso. “Passamos a
viver um embate entre os defensores da nova ordem e os guardiões da velha
ordem”. Na prática, o STF funciona como uma espécie de arquipélago com 11 ilhas
de decisões ou 11 Supremos independentes. O próprio Marco Aurélio incentiva
esse modelo ao pregar que “cada qual faça a sua parte, com desassombro”. Se os
11 togados seguirem à risca a recomendação, o vale-tudo de embates não terá
fim. Barroso tornou-se um dos principais atores desses embates. Marcou o ano de
2018 sua discussão com Gilmar Mendes durante o julgamento que ratificou a
prisão de Lula, quando Barroso, provocado por Gilmar, lhe respondeu: “Você é
uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso com pitadas de
psicopatia”. Não era a primeira vez que vetustos senhores de toga quase iam às
vias de fato no plenário. Em 2009, Gilmar Mendes já havia protagonizado um
debate por demais acalorado com o ex-presidente Joaquim Barbosa. “Felizmente, a
coisa mais importante que aconteceu no Brasil foi o surgimento de uma imensa
demanda por integridade”, comemora Barroso. “Esse é um novo paradigma que muda
a história”. Infelizmente, nem todo o STF parece ter compreendido. Hoje, o
tribunal deixou de se comportar como um colegiado para tornar-se uma soma de
individualidades. Não por acaso, a Corte sofre do mais absoluto descrédito.
1 de 2 Vergonha:
Militantes do MBL protestam contra eventual soltura de Lula na quarta-feira 19
Foto: Cris Faga/NurPhoto
2 de 2 Justiça feita: Petistas queriam Lula livre, mas
Toffoli acabou com a festa
Foto: Theo Marques/Folhapress
Há gestos que se sobrepõem em meio à geléia geral. A exemplo
do ex-ministro Adauto Lúcio Cardoso, em 1968, Dias Toffoli também se
engrandeceu às vésperas do recesso do Judiciário, ao sustar o factóide em forma
de liminar de Marco Aurélio Mello. Seu colega havia efetivamente afrontado não
só o colegiado — que por inúmeras vezes já havia se debruçado sobre o tema —
como também a opinião pública, a segurança jurídica e ele próprio, que como
presidente da Corte havia deliberado uma nova sessão para abril de 2019, tendo
em pauta a questão da prisão em segunda instância. No poema “Os Lusíadas”, Luís
de Camões descreve a viagem em que Vasco da Gama descobre o caminho marítimo
para as Índias. Na terceira estrofe, diz: “Cesse tudo que a Musa antiga canta/
Que outro valor mais alto se alevanta”. Significa que tudo que foi escrito
anteriormente deveria ser esquecido, pois agora ele iria anunciar algo
realmente importante, de princípio mais nobre. Pois outro valor mais alto se
alevantou sob Toffoli. O presidente do Supremo atendeu a um recurso impetrado
pela Procuradoria-Geral da República contra o entendimento de Marco Aurélio.
“Essa decisão tem como precípua finalidade evitar grave lesão à ordem e à
segurança públicas. A decisão já tomada pela maioria dos membros da Corte deve
ser prestigiada pela Presidência”, disse Toffoli. A liminar ficará suspensa,
sem efeitos, até que o plenário do STF julgue definitivamente Ações
Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) que questionam a possibilidade de
prisões de réus condenados em segunda instância. Na segunda-feira 17, Toffoli
marcou a análise do tema para o dia 10 de abril. Será a quarta vez desde 2016
que os ministros vão se debruçar sobre o tema.
Em setembro, Toffoli também havia sido obrigado a interferir
quando Barroso declarou que havia no STF gabinetes “distribuindo senha para
soltar corrupto”. A referência era justamente a Gilmar Mendes, pela notória
fama que passou a ter de libertar os alvos da Lava Jato. Depois da conversa,
Barroso se desculpou publicamente pelas declarações. Mas o fato é que Gilmar,
em apenas uma de suas decisões, beneficiou outras 14 pessoas. Em outros casos
polêmicos, ele agiu em favor do empresário do ramo de transportes Jacob Barata
Filho sem se preocupar com o fato de ser padrinho de casamento da filha do empresário.
O STF paga um alto preço pela tática de barata tonta com o prende-solta que
virou sua marca. Desta vez, Marco Aurélio se excedeu e muito, agindo como um
artífice voluntarioso de indultos natalinos indevidos, se insurgindo contra a
maioria. Seu lance de esperteza às vésperas do recesso vai ficar para a
história.
No mesmo mês de setembro, Toffoli interveio em nova confusão
envolvendo os ministros Ricardo Lewandowski e Luiz Fux. Atendendo a um pedido
da defesa do ex-presidente Lula, Lewandowski liberou o petista para conceder
uma entrevista à imprensa às vésperas da eleição presidencial. A iniciativa
irritou os demais. Fux, ao analisar um recurso contra a decisão de Lewandowski,
não somente desautorizou o colega como impediu a divulgação da entrevista, caso
ela fosse concedida. Lewandowski foi novamente acionado e ratificou sua decisão
anterior. A confusão só terminou após determinação de Toffoli contrária à
entrevista.
Outras estultices, porém, não puderam ser barradas. Essa
mesma turma presidida por Toffoli havia prometido acabar com o auxílio moradia
em troca do indecente aumento da categoria e depois foi empreendida mais uma
gambiarra para que ficassem com ambos: o reajuste e o auxílio. Definitivamente,
o que se vê nos corredores do Supremo não é o sacrossanto respeito ao Estado de
Direito, mas a rendição a um Estado de Arbítrio, ao sabor de conveniências de
ocasião. Como dizia Ruy Barbosa, a pior ditadura é a do Judiciário. Contra ela,
não há a quem recorrer.
Nos últimos tempos, poucos magistrados definiram tão
brilhantemente o Supremo como o ex-ministro Ayres Britto. Segundo ele, o que se
vê no STF “é certa competição surda, enrustida, latente, uma competitividade não
assumida, que não tem sentido e é absurda”. “O Supremo não está a salvo de
práticas reveladoras de uma certa pequenez de alma”, concluiu. Não está mesmo.
Em algum momento de sua trajetória, o Supremo se perdeu como poder respeitável
e está custando a restaurar a grandeza de outrora. Monteiro Lobato foi ainda
mais preciso, com um século de antecedência: “Tinha vontade. Tem medo. Tinha
Justiça. Tem cambalachos de toga”. A frase foi pronunciada em 1918. Na ocasião,
o escritor lançava luz sobre a nova Justiça que florescia no regime
republicano, àquela altura ainda em processo de amadurecimento. O vaticínio se
cumpriu.
Colaborou Rudolfo Lago
Texto e imagens reproduzidos do site: istoe.com.br
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