Publicado na edição impressa de Veja e no Blog Fatos, em 11/01/2019
Charada em construção
Por J.R. Guzzo
As coisas seriam relativamente simples no Brasil se todas as
preocupações, dúvidas e problemas a resolver se resumissem ao novo governo do
presidente Jair Bolsonaro. Mas aí é que está: a vida nem sempre nos dá a oportunidade
de lidar só com uma questão de cada vez. Além de tudo o que precisa dar certo
aqui dentro, hoje em dia é preciso encarar, também, uma quantidade ainda maior
de coisas que têm de dar certo lá fora – e essas coisas, positivamente, não
parecem estar a caminho de acabar bem. Trata-se das exigências do “novo
pensamento mundial”, ou do “globalismo”, ou alguma outra combinação de palavras
parecida – uma espécie de consenso ainda frouxo, mas cada vez mais ativo, que
vai se criando na elite europeia e americana sobre como o planeta deveria ser
ordenado daqui para frente. A nova ordem que prescrevem para o mundo vai mal, e
nem daria mesmo para esperar que fosse bem, levando-se em conta que inclui
praticamente tudo o que deveria estar indo melhor com a humanidade. Mas a
complicação realmente não parece estar na quantidade de problemas existentes.
Parece, isso sim, estar na qualidade geral das soluções com as quais se
pretende tornar o mundo e o homem melhores do que são hoje.
É uma sinuca, no caso particular do Brasil deste momento. O
governo Bolsonaro, definitivamente, se declara disposto a fazer o contrário do
que o pensamento mundial recomenda para resolver os problemas do universo. Do
outro lado, o consenso ora em formação entre os intelectuais, burocratas, governantes
e outros “influenciadores” da vida diária do primeiro mundo demonstra um aberto
horror a tudo o que o governo brasileiro imagina que vai fazer nos próximos
quatro anos. De Bolsonaro já sabemos o que é preciso saber. Do outro lado,
porém, o que existe é uma charada em construção. Quando você começa a achar que
entendeu alguma coisa na lista de deveres a ser obedecida hoje por pessoas e
nações, os deveres mudam, ou entram em choque entre si, ou exigem ações que
você não sabe como executar, ou sequer imagina como podem ser executadas. É
mais ou menos natural, porque os propositores do novo pensamento não sabem
direito, eles próprios, o que querem. Nem todos querem as mesmas coisas. A
maioria não calcula direito as consequências das propostas que fazem.
Acreditam-se capazes de organizar fatos que estão acima e além do seu controle.
Não seguem, no fundo, uma ideologia, mesmo porque ainda não se identificou
nenhuma ideia de verdade em nada do que prescrevem para o bem geral. Há apenas
uma tumultuada coleção de desejos – e a exigência de que sejam removidas do
mundo, em geral por atos do governo, todas as situações de frustração, carência
e ressentimento que hoje incomodam as consciências.
Não é fácil enxergar com clareza no meio desse nevoeiro. Dá
para dizer, em todo caso, que o grande traço de união entre as diversas seitas
do novo pensamento é a certeza de que a mãe de todos os pecados do mundo de
hoje é a falta de igualdade – tanto entre as pessoas, individualmente, quanto
entre as nações. Tudo que há de errado na vida atual se deve, de uma forma ou
de outra, à desigualdade; por via de consequência, de acordo com as crenças
básicas do consenso mundial que está se formando no mundo rico, a redução ou a
eliminação das diferenças levará à solução de todos os problemas que estão aí e
não sabemos como resolver – dos quebra-quebras em Paris ao derretimento das
geleiras no sul da Patagônia. Quase tudo pode entrar na lista. Guerras tribais
na África, massacres de civis na Síria ou a fome no Congo não têm, por exemplo,
nenhuma relação com as forças e governos que provocam essas desgraças. São,
pelo novo sistema de pensar o universo, resultado da desigualdade e, portanto,
têm de ser curadas com mais igualdade. Imigração ilegal em massa para os países
bem sucedidos? Escassez de água? Emissões de carbono? É tudo mais ou menos a
mesma coisa. Se o mundo fosse mais igual, nada disso existiria.
Como muito pouca gente está disposta a argumentar em favor
da desigualdade, basicamente lembrando que esforços desiguais devem resultar em
recompensas diferentes, nada mais fácil hoje em dia do que encontrar
combatentes da igualdade. Estão por toda a parte. Em geral, acham que a redução
do número de pobres se fará através da redução do número de ricos, e nunca da
criação de riqueza entre os pobres. Têm uma mal definida hostilidade ao
progresso, visto que o progresso não conseguiu eliminar a desigualdade; acham
que mais eletricidade ou mais estradas, por exemplo, trazem benefícios
desiguais, e portanto são desaconselháveis, sobretudo quando você já tem as
duas. O novo pensamento não gosta da ciência – não admite mais pesquisas e
investigações sobre fenômenos considerados fatos já definitivos pelas suas
crenças, como o aquecimento global ou a destruição das florestas brasileiras.
Não gosta de religião, a não ser do islamismo, que deve ter estímulo, inclusive
oficial, para se propagar nos países cristãos do primeiro mundo e aumentar com
isso os índices de igualdade religiosa. Não gosta de hábitos nacionais; a
grande virtude de hoje é a “diversidade cultural”, que torna um país tanto mais
correto quanto mais ele substituir sua cultura pela cultura de outros países.
Não gosta das liberdades individuais. Naturalmente, há um declarado horror pelo
“agronegócio”, que, segundo a sabedoria predominante, destrói a natureza,
produz carne de boi e faz muita gente ganhar dinheiro.
O New York Times e outros centros da nova inteligência
mundial estão convencidos, por exemplo, que praticamente toda a produção da
agricultura brasileira poderia ser substituída no futuro, e com vantagens, pelo
consumo de insetos, capazes de fornecer todos os nutrientes necessários ao
organismo humano. Com isso, seria possível eliminar fazendas nocivas ao meio
ambiente, que hoje desperdiçam com a produção de alimentos terras que deveriam
estar destinadas à florestas. Além disso, utilizam “agrotóxicos” e,
eventualmente, perturbam a vida indígena. É mais ou menos a mesma visão que
atribui aos “direitos dos animais” importância equivalente aos direitos humanos
– isso para não falar nos direitos dos vegetais e da camada de gelo do Polo
Norte. De modo geral, consideram a sobrevivência do meio ambiente mais
importante que a sobrevivência das pessoas de carne e osso. Numa espécie de
cavalo-de-pau filosófico, acham natural que os recursos naturais não devam ser
utilizados em favor do bem estar humano; ao contrário, estão convencidos que é
obrigação do homem e dos governos não tocar em nada que esteja presente na
natureza.
Nada disso parece ter alguma coisa diretamente relacionada
com a redução das desigualdades – mas o fato é que todas essas crenças, de um
modo ou de outro, são apresentados como parte do mesmo pacote de salvação do
mundo que vai sendo embrulhado hoje em dia por funcionários de burocracias como
a ONU, Comissão Europeia e outros organismos internacionais, governos de países
ricos, universidades do primeiro mundo, a mídia em geral, o cantor Bono Vox e
por aí afora. Como de costume, as dificuldades mais complicadas que a
construção da igualdade enfrenta estão nas suas incompatibilidades com o mundo
real. Desde o início, o movimento parece cada vez mais tentado a aceitar a
ideia de que é possível obter o bem estar independente do trabalho. Há bem
estar na Alemanha, por exemplo, e miséria na África? A solução é abrir a
Alemanha à imigração dos africanos – onde se espera que passem a desfrutar da
mesma prosperidade sem ter feito os últimos 100 anos de trabalho que os alemães
fizeram para chegar até onde estão hoje. É essa, por sinal, a grande ideia que
sustentou a aprovação do recente acordo internacional declarando que todos os
habitantes do planeta têm agora o direito legal de imigrarem para o país que
quiserem.
Pouca ou nenhuma atenção é dedicada nisso tudo à criação de
mecanismos de produção capazes de gerar as riquezas a serem distribuídas para
eliminar a desigualdade. Distribuir a fortuna dos ricos parece ser uma ótima
ideia até você ver que só dá para fazer essa distribuição uma vez – depois que
é consumida a riqueza acaba, e é preciso criar outra em seu lugar, para
continuar havendo alguma coisa a distribuir. Não está claro quem vai ficar
encarregado dessa tarefa. Outro problema é a tecnologia – quanto mais progresso
se cria, mais se aumenta a desigualdade, e a menos que se declare uma moratória
no avanço tecnológico o futuro promete a multiplicação acelerada de desiguais.
Hoje as revoluções industriais se sucedem mais de pressa que as fases da Lava
Jato; na verdade, ninguém sabe direito em qual revolução, exatamente, estamos
hoje. Quarta? Quinta? O certo é que a cada avanço mais gente se vê excluída dos
benefícios do progresso; nem todos têm capacidade para ocupar um emprego no
Silicon Valley ou seus equivalentes através do mundo. Os que não têm cacife
para isso se veem, cada vez mais, relegados às ocupações menos atraentes, mais
frustrantes, pior remuneradas. Profissões inteiras vão se tornando obsoletas,
por conta dos avanços da inteligência artificial, da impressão em terceira
dimensão, da robotização e outras mudanças desagregadoras do mundo profissional
como ele é hoje. Para que pilotos de jato se os aviões voarão sozinhos, e com
muito maior segurança, de Nova York a Tóquio? Para que médicos, se o computador
vai fazer um transplante de coração melhor do que eles? Para que o marceneiro,
se a impressão em 3D lhe entrega sua cadeira pronta e sem defeito nenhum?
É um mundo no qual só as pessoas com alto grau de
conhecimento serão realmente cidadãos de primeira classe. Por mais que as leis
digam que todos são iguais, e por mais que as elites pensantes escrevam
programas estabelecendo regras de igualdade, as diferenças estarão cada vez
mais evidentes. É para essas realidades que o Brasil tem de se preparar. Será
preciso, nesta caminhada, contar com ideias muito melhores do que as que
apareceram até agora.
Texto e imagem reproduzidos do Facebook/J.R. Guzzo
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