Publicado originalmente no site GABEIRA, em 21.01.2019
Lições do Terror
Por Fernando Gabeira
Calor absurdo aqui no interior do Mato Grosso do Sul. Coisas
do marxismo internacional. Acabo de ler o livro de Afonso Arinos, graças às
longas viagens de avião: 1.780 páginas.
De tantos pedaços da história, discursos internacionais,
personalidades, tenho espaço apenas para destacar uma frase da neta de Arinos.
A mulher dele disse que ele andava triste. A menina resolveu consolá-lo:
— Vovô, não fique triste, o senhor tem sua casa, seus
filhos, a sua bengala…
Livros como o de Arinos e Joaquim Nabuco me reconciliam com
o Brasil. Fico orgulhoso de me dedicar ao estudo do país.
Em Fortaleza, vi um homem com um carrinho de pequenas frutas
amarelas ao longe e disse: seriguelas. O homem se aproximou e, ao passar por
nós, perguntei: que fruta é essa? Seriguelas, respondeu.
Fiquei feliz como um menino que passa na prova. Deveria ser
um pouco mais sério porque estava cobrindo precisamente a onda de ataques no
Ceará.
Acontece que estou reavaliando um pouco minha noção de
jornalismo. Nossa tendência é dramatizar ataques, cortar as imagens de forma
que o fogo e a destruição se destaquem.
Quando examino mais de perto, os ataques, na verdade, são
feitos em lugares desertos e em altas horas da noite. Um exemplo disso foi a
dinamite que apareceu no metrô. Não tinha detonante, seu objetivo era assustar.
Não quero dizer que o tema não seja grave. As cadeias estão
superlotadas. As organizações criminosas cresceram muito, não apenas no Ceará.
E um grande número de jovens sem emprego ou escola é atraído para as facções.
Há alguns anos li um livro sobre um congresso ligado à ONU
cujo tema era diplomacia preventiva — como atuar para evitar conflitos,
sobretudo aqueles que realmente podem ser evitados.
Na época, falou-se também rapidamente no jornalismo
preventivo. Nos anos 1960, tínhamos cadernos teóricos e talvez me dedicasse a
escrever sobre essa nova forma de jornalismo.
Mas, como as tarefas aumentaram, resta-me tentar aplicar a
ideia na prática. Os puristas podem objetar: prevenir? O jornalismo não
previne, não evita, nem provoca: apenas informa.
Mas é de informação de que se trata. Informar significa
também colocar num contexto um pouco mais amplo.
Um pouco de estudo militar mostra que ofensivas são um
momento delicado: os atacantes se expõem e costumam sofrer grandes perdas.
Com quase 4 00 pessoas presas, parece que aconteceu com as
organizações criminosas do Ceará.
Em Fortaleza, há agora um centro de inteligência para todo o
Nordeste. Eu visitei o centro, mas não pude entrar porque precisava de licença
especial, essas coisas. Imagino que tenham aproveitado esse momento de ofensiva
e muitas prisões para entender um pouco mais das organizações criminosas.
O que torna o problema do Ceará mais sério ainda é o fato de
que muitas de suas coordenadas estão presentes em outros estados.
A simples enumeração de ataques, grande parte deles em
lugares remotos e escuros, no fundo, é, involuntariamente, o jogo que interessa
aos líderes das organizações criminosas.
Eles precisam de um tipo de cobertura para difundir o medo.
Mas chega um momento, e isso vale também para o terror político, que é preciso
vencer o medo coletivo e encarar a vida com normalidade, mostrar que as coisas
seguem, apesar deles.
Artistas locais fizeram uma campanha intitulada Quero Meu
Ceará de Volta, evocando todas as coisas boas numa cidade tão simpática como
Fortaleza: andar nas ruas, ter cadeiras na frente de casa.
A ideia, creio eu, estava numa direção correta. Mas era
preciso mais que isso: era preciso retomar as ruas com firmeza. Isso seria
também uma tarefa para políticos. Mas eles andam meio escondidos. Exceto os que
têm de tratar diretamente do tema pela responsabilidade de governo, os outros
são muito discretos, para usar um termo leve.
De qualquer forma, creio que os episódios do Ceará surgiram
e sumiram sem que houvesse uma discussão mais detalhada sobre eles.
Minha impressão é que já é tempo de avaliarmos as relações
de jornalismo e terror. Minha sugestão não é, absolutamente, a de omitir
episódios atemorizantes.
Em muitos casos, informar com mais profundidade e exatidão
pode abrir caminho para que a sociedade compreenda o que se passa e retome as
rédeas de seu cotidiano.
Artigo publicado no jornal O Globo em 21/01/2018
Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira.com.br
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