A verdade sobre a Lava Jato
Na inversão de valores em curso, usa-se a mera opinião ou
preferência como o critério para se decidir o que é abusivo ou mesmo ilegal na
Lava Jato. Editorial da Gazeta do Povo:
Uma das páginas mais tristes da história do país está
terminando de ser escrita, sob o olhar, de um lado, atônito e perplexo de
alguns e, de outro, desatento de uma multidão de espectadores. Imensamente
triste porque é a refação, é o apagar e reescrever, de uma página de especial
beleza, portadora de uma história de coragem e talento que empolgou e deu
esperanças à quase totalidade dos brasileiros. Referimo-nos, obviamente, à
história da Operação Lava Jato.
A desconstrução midiática e jurídica da mais bem-sucedida
operação de combate à corrupção da história do Brasil entrou em uma fase aguda.
Princípios básicos do direito e garantias constitucionais estão sendo ignorados
para que o trabalho da Lava Jato seja posto a perder e seus protagonistas sejam
transformados nos vilões da história. Um movimento que foi iniciado com
narrativas vitimistas, com avaliações desequilibradas, com confusões sutilmente
implantadas no seio da opinião pública pelos detratores da operação, e que
recorreu até mesmo ao crime puro e simples, como na invasão de celulares das
autoridades que conduziram a Lava Jato.
Mas como é possível que tal movimento esteja tendo sucesso?
Como tem sido possível tamanha inversão de valores? Como entender que méritos
tão gigantescos estejam sendo tão ostensivamente distorcidos? Como compreender
que algumas pessoas de bem tenham ido do louvor e gratidão à Lava Jato,
passando pela dúvida e desconfiança, e, por fim, manifestando desapreço e
desprezo pela operação?
A compreensão total passará necessariamente por uma
recordação desses méritos, nunca suficientemente elogiados. O contraste entre a
grandeza da realidade e a pequenez da versão que está se propagando facilita
essa compreensão. Mas isso fica para um outro momento. Por ora, basta recordar
que o que torna a Lava Jato tão notável não é somente a dimensão do escândalo
que ela enfrentou, mas o fato de finalmente se romper um ciclo de impunidade
que levou operações anteriores a naufragar, terminando em nulidade ou
prescrição. Isso seria impossível sem as pessoas certas, empenhadas em combater
a corrupção, nos locais certos, no momento certo e fazendo a coisa certa, não
uma ou duas vezes, mas milhares de vezes, durante dias, meses e anos, o que foi
reconhecido até mesmo internacionalmente, dado o volume de colaborações
realizadas com autoridades estrangeiras, atestando a seriedade do trabalho.
E como se consegue desmontar um esquema de corrupção tão
intrincado, envolvendo gente tão poderosa? Como se consegue levar tantos para a
cadeia, quando a impunidade sempre foi a regra neste país? Em seu lamentável
voto pela suspeição do ex-juiz Sergio Moro, o ministro do STF Gilmar Mendes
disse que “não se combate o crime cometendo crimes”, afirmando (pois o ministro
foi muito além da simples insinuação) que teriam sido cometidas ilegalidades ao
longo desses sete anos desde que a Lava Jato foi deflagrada. A operação
certamente trouxe novidades ao cenário do combate à corrupção no Brasil, tanto
do ponto de vista legal – a Lava Jato foi a primeira operação a usar amplamente
a delação premiada, objeto de lei sancionada em 2013 por Dilma Rousseff –
quanto do ponto de vista de estratégias. E haverá quem pense ser humanamente
impossível combater o crime de colarinho branco sem cruzar, ao menos um pouco,
a linha que separa a legalidade da ilegalidade, para que os agentes da lei
tenham alguma chance contra quem tudo pode ao não se julgar limitado pelas
regras do jogo. Mas aqui temos de lançar um enfático “não” a quem quer imputar
esses comportamentos à Lava Jato, seja aos procuradores ou policiais que
realizaram as investigações, seja aos juízes que julgaram os casos da operação.
Aos adversários da Lava Jato, assim, restavam algumas poucas
possibilidades se quisessem promover uma inversão de valores. Uma delas era
fazer da mera opinião, da mera preferência, o critério para se decidir o que é
abusivo ou mesmo ilegal. Os descontentes com determinada estratégia adotada
pela força-tarefa, ou com alguma atitude dos magistrados que julgaram os réus
da operação, não se limitam a demonstrar sua discordância reconhecendo que se
está no campo das escolhas legítimas; eles desejavam e desejam impor a ideia de
que aquilo que criticam na Lava Jato é imoral, “abusivo”, “excessivo” ou até
mesmo contrário à lei.
Recorde-se, por exemplo, a crítica de Gilmar Mendes à
proximidade entre a Lava Jato e a imprensa, que é apenas uma das dimensões da
estratégia da operação em relação à opinião pública. Não nos referimos,
obviamente, a vazamentos de informações – que a lei e os códigos internos do
Ministério Público e da magistratura já vedam e que precisam ser diligentemente
investigados –, mas à presença midiática frequente de alguns dos responsáveis
pela operação, bem como às entrevistas coletivas concedidas a cada fase da Lava
Jato.
A opção pela publicidade total dos atos da operação chamou a
atenção por ser praticamente inédita, mas é completamente lícita dentro daquilo
que se permite aos responsáveis pela investigação. O que os críticos chamam de
“espetacularização” ou de “personalismo” é, na verdade, a intenção de manter a
sociedade informada a respeito de cada passo da operação e sobre o
funcionamento do enorme esquema de corrupção então desvendado. Esses críticos
teriam de responder: onde está a irregularidade? Que lei ou código interno
proíbe a força-tarefa de se comunicar com a sociedade da forma escolhida pela
Lava Jato? Desde quando a transparência passou a ser um mal a combater?
Compreendemos quem, nestes casos, julgue ser melhor a ação
mais discreta, que se dá exclusivamente nos autos, mas a opção contrária jamais
– insista-se, jamais – poderia ser considerada ilegal, ou abusiva, ou
excessiva; ambas são legítimas, e a escolha pode ser pautada por questões
estratégicas. No caso, além da convicção de que era importante prestar contas
aos brasileiros, a Lava Jato também intuiu que deveria conquistar o maior apoio
popular possível, já antecipando os movimentos que ocorreriam para desmontar a
operação, assim como ocorrera na Itália da Operação Mãos Limpas.
Algo similar, nessa mesma linha de mera preferência
estratégica, reside na opção que a Lava Jato fez de buscar cooperação com
inúmeros organismos públicos e da sociedade civil, nacionais e internacionais,
como recomendam as experiências dos maiores especialistas em todo o mundo. A
opinião torta e interessada dos advogados dos acusados, de que qualquer
cooperação fora do canal oficial é ilegal, passou pouco a pouco a ser aceita
acriticamente inclusive por meios de comunicação sérios e comprometidos com a
luta contra a corrupção, sem se dar conta de que isso pode, no futuro, minar
por completo o combate ao crime organizado de enormes proporções. Uma pena,
deixe-se registrado aqui, que pessoas de bem, por serem avessas a essas
estratégias de comunicação e de cooperação, tenham partido dessas discordâncias
(que são legítimas) para, sem lógica alguma, chegar à conclusão de que havia
irregularidades. Dessa forma, como inocentes úteis, sem distinguir uma coisa de
outra, acabaram engrossando o coro dos que querem sepultar a Lava Jato.
Outro flanco escolhido pelos detratores da Lava Jato está na
avaliação sobre determinadas ações ou decisões da força-tarefa ou da 13.ª Vara
Federal de Curitiba. Aqui, é preciso lembrar que sete anos de trabalho
incansável geraram uma infinitude de atos jurídicos e processuais – mais
precisamente, na casa dos 60 mil, considerando-se o último balanço da operação,
que resultou em 130 denúncias contra 533 acusados, com 278 condenações
atingindo 174 pessoas. A esmagadora maioria desses atos foi convalidada pelas
instâncias superiores do Judiciário, que não viram nenhuma razão para impugnar
processos ou condenações devido a irregularidades processuais.
É evidente que, em conjunto tão monumental de atos, haja
alguns mais controversos, especialmente quando se trata de navegar em águas
ainda não mapeadas – falamos, aqui, de decisões que exigem interpretação da lei
penal ou da lei processual, em uma zona cinzenta na qual os limites ainda não
estavam perfeitamente delimitados. Mesmo quando a opção da Lava Jato foi a de
usar as ferramentas mais rigorosas, não há como imputar a seus protagonistas
nem a intenção dolosa, nem um comportamento abusivo recorrente. Trata-se de
episódios pontuais em que as escolhas feitas, mesmo quando consideradas
inadequadas a posteriori, se deram dentro da margem de discricionariedade
permitida a investigadores ou julgadores, e jamais poderiam ser lidas como
indicadores de algum animus persecutório ou condenatório, principalmente da
parte de Sergio Moro (o juiz, aliás, absolveu um quinto dos réus, e ainda negou
centenas de recursos do MPF, o que afasta a tese de um conluio entre Moro e a
força-tarefa). Usar algumas poucas decisões controvertidas, dentre dezenas de
milhares, para interpretar o todo é uma falácia construída para estigmatizar a
operação, que deveria ser julgada pelo seu conjunto, e não por algumas poucas
ações.
O “desmonte moral” da Lava Jato, nesta operação que tenta
transformar os verdadeiros bandidos em santos enquanto os investigadores e
juízes terminam no banco dos réus, foi potencializado com o circo midiático da
“Vaza Jato”, com a divulgação de mensagens atribuídas aos procuradores da
força-tarefa e ao então juiz Moro. Embora a invasão dos aparelhos das
autoridades seja um fato, nenhuma perícia foi capaz de verificar a
autenticidade dos conteúdos divulgados; no entanto, isso não tem impedido seu
uso indiscriminado em processos e recursos na Justiça, mesmo que seu valor como
evidência nem tenha sido ainda devidamente estabelecido. Gilmar Mendes bem o
sabe, e por isso afirmou que os diálogos nem seriam necessários para
caracterizar a suspeição de Moro – o que não o impediu de, em flagrante
contradição, citá-los longamente em seu voto da semana passada. Ocorre, no
entanto, que o conteúdo divulgado, caso seja autêntico, mostra uma interação
entre juiz e partes que foi considerada normal até mesmo por ministros do
Supremo. “Mantemos diálogos com o MP. Nos 42 anos, mantive diálogo com membros
do Ministério Público e advogados de qualquer das partes. Isso é normal”, afirmou
Marco Aurélio Mello na semana passada, em entrevista ao jornal O Globo.
Diagnóstico idêntico foi feito por inúmeros juristas desde que os supostos
diálogos vieram a público, em meados de 2019.
Em resumo, qualquer adjetivo mais brando que “heroico” para descrever o trabalho da Lava Jato não lhe faria justiça. Procuradores, policiais e juízes gastaram até sete anos de suas vidas dedicados à missão de puxar até o último fio de um complexo novelo de corrupção, apesar das inúmeras forças que tentaram dificultar-lhes ao máximo esta tarefa. Usaram com inteligência todas as armas que a lei lhes facultava e tiveram diante de si escolhas difíceis naquilo em que havia margem para várias interpretações e linhas de atuação. E é justamente por terem funcionado, por terem rompido o ciclo clássico da impunidade, com resultados incomensuravelmente benéficos para o país, que essas escolhas e estratégias estão sob fogo cerrado no palco da opinião pública e nos tribunais, como se fossem elas mais escandalosas que o esquema desvendado. Primeiro transforma-se o acerto em erro, em “abuso”, em “excesso”, para depois avaliar-se o todo pela parte e, por fim, aplicar-se o golpe de misericórdia sobre procedimentos, dificultando-os ou proibindo-os, e sobre as reputações daqueles que tanto fizeram pelo país. Defender o legado da Lava Jato, injustamente vilipendiado, é crucial para que o Brasil siga sonhando com o fim da impunidade daqueles que insistem em sangrar o país em nome do próprio bem-estar ou de projetos de poder que fraudam a jovem democracia brasileira.
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com
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