Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 13
de abril de 2021
O Estado e a questão religiosa
Estamos diante de um problema político sério que a direita
evangélica traz para a democracia. Artigo do embaixador Rubens Barbosa para o
Estadão:
Estamos vivendo tempos estranhos. A sociedade está dividida
e polarizada, anestesiada e paralisada, até pelas dificuldades decorrentes da
pandemia. A perplexidade aumenta na medida em que, entre muitos outros
exemplos, se verifica a maneira como a grave crise do combate à covid-19, fora
de controle, está sendo conduzida; pela ameaça de um enfrentamento fratricida
pela facilitação da venda e do porte de armas e munições; pela inexplicada
crise militar com a demissão da cúpula da Defesa; pelo desmonte do combate à
corrupção; pela crescente influência das milícias e do tráfico de drogas; pela
chocante visibilidade da desigualdade social; pela falta de perspectivas e de
uma visão de futuro para o País.
A tudo isso se junta agora a surrealista discussão sobre
atividades religiosas coletivas em templos e igrejas durante a pandemia. As
apresentações terrivelmente evangélicas feitas no STF pelo advogado-geral da
União e pelos advogados que defendiam a abertura dos templos e igrejas
trouxeram à tona, mais uma vez, a questão da laicidade do Estado brasileiro.
Até o presidente reforçou a defesa de cultos e missas presenciais como um
direito inerente a maioria, ignorando as ameaças à vida e a Constituição.
Estado é laico é o que promove oficialmente a separação
entre Estado e religião. A partir dessa separação, o Estado não deveria
permitir a interferência de correntes religiosas em assuntos estatais, nem
privilegiar uma ou algumas religiões sobre as demais. Essa situação existe no
Brasil desde a Proclamação da República, em decorrência do disposto na
Constituição de 1891, em que se explicita a rejeição da união entre o poder civil
e o poder religioso, pondo fim ao regime do padroado, que concedia privilégios
à Igreja Católica e no qual se confundiam o Estado e a Igreja. No laicismo,
cabe ao Estado garantir a liberdade e a igualdade de todos, independentemente
dos valores morais e religiosos.
Mesmo com maioria até aqui católica, o Brasil é oficialmente
um Estado laico, neutro no campo religioso, não apoiando nem discriminando
nenhuma religião. Apesar de citar Deus no preâmbulo, a Constituição federal é
clara ao vedar à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios
estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o
funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência
ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Dessa forma, a liberdade religiosa na vida privada é assegurada, desde que
separada do Estado. É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei,
a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Na minha visão, a separação Igreja-Estado foi um avanço e
está na base da formação dos Estados modernos. Com a República, o Estado
brasileiro tornou-se um Estado moderno, no qual não se busca a satisfação
espiritual, mas a expansão dos direitos humanos e das liberdades individuais.
Ao contrário do que se ouviu nos últimos dias, o Estado
brasileiro não se pode manifestar religiosamente. Como já foi dito por ministro
do STF, “os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais” e
“as concepções morais religiosas – unânimes, majoritárias ou minoritárias – não
podem guiar as decisões de Estado, devendo, portanto, se limitar às esferas
privadas”.
Nos últimos anos, o que se viu foi o contrário. A ameaça à
Constituição não é uma preocupação. Embora não se constituindo em movimento
único, pois há divergências entre elas, a influência das igrejas evangélicas,
em especial a Universal, aumentou significativamente e ganhou força política
real.
Sua eficiente arrecadação entre fiéis seduzidos e sua
capacidade televisiva e radiofônica, além da mídia impressa e de partidos
políticos, estão a serviço de um projeto político. Não é segredo para ninguém
que os evangélicos buscam alcançar, sem intermediários, o poder máximo da
República, depois de eleger prefeitos, governadores, senadores, deputados e
ministros das Cortes de Justiça. A Igreja Universal ataca a Igreja Católica e
exerce uma ação voltada para assumir a hegemonia do Estado.
Não se pode negar a competência e a eficiência da atuação da
militância evangélica, instalada agora em diferentes órgãos públicos federais,
na defesa de sua agenda de costumes, social, financeira e mesmo política, como
estamos vendo nas ações do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e
na política externa, nos últimos dois anos.
Pela primeira vez na História do Brasil, as igrejas
evangélicas atuam de maneira coordenada para chegar ao comando do poder
político. Em política não existe vazio. Se alguns setores ganham espaço, outros
perdem. É surpreendente que representantes da alta hierarquia da Igreja
Católica, em especial, não se tenham manifestado até aqui em defesa do Estado
laico e da separação clara do Estado e da religião.
Estamos diante de um problema político sério que a direita
evangélica traz para a democracia e afeta liberais, conservadores e
progressistas. Trata-se, na realidade, de um problema de dominação por uma
minoria e de reação contra o pluralismo.
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com
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