sábado, 12 de maio de 2018

Política e religião: é necessário separar uma da outra?


Publicado originalmente no site JLPolítica

Política e religião: é necessário separar uma da outra?

Por Tanuza Oliveira

Mistura nem sempre é fácil de ser administrada: “A política tem como princípio o diálogo, o debate; e a religião atua numa outra direção”, pondera o cientista social Marcelo Ennes

Dizem que política, religião e futebol não se discute. Juntar dois desses três temas "tabus", então, nem pensar. Mas, diante de tudo que vem acontecendo no cenário político-religioso do país, o JLPolítica decidiu não seguir essa máxima e trazer, sim, esse debate à tona. Afinal, apesar de não parecer, uma tem muito a ver com a outra.

Há milhares de anos, por exemplo, quando Pôncio Pilatos "lavou as mãos" e deixou que Jesus Cristo fosse crucificado, a ligação entre religião e política já existia. Quando Jesus entrou no templo e pediu que dessem "a Cézar o que era de Cézar e a Deus o que era de Deus, também.

De lá para cá, pode-se dizer que essa relação só se estreitou - embora haja a “lenda urbana” do Estado Laico. Prova disso é que, em 2016, nas últimas eleições, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral - TSE -, houve aumento no número de religiosos que pleiteavam um mandato.

Dados do TSE mostram aumento de 25% de pastores nas eleições de 2016

MAIS CANDIDATOS

Foram 25% a mais no número de candidatos que se identificavam como pastores, se comparado ao último pleito municipal, em 2012. Os dados mostraram que, entre candidatos a prefeito e a vereador, 2.579 dos concorrentes utilizaram o título “pastor” no nome da campanha.

Ainda de acordo com as informações do TSE, foram 557 as candidatas que se identificam como “pastora” e 15 que usam variações com diminutivo ou aumentativo - “pastorzinho” ou “pastorzão". Houve também aqueles que usaram o título como uma referência, como por exemplo, “Raquel do pastor João” - esses somaram 39.

Houve, ainda, 2.186 candidatos que registraram seus nomes de campanha como “irmão” e 841 que usaram “irmã” na apresentação. Entre os católicos, foram 150 candidatos que se apresentam como “padre” e 44 políticos que utilizam algum padre como referência no nome da urna.

A presença religiosa é ampla e não é restrita a cristãos. Além dos seis candidatos “freis” e 62 “bispos” – que podem ser católicos ou evangélicos neopentecostais –, houve 63 “pais” e 37 “mães” concorrendo nas eleições daquele ano, indicativos de ligação com religiões afro-brasileiras.

Marcelo Ennes não vê como possível essa interação (foto arquivo pessoal)

POLÍTICA X RELIGIÃO

Para o mestre em Ciências Sociais e Sociologia Marcelo Ennes, professor da Universidade Federal de Sergipe – UFS –, de fato essa relação não é nova. “Tivemos um longo período da história em que Estado e Igreja eram a mesma coisa. Onde a religião do rei ou da rainha deveria ser a de todos os súditos. Quem muda isso, simbolicamente, é a Revolução Francesa, e a instalação da República”, explica Marcelo.

De acordo com ele, é a República, regime sob o qual o Brasil é gerido atualmente, que separa o poder da Igreja do poder do Estado. “Esse é um dos princípios dela, porque a religião se dá numa esfera mais privada. Portanto, não é algo que o Estado possa impor ou estabelecer. Dentro do modelo republicano, há a coisa pública, que é a dimensão da vida política, e a coisa privada, dimensão na qual o Estado não interfere”, esclarece.

Até a proclamação da República – em 15 de novembro de 1889 –, portanto, não havia essa separação. O Brasil não era laico. E, embora o seja hoje, ao menos na teoria, o sociólogo acredita que essa laicidade está em risco em virtude desse movimento religioso-político que cresce cada vez mais. 

ESTADO LAICO?

“Acredito que estão colocando o Estado Laico sob ataque, porque esses religiosos organizados por meio de suas igrejas estão agindo de maneira a interferir no papel do Estado no sentido de sua atuação no espaço público. E fazem isso, por exemplo, quando tentam criar leis ou estabelecer normas”, justifica Marcelo Ennes.

Sejam essas normas do ponto de vista geral, ou específicas, como na educação, na cultura ou numa manifestação artística, preocupam. “Muitas vezes, essa manifestação é vista como pecaminosa. E a Igreja tem o direito de criticar, mas essa não pode se tornar uma ação do Estado, que tem que garantir a pluralidade, inclusive das manifestações contrárias às religiões. Mas é isso que vem acontecendo”, afirma.

Para Ennes, a existência de um Estado Laico protege aqueles que não são da religião predominante. E a quem interessa destruí-lo? “A quem quer impor sua crença de qualquer maneira”, diz. Um dos aspectos que levam a essa espécie de simbiose entre política e religião e colocam em xeque o Estado Laico é que tanto religião quanto política têm em seu núcleo o mesmo composto: o poder.

PODER E INTERESSE

É o poder o princípio de ambas. Mas, na opinião de Ennes, há de haver um limite entre elas. “As Igrejas podem existir, os líderes podem ter sua liberdade de expressão, mas isso não pode se tornar algo que seja específico da esfera do Estado, como vem acontecendo com as chamadas bancadas. Elas acabam tratando de interesses corporativos, específicos e, muitas vezes, não republicanos”, alerta.

Segundo ele, no caso das Igrejas, os interesses são o de aumentar seu poder de influência, seu poder econômico, e seu poder de condução da sociedade. E aqui é importante frisar: há distinção entre Igreja e religião.

“A religião é algo importante, que deve ser respeitado, considerado positivamente. Ninguém pode querer desmerecer qualquer tipo de religião. Já as igrejas são instituições e, como tal, elas se organizam com base em estruturas de poder e têm como objetivo agir para normatizar a sociedade”, define o sociólogo.

Dom João José Costa defende orientação, mas não candidatura

CATÓLICOS

Dom João José Costa, arcebispo Metropolitano de Aracaju, segue o ensinamento do Papa Paulo VI, que via a política como uma das melhores formas de fazer o bem, a caridade. Por isso, defende que cada vez mais cristãos participem do processo eleitoral, mas não de forma direta.

“Não sou a favor de que clérigos, sacerdotes, bispos ou diáconos se envolvam na política partidária, porque já temos nossa missão”, afirma Dom João. Segundo ele, a presença de cristão nesse meio é necessária em virtude dos rumos que a política vem tomando. “Precisamos ter cristãos envolvidos nela, porque a realidade nos deixa preocupados. Muitos políticos não têm ética”, justifica.

Para o arcebispo, boa parte dos políticos, em vez de estarem a serviço do povo, querem se aproveitar do serviço público. “Para mudar este quadro, precisamos de pessoas que não sejam cristãs só no nome, e sim na vivência. Pessoas que deem testemunho, porque a realidade é mesmo escandalosa, de muita corrupção”, reforça.

SEM RESTRIÇÃO

O arcebispo Dom João José Costa garante que a Igreja Católica não faz restrições à participação de religiosos na política que a opinião dele é pessoal, mas admite que para se candidatar os padres precisam se afastar das atividades ministeriais – ou seja, do Ministério Sacerdotal.

“Nós podemos fazer política sem estar em mandatos. Aliás, a simples decisão de querer ou não se envolver com política por si só já é um ato político. O ser humano é político em sua natureza”, opina.

Para ele, a junção entre política e religião pode permitir o engajamento de pessoas que de fato se preocupem com políticas públicas e sociais que amenizem o sofrimento, a dor e a exclusão de tantas pessoas no Brasil e no mundo.

POLÍTICA INDIRETA

Por isso, o trabalho de orientação também é fundamental. “A gente pede que as pessoas tenham responsabilidade diante das escolhas que vão fazer, porque você pode ser uma pessoa ética, mas se escolhe um político corrupto, está sendo conivente", ressalta.

E continua: "na política não tem como ser neutro, ou você contribuiu ou não contribui. Para contribuir, tem que escolher pessoas boas", sugere Dom João. Questionado sobre a diferença entre os números de pastores e padres na política, ele diz que a denominação pouco importa.

"Não me preocupo se é evangélico ou católico, mas sim cristão. Que ponha em prática o evangelho e não aja tirando direitos adquiridos, ou a própria vida, por exemplo. O essencial é não legislar como se Deus não existisse", analisa.

Moritos Matos: política é lugar de fazer o bem (foto Irlan Paccioli)

DA IGREJA PARA A URNA

Moritos Matos, deputado estadual pelo Rede Sustentabilidade, é cristão, católico e participa da encenação da Paixão de Cristo há muitos anos como o próprio Cristo. Na vida real, divide seu tempo entre as ações do mandato e as da igreja.

Para Moritos, assim como na vida dele, política e religião sempre andaram juntas. E, na visão do parlamentar, isso é bom. “Não tem como defender certos valores, como dignidade e caridade, propagados pelo evangelho, se você mão se envolver com a política. Porque quem formula as leis é o poder público”, justifica o deputado

Por isso, segundo ele, é importante que a igreja oriente os leigos em como participar da vida pública. Foi o que aconteceu com ele. “Tenho envolvimento na comunidade 18 do Forte, onde comecei a participar de movimentos da igreja, em especial da Legião de Maria”, revela Matos.

ATUAÇÃO

Mas também participou das Pastorais da Criança e do Menor e foi representante da Arquidiocese no Conselho do Direito da Criança e do Adolescente. “Tudo isso foi me mostrando o sofrimento das pessoas, das necessidades delas, e num determinado momento, o padre resolveu reunir algumas lideranças e, para a minha surpresa, meu nome foi escolhido para ser candidato”, lembra.

A sugestão não foi aceita. “Levei mais de dois anos para decidir e perceber que essa era uma nova missão para minha vida”, diz Matos. Ele foi eleito vereador e, depois, ficou como suplente de deputado, assumindo o mandato dois anos depois. “Hoje, estou nessa nova missão”, ressalta.

“Diante disso, eu acredito que a participação de religiosos na política seja positiva, porque é a defesa dos preceitos de forma ativa. Temos que ser cristãos dentro e fora da igreja, e a política é a melhor forma de fazer caridade”, acredita. Apesar disso, Matos não esconde sua decepção.

“São muitas denúncias, envolvimento com corrupção, coisas erradas, e isso gera descrédito.  O momento é ruim, mas temos que ter esperança, pois há pessoas que buscam melhorar a política. E que pensam no povo. Há políticos que servem à população em vez de se servir da política”, opina.

ORIENTAÇÃO AOS FIEIS

O Pastor Marcos Andrade, da Igreja Presbiteriana Renovada de Aracaju, garante que política e religião são duas coisas totalmente distintas e que não devem se misturar. “Na democracia, o Estado deve ser laico”, justifica Marcos Andrade.

No entanto, admite que podem andar lado a lado quando ambas as partes trabalham em busca dos mesmos valores. “Essa é a única forma positiva de relação. Porque quando a política busca seus próprios interesses na religião, ou vice e versa, isso se torna um grande perigo para toda a sociedade”, analisa.

Ele também reconhece que a ligação entre elas sempre existiu. “Desde quando o povo de Deus teve homens nomeados para liderar o povo e pensar em suas necessidades humanas, sociais e outras”, diz. Com relação ao número cada vez maior de evangélicos na política, ele acredita ser reflexo do próprio movimento vivido pelas igrejas.

Pastor Marcos Andrade prefere política e religião bem separadas (foto arquivo pessoal)

EVANGÉLICOS NO PODER

“Alguns resultados de outras pesquisas podem explicar esse fato como o crescimento do número de evangélicos, a participação das igrejas evangélicas em trabalhos sociais nas comunidades, e por fim, a liberdade que o protestantismo oferece às igrejas em relação à sua administração”, avalia.

“Em muitas igrejas, a decisão de um pastor candidatar-se pode ser exclusivamente dele, enquanto que para um padre deve ser submetido à todo sistema de organização eclesiástica”, completa, deixando claro que não é filiado a nenhum partido e que não pretende ser candidato.

O trabalho que o pastor defende é o da orientação os fiéis, que, na opinião dele, deve sim passar pelas igrejas. “Isso não inclui indicação de candidatos ou partidos, mas como portadores da verdade, não podemos negligenciar debates e reflexões sobre corrupção e justiça, por exemplo”, argumenta.

Segundo o pastor Marcos Andrade, a igreja não se tornou um grupo de ativistas políticos, pois seria um crime intervir no direito privado do cidadão escolher seus representantes, mas precisa acompanhar todo o processo político. “E, como organismo social, sempre questionar sobre as decisões e influências no contexto no qual a igreja está inserida”, ressalta.

UM PASTOR NA ALESE

O pastor Antônio dos Santos está em seu terceiro mandato de deputado estadual, já teve um de vereador por Aracaju e está na igreja há 48 dos 62 anos de vida. Ou seja: é difícil separar o pastor do político e vice-versa.

Sua atuação é reconhecida em todo o Estado e seu discurso é pautado nos valores cristãos, de modo a dificultar ainda mais essa distinção entre um e outro. “A religião veio primeiro e por vontade minha, a política veio depois e aconteceu meio sem querer”, lembra Pastor Antônio.

Ele sempre teve uma atuação muito voltada para o lado social: cuidou de jovens, de idosos, de pobres. E, aí, começou a perceber uma certa distância entre a política verdadeira, que, na opinião dele, deve existir para atender principalmente às demandas dos mais pobres.

MUDANDO REALIDADES

“Fiz algumas viagens para fora do país e constatei que a realidade brasileira, para alcançar um estágio considerado bom, precisava passar por mudanças. Fui convidado a ser candidato e, num primeiro momento, resisti, mas depois me dispus, justamente por entender que a política possibilita essa ação”, afirma Pastor Antônio.

Desde então, vê na junção das duas atividades a forma para mudar diversas realidades. “Está dando certo porque, ao contrário de muitas pessoas, não permiti que a política se sobrepusesse à religião. Eu disse a mim mesmo que a política não poderia me afastar de Deus”, relembra.

E não afastou. “Fui eleito, continuei como pastor, como pregador, fazendo o trabalho que sempre fiz.

A política é importante, mas não é maior nem melhor que Deus, então eu compatibilizo, faço dela um instrumento de conquistas do bem para a comunidade”, comenta.

Pastor Antônio tem política como ferramenta para conquistas sociais (foto arquivo pessoal)

APRENDENDO COM AMBAS

O religioso diz que entre a política e a religião também há um certo intercâmbio. Da religião para a política, ele afirma que leva os valores da família, da ética, da moral. “Na defesa desses valores, me posiciono contra tudo que vier a agredi-los, como a liberação do aborto, por exemplo”, admite. E continua: “há uma série de bandeiras ou valores que trouxe para o meu mandato político, e isso tem sido muito valorizado”, comemora.

Tanto que o Pastor Antônio se tornou presidente da Associação dos Parlamentares Evangélicos do Brasil. Por conta disso, foi convidado para um café da manhã com o então presidente Barack Obama. “Dois meses depois, fui convidado para a Cúpula Mundial de Valores, em Washington. Tudo isso agregou à minha vida política”, considera.

Já da política para a religião, ele diz que levou uma coisa fundamental: a importância da legislação. “Vivemos sob a égide de todas as leis. E se no ambiente da legislação, não houver alguém que tenha conhecimento desses valores e habilidade para colocá-los diante das pessoas, elas podem ser formuladas de modo prejudicial”, avalia.

Ele garante que há uma relação harmoniosa com os demais deputados da Assembleia Legislativa – seja os da situação ou os da oposição. “Independentemente de que lado estejam, acabam votando minhas matérias”, assegura.

RELAÇÃO PERIGOSA

Ao falar na legalização do aborto, o Pastor Antônio toca num dos pontos mais polêmicos e mais criticados pelo sociólogo Marcelo Ennes, já que infere exatamente no que ele chama de espaço privado. “O papel do Estado é garantir a liberdade religiosa e não interferir na vida das pessoas a esse ponto. A religião, através da política, não pode definir o que é certo ou errado, legal ou ilegal”, critica Marcelo.

O delegado e pré-candidato a deputado federal pelo PSOL, Mário Leony, concorda. “A bancada evangélica levanta pautas extremamente conservadoras, que precisam ser questionadas. Porque o religiosismo alienante é um risco. Mas é importante ressaltar que não são todos os evangélicos que são lgbtfóbicos, por exemplo”, ressalta Mário.

CRISTÃO E DIÁLOGO

O próprio delegado é cristão do Centro Espiritualista, frequenta o Instituto Salto Quântico, onde o evangelho é o de um cristo libertário, que sempre esteve ao lado das mulheres, das prostitutas, dos pobres.

“É lamentável quando usam o nome de Jesus para demonizar determinados segmentos da sociedade. A gente não quer se contrapor a Jesus. A gente quer combater a hipocrisia, o religiosismo que oprime mulheres e lbts”, argumenta.

E é justamente isso que, para Marcelo Ennes, inviabiliza a relação entre política e religião. “Se você discordar dos dogmas, já não é plausível que haja entendimento. A política tem como princípio o diálogo, o debate, e a religião, mesmo não sendo necessariamente contrária a ele, atua numa outra direção”, rebate.

Mário Leony: “bancada evangélica levanta pautas 
extremamente conservadoras"(foto arquivo pessoal)

Texto e imagens reproduzidos do site:  jlpolitica.com.br

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