Publicado no BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 22 de julho de 2020
A praga do arco-íris
É preciso acomodar a religião para que ela não seja
incompatível com a liberdade e a legalidade da ordem democrática.
> Artigo do escritor Mario Vargas Llosa para o El
País:
Tenho Anne Applebaum como uma das melhores jornalistas
contemporâneas.
É norte-americana, casada com um polonês democrático e
liberal e vive na Polônia. Seus livros e artigos sobre a desaparecida URSS e os
países do Leste Europeu, que aparecem na The Atlantic, costumam ser magníficos,
bem pesquisados, escritos com ordem e elegância, geralmente imparciais. Vi sua
assinatura entre os 150 intelectuais, a maioria de esquerda, que recriminam
seus colegas mais radicais por derrubar estátuas e praticar o ódio e a censura,
como se um bom número deles não tivesse sido ensinado a ser assim. Mas, pelo
menos no caso dela, acredito que essa singularidade é compatível: o esquerdismo
e a vocação democrática.
O último artigo de Anne Applebaum sobre o segundo turno das
eleições polonesas do domingo passado é muito proveitoso. Revela a campanha
contra os homossexuais que permitiu ao presidente polonês, Andrezj Duda, do
partido Lei e Justiça, ganhar, por pouquíssimos votos, um novo mandato,
derrotando Rafal Trzaskowski, prefeito de Varsóvia, que havia prometido apoiar
a comunidade gay e aumentar as aulas contra a discriminação e o assédio nas
escolas.
Não tenho nada contra a Polônia, um dos países mais sofridos
e ocupados por seus vizinhos poderosos ao longo de sua trágica história, e uma
enorme simpatia por sua alta cultura, suas magníficas livrarias e editoras, e
por seu cinema e teatro, onde, já faz muitos anos, vi uma obra minha encenada
com mais talento e originalidade do que em qualquer outro país. Mas,
naturalmente, me preocupa a deriva cada vez mais reacionária, antiliberal e
antidemocrática de um Governo que, apoiado principalmente pela cúpula da Igreja
Católica e pelos camponeses e cidadãos mais tradicionais, crentes e
praticantes, está dissociando cada dia mais a Polônia da Europa livre e
moderna, retrocedendo-a a um passado autoritário.
Nesta campanha eleitoral se viu com muita clareza, onde, de
acordo com o depoimento de Anne Applebaum, o acrônimo LGTB desempenhou um papel
central. O presidente Duda, que buscava a reeleição, declarou que “os LGTBs não
são o povo, são uma ideologia mais destrutiva do que o comunismo”, e atacou seu
adversário durante toda a campanha, acusando-o de querer “a sexualização das
crianças” e “a destruição da família”. A cúpula da Igreja Católica polonesa,
aparentemente também muito conservadora, acredita, como João Paulo II, que os
homossexuais são “a praga do arco-íris” e que a pretensão de que os gays
revolucionem a sociedade não é “polonesa”, mas alemã e judia, e uma das
televisões estatais martelou os telespectadores com essa pergunta racista e
estúpida, mas que, a julgar pelos resultados da eleição, foi bastante eficaz:
“Trzaskowski cumprirá as exigências judaicas?”. E outro líder do partido Lei e
Justiça, Jaroslaw Kaczynski, declarou que o atual prefeito de Varsóvia não tem
“coração polonês”, mas estrangeiro. Portanto, não foi apenas o ódio aos gays
que teve um papel importante nas eleições, mas também duas velhas taras
sanguinárias: o nacionalismo e o antissemitismo.
O catolicismo do povo polonês não é incompatível com a
democracia, desde que, como aconteceu em todas as democracias civilizadas
—também existem as fanáticas e iliberais—, a religião esteja isenta de
preconceitos, como na França, Inglaterra e Espanha, para dar apenas três
exemplos que conheço de perto, de uma militância religiosa que não esteja
manchada por taras nacionalistas nem preconceitos racistas. É claro que, depois
de ter sido humilhada, discriminada e transtornada pela propaganda
marxista-leninista durante sua condição de satélite da União Soviética por
tantos anos, não surpreende que grande parte dos poloneses tenha apostado no
partido da ordem e da tradição, como é o Lei e Justiça. Mas os resultados da
recente eleição, em que o prefeito Trzaskowski perdeu para o presidente Duda
por um ínfimo ponto e pouco de votos, mostram que os atuais governantes já
estão na corda bamba e que, por qualquer excesso que cometerem ao lidar com o
poder, poderiam perdê-lo em uma nova eleição, que devolveria a Polônia à
genuína democracia, como acontece com a grande maioria dos países pertencentes
à União Europeia; não é o caso da Hungria, uma sociedade que, neste momento, é
muito difícil continuar chamando de democrática.
Embora não seja crente, estou convencido de que a maioria
dos seres humanos, que teme a morte, precisa da religião para viver com certa
confiança e sossego, porque a ideia da extinção definitiva atordoa e atormenta
as pessoas e as impede de viver e trabalhar em paz. Por isso não se deve acabar
com a religião, fato que a história já declarou ser um sonho impossível, mas
acomodá-la de tal maneira que não seja incompatível com a liberdade e a
legalidade da ordem democrática, a única que representa, pelo menos como
hipótese, uma sociedade justa, diversa e solidária. Hoje muitos países parecem
ter alcançado essa homologação compatível de valores religiosos e democráticos.
Anne Applebaum pensa que isso é possível na Polônia? Ou teme
que ambas as coisas sejam impossíveis nesse país, do qual, além disso, é
evidente que se sente muito próxima? Seu artigo, é claro, não se evapora em
considerações imprecisas e ressalta que, provavelmente, depois de sua vitória
apertada, o partido Lei e Justiça fará o possível para acalmar os ânimos. Vê
sintomas disso na filha do vencedor, Kinga Duda, que na noite da vitória do pai
fez um discurso dizendo “que ninguém em nosso país deve ter medo de sair de
casa” por “aquilo em que acreditamos, qual cor de pele temos, qual valores
defendemos, qual candidato apoiamos e queremos”. Tomara que sejam crenças
arraigadas, e não “sonhos de ópio”, como as chamava Valle Inclán.
No entanto, alguns temores que seu artigo expressa são
profundamente preocupantes. Já não se trata de perseguir os gays, ou
agredi-los, como chegou a acontecer, e sim à imprensa em papel e imagem, que
ainda é bastante independente e livre na Polônia. Mas se as intenções de certos
líderes do Lei e Justiça forem cumpridas, esta realidade poderia ser
radicalmente transformada. A independência da imprensa livre se deve, em grande
parte, ao fato de seus proprietários serem empresários estrangeiros que nos
últimos tempos foram acossados por inspeções fiscais ou investigações sobre
suposta corrupção. Uma campanha nacionalista —a polonização dos veículos de
comunicação— gostaria de obrigá-los a vender jornais e canais de TV. É preciso
que a União Europeia intervenha de maneira decisiva, pondo fim a essa campanha,
porque sem a existência de uma imprensa livre não há democracia que sobreviva.
Os poloneses deveriam saber disso melhor do que ninguém.
O atual Governo da Polônia, como todos os Governos do mundo,
tenta controlar a imprensa e se livrar daqueles porta-vozes que a partir dela o
vigiam, denunciam seus desacertos e patifarias reais ou inventadas e costumam
estar nas mãos de seus oponentes e de jornalistas honestos, desaparecer aqueles
e calar ou comprar estes últimos. O que acontece é que nos países com poderosas
tradições democráticas não podem fazê-lo, a própria sociedade impede. Este é o
ideal que, com o tempo, qualquer país pode alcançar. Toda democracia jovem ou
recente será sempre imperfeita e, talvez, a perfeição neste campo seja
impossível de alcançar. O importante é manter viva uma imprensa livre, até que
isso se torne um costume ao qual a sociedade em seu conjunto não queira
renunciar. Esta já é uma grande vitória, somente possível nos países que,
superando todo o resto, escolheram ser verdadeiramente livres.
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com