Regina Duarte, atriz e nova Secretária Especial de Cultura
do governo federal
Foto: Governo do Estado de São Paulo
Publicado originalmente no site da revista CULT, em 4 de
fevereiro de 2020
Regina Duarte e o marxismo cultural
Por Cláudio Oliveira
A propósito do vídeo compartilhado pela atriz Regina Duarte,
recentemente convidada pelo presidente Jair Bolsonaro para assumir a Secretaria
Especial da Cultura, em que um ex-BBB faz declarações críticas contra o que ele
(e muitos no atual governo) chama de “marxismo cultural”, me ocorreu, até para
entender melhor esse depoimento que a atriz achou “bacana, profundo, super
real”, perguntar: o que é o marxismo cultural?
No vídeo, o ex-BBB dá sua própria definição da expressão: o
marxismo cultural, segundo ele, “coloca negros contra brancos, mulheres contra
homens, homossexuais contra heterossexuais”. Segundo ele ainda, a esquerda
identitária, aquela que trata de questões relativas a raça e gênero, seria uma
exemplo clássico de marxismo cultural. Em suas palavras, como “o comunismo
acabou”, “o proletariado contra a burguesia não existe”. O marxismo cultural
teria assim surgido em uma mudança dentro do próprio marxismo, substituindo o
“divisionismo” entre classes sociais, pelo divisionismo entre “classes étnicas,
sexuais”. Ele conclui o seu depoimento dizendo que as pessoas que constituem o
“marxismo cultural” são “pessoas que se colocam no lugar de vítima para
massacrar as outras”.
Eu gostaria de me deter no depoimento do ex-BBB porque creio
que há muitos elementos importantes no modo como ele caracteriza o “marxismo
cultural”. Como vimos, ele afirma que o “marxismo cultural” coloca “negros
contra brancos, mulheres contra homens, homossexuais contra heterossexuais”. A
frase tem a sua verdade, desde que possamos reescrevê-la assim: o marxismo
cultural coloca oprimidos contra opressores, as vítimas contra os algozes.
Negros foram e continuam a ser oprimidos pelos brancos, mulheres foram e
continuam a ser oprimidas pelos homens, homossexuais foram e continuam a ser
oprimidos pelos heterossexuais. Negros, mulheres e homossexuais foram
historicamente objeto de violência por parte de seus opressores, os brancos, os
homens e os heterossexuais, e continuam a sê-lo nos dias de hoje. Ao defender
que essa violência deve cessar, o “marxismo cultural” estaria colocando esses
grupos oprimidos contra seus opressores, o que, para o ex-BBB e a sua
admiradora, a atriz Regina Duarte, seria inaceitável. Essas pessoas, os negros,
as mulheres e os homossexuais, seriam, segundo eles, “pessoas que se colocam no
lugar de vítima para massacrar as outras”, ou seja, elas não são vítimas de
verdade. As pessoas que são brancas, homens e heterossexuais, essas pessoas sim
é que são as verdadeiras vítimas, as vítimas do “marxismo cultural”. O
“marxismo cultural” seria, então, esse massacre perpetrado pelas falsas vítimas
contra os falsos opressores, as verdadeiras vítimas.
Aqui caberia perguntar: o ex-BBB, e sua admiradora, a atriz
Regina Duarte, que acha seu depoimento “bacana, profundo, super real”, estão
dizendo que os negros, as mulheres e os homossexuais não são vítimas de
violência por parte dos brancos, dos homens e dos heterossexuais? Ou estão
dizendo que não há nada de errado no fato de que essas pessoas sejam objeto de
tal violência e opressão? A fala do
ex-BBB parece ir na direção da primeira possibilidade ao afirmar que essas
“pessoas se colocam no lugar vítimas”. Ou seja, para ele, essas pessoas não de
fato são vítimas. Elas não sofrem qualquer tipo de violência ou opressão. Elas
apenas se colocam nesse lugar para massacrar as outras, que elas consideram
como opressores, mas que na verdade não o são.
Mas eu diria que a verdade sobre a sua fala está muito mais
na direção da segunda possibilidade: pessoas como o ex-BBB e como Regina Duarte
não creem que os negros, as mulheres e o homossexuais sejam vítimas porque,
para eles, não há nada demais no fato de que eles sejam tratados como são
tratados. Já que, desde sempre, eles foram tratados assim. E que mal haveria
nisso? A própria Regina Duarte, dois dias antes do segundo turno das últimas
eleições, após encontrar o então candidato Jair Bolsonaro, deu o seguinte
depoimento para o jornal O Estado de São Paulo: “Quando conheci o Bolsonaro
pessoalmente, encontrei um cara doce, um homem dos anos 1950, como meu pai, e
que faz brincadeiras homofóbicas, mas é da boca pra fora, um jeito masculino
que vem desde Monteiro Lobato, que chamava o brasileiro de preguiçoso e que
dizia que lugar de negro é na cozinha”. O depoimento da atriz desmente que
Bolsonaro seja homofóbico e racista, assim como, ao corroborar o depoimento do
ex-BBB sobre marxismo cultural, desmente que haja violência e opressão contra
os negros, as mulheres e os homossexuais.
O marxismo cultural consistiria então em ver algo errado
onde não há nada de errado e em convencer os negros, as mulheres e os
homossexuais de que eles são vítimas, de que não devem aceitar o tratamento que
lhes foi dado até hoje embora esse tratamento seja totalmente normal aos olhos
do ex-BBB e da atriz e atual Secretária de Cultura. Nesse sentido, o que o
“marxismo cultural” faria seria o que o ex-BBB entende por “colocar negros
contra brancos, mulheres contra homens, homossexuais contra heterossexuais”,
sem nenhuma razão real para isso. Dizer, portanto, que o “marxismo cultural”
coloca negros contra brancos, mulheres contra homens e homossexuais contra
heterossexuais é desmentir o fato de que existe violência contra negros,
mulheres e homossexuais. O desmentido seria, assim, a característica
fundamental do atual governo, o que mostra seu traço perverso. Não haveria,
segundo eles, violência contra negros, mulheres e homossexuais, do mesmo modo
como não há desmatamento na amazônia e
do mesmo modo como a terra não é redonda.
Um outro elemento interessante na fala do ex-BBB é o fato de
ele ver o marxismo cultural como o modo como o marxismo sobrevive em nossos
dias. Segundo ele, como “o comunismo acabou” e como ““o proletariado contra a
burguesia não existe” mais, então é preciso criar um “divisionismo” não entre
classes sociais, no “antigo marxismo”, mas entre “classes étnicas, sexuais”. É
o que ele chama de “esquerda identitária”.
Também aqui, creio que há algo de verdadeiro em sua fala. O
fato de que o marxismo atual, sem dúvida alguma, vem denunciar, e muito, não só
a exploração do proletariado, da classe trabalhadora, pela classe burguesa,
detentora do capital e dos meios de produção, mas também todo e qualquer tipo
de opressão, é uma grande verdade: não apenas a exploração dos pobres pelos
ricos, mas a opressão dos negros (e índios) pelos brancos, das mulheres pelo
homens, do homossexuais (e transexuais) pelos heterosexuais deve ser condenada.
Talvez essa faceta do marxismo atual, essa que o ex-BBB chama de “marxismo cultural”
e de “esquerda identitária”, tenha ganhado tal força nos últimos tempos que
tenha obscurecido a luta original dos pobres contra os ricos, da classe
trabalhadora contra a burguesia. Uma luta não pode, no entanto, ser dissociada
da outra, e é por isso que, em nosso país, foram os partidos de esquerda que
avançaram nas pautas chamadas de identitárias, contra o racismo, o sexismo e a
homofobia, porque entenderam que esse era um desdobramento natural do movimento
civilizatório e da perspectiva marxista.
Talvez, hoje, a força do capitalismo seja tão dominante que
ninguém acredite mais na força da luta da classe trabalhadora contra a opressão
do capital, como fica evidente na fala do ex-BBB; talvez hoje a luta só seja
possível no campo chamado de identitário, na medida em que talvez alguns,
dentro do capitalismo, almejem um capitalismo sem opressão dos negros, das
mulheres e dos gays. Mas, no caso do ex-BBB, nem mesmo essa concessão poderia
ser feita. A vitória dos ricos contra os pobres (a ideia de que os ricos têm o
direito de explorar os pobres) seria também a vitória dos brancos contra os
negros, dos homens contra as mulheres e dos heterossexuais contra o
homossexuais. Essa talvez seja a diferença entre uma certa direita e a extrema
direita. A direita, mesmo que defendendo a exploração da classe trabalhadora
pelos detentores do capital, mesmo que defendo o capitalismo na sua forma
atual, neoliberal, é capaz de aceitar as pautas do marxismo cultural. Por isso,
até mesmo um político do PSDB poderia defender a parada gay de São Paulo, ou
condenar o feminicídio ou apoiar uma política de cotas nas universidades. Ou
seja, a direita tradicional seria crítica apenas em relação ao marxismo
tradicional, aquele que representa um questionamento do capitalismo. Quanto ao marxismo
cultural, não haveria nele nada que políticos de direita não possam aceitar. O
passo para a extrema direita seria dado apenas quando nem mesmo as teses do
marxismo cultural podem ser aceitas. O governo atual, de extrema direita, é,
nesse sentido, não apenas anti-marxista no sentido tradicional, como contrário
também ao “marxismo cultural”. O que gera problemas para alguns meios de
comunicação, como a Rede Globo e a Folha de São Paulo, que defendem algumas
ideias do marxismo cultural, mas são igualmente defensoras do neoliberalismo na
política econômica.
É interessante a esse respeito ver como jornalistas nesses
meios de comunicação apoiam abertamente a política econômica do governo
Bolsonaro sem nem se pronunciar sobre questões relativas à cultura, à educação
e aos direitos humanos. Recentemente a Fiesp, através de seu presidente, Paulo
Skaf, afirmou: “Apoiamos Bolsonaro, que pôs o país no rumo certo”.
Ora, será que é tão difícil ver que se trata da mesma mesma
coisa? Que não se pode criticar a violência contra as mulheres, os negros e os
gays sem se criticar ao mesmo tempo a violência contra os pobres, os
explorados, os oprimidos, os proletários? Nesse sentido, o depoimento do ex-BBB
é mais coerente do que o desses jornalistas: para ele, poderíamos supor, pobres
são falsas vítimas, tanto quanto negros, mulheres e homossexuais. Essa é uma
verdade que vem da boca do atual ministro da economia, Paulo Guedes: pobres são
pobres não por causa de um sistema econômico que os explora, eles são pobres
porque gastam muito, porque não sabem poupar. O ministro foi ainda mais longe
em recente declaração dada em Davos e culpou os pobres não apenas pela própria
pobreza mas também pela destruição do meio ambiente. Ou seja: o ministro é o
complemente econômico das palavras do ex-BBB que tanto comovem a atriz Regina
Duarte. O ministro da economia e a secretária de cultura fazem parte de uma
mesmo princípio fundamental que está presente em todos os níveis e áreas do
atual governo e da sociedade que o elegeu e que ele representa.
Em outras palavras, os que defendem o atual governo são
supremacistas que advogam abertamente a superioridade dos ricos em relação ao
pobres, dos brancos em relação aos negros, dos homens em relação às mulheres,
dos heterossexuais em relação aos homossexuais. É preciso que entendamos esse
ponto: é o mesmo mecanismo que está em jogo na opressão dos pobres, dos negros,
dos índios, das mulheres, dos homossexuais. Esse ponto é fundamental na
discussão atual sobre o que está em curso no Brasil. Isto é, o que está em
curso no Brasil é um capitalismo sem direitos humanos, sem feminismos, sem
política de gênero, sem cotas raciais. Um capitalismo, portanto, que estende a
opressão contra os pobres, para as mulheres, os negros e os homossexuais. Se
você é pobre, mulher, negra e homossexual, então você terá todas as forças
contra você.
Mas há ainda um outro ponto quanto à expressão “marxismo
cultural” para o qual eu gostaria de chamar atenção. Por que as lutas dos
negros, das mulheres e dos homossexuais está associada à cultura?
Na fala do ex-BBB que comove a atriz Regina Duarte,
parece-me implícita a ideia de que o meio cultural é marxista. Ou seja, pessoas
que lidam com arte e educação, artistas, intelectuais, cientistas e
professores, são em geral “marxistas”. É claro que o ex-BBB acredita que eles
sejam de fato marxistas, isto é, que sejam pessoas orientadas pelas teorias de
Karl Marx. Mas podemos considerar que “marxistas” aqui indica apenas que são
pessoas que lutam por relações de igualdade entre todos, entre negros e
brancos, mulheres e homens, homossexuais e heterossexuais. Isso porque todo
relacionamento com a cultura, com a arte, com a educação traz a ideia de que as
pessoas devem ter direitos iguais, oportunidades iguais, para desenvolverem
suas próprias singularidades. Ou seja, por trás da denominação “marxismo
cultural” está presente a ideia não só de que o marxismo se torna cultural,
portanto ligado às lutas de gênero e de raça, mas também a ideia de que a
cultura se torna marxista, na medida em que é a cultura, enquanto processo
civilizatório, que nos leva a condenar qualquer tipo de desigualdade e de
violência, seja contra pobres, negros, índios, mulheres ou homossexuais. A
ideia de que possa existir uma Secretária Especial de Cultura que ache “bacana,
profundo, super real” o depoimento do ex-BBB sobre o marxismo cultural nos
assusta, pois nos mostra uma Secretária de Cultura que não tem Cultura, que não
partilha de princípios civilizatórios mínimos. Trata-se, portanto, como muitos
já apontaram, de um retrocesso civilizatória em curso no país.
Em O Mal-estar na Civilização, Freud nos mostrou que o
processo civilizatório implica várias formas de frustração para as pulsões de
morte, ou seja, para os impulsos de violência, destruição e agressividade que
constituem todos os seres humanos. Para ele, “é necessário levar em conta o
fato de que em todos os seres humanos se acham tendências destrutivas, ou seja,
antissociais e anticulturais, e de que estas, em grande número de pessoas, são
fortes o bastante para determinar sua conduta na sociedade humana”. Como essas
tendências não são totalmente elimináveis pelo processo civilizatório, suas
esperanças em uma civilização completamente livre delas são pequenas, mas ele
acredita que “se for possível converter em minoria a maioria que hoje é hostil
à cultura, muito se terá alcançado, talvez tudo o que se pode alcançar”.
No Brasil de hoje, vemos um movimento contrário ao que Freud
defende, em que a maioria se tornou hostil à cultura, e em que a Secretária de
Cultura é contra a cultura e o “marxismo cultural”. No Brasil de hoje, as
tendências destrutivas, agressivas, violentas, em suma, anticulturais, se
encontram no poder. A namoradinha do Brasil, que acaba de assumir a Secretaria
Especial de Cultura, é, na verdade, a namoradinha do Brasil da extrema direita.
Mas isso, todos nós sempre soubemos, pelo menos desde que ela veio a público
dizer que tinha medo diante da possibilidade de eleição para presidente de um
representante da classe trabalhadora, a classe oprimida por excelência.
Cláudio Oliveira é filósofo, tradutor e professor associado
do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Texto e imagem reproduzidos do site: revistacult.uol.com.br