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sábado, 22 de março de 2025

Nas ditaduras, a vida não tem paredes e nem mesmo os sonhos estão a salvo

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 18 de março de 2025

Nas ditaduras, a vida não tem paredes e nem mesmo os sonhos estão a salvo.

Escritora mostra os sonhos que os alemães tiveram entre 1933 e 1939. João Pereira Coutinho para a FSP:

Alguém dizia que o verdadeiro problema de estar preso é não poder trancar a porta por dentro.

Nunca estive preso. Mas imagino que esse seja o maior dos terrores: a porta se abre a qualquer momento para que o Estado exerça a sua violência sobre nós.

Em ditadura, deve ser a mesma coisa. Aliás, o que é uma ditadura senão uma prisão coletiva?

O filme "Ainda Estou Aqui" ilustra essa dinâmica na perfeição. Verdade: os jagunços batem à porta dos Paiva. Mas é apenas uma cortesia ilusória.

A invasão do espaço íntimo, com seu cortejo de abusos e boçalidades, é o prelúdio de um crime maior: o assalto a uma família e a destruição física de um dos seus membros.

Para o poder ditatorial, a vida não tem paredes, eis o ponto. Só os sonhos estão a salvo, embora haja quem discorde: a escritora alemã Charlotte Beradt (1907–1986) dedicou-se a registrar os sonhos que os alemães tiveram entre 1933 e 1939 para mostrar os tentáculos invisíveis do totalitarismo.

O resultado é uma obra-prima intitulada "O Terceiro Reich do Sonho", traduzida para o português por Mário Gomes e publicada pela editora lusa VS. É um dos meus grandes livros do ano.

Não há violência física nesses sonhos, porque Beradt optou por não publicar esses relatos. Curiosamente, Walter Salles também ocultou essa dimensão mais primitiva e bárbara. Entendo. Não devemos dar aos algozes a alegria de contemplarem suas próprias atrocidades.

A violência assume outra forma: a transformação do cotidiano em um "estado de exceção", onde não há lugar para segurança e previsibilidade e onde até os objetos mais banais se tornam provas incriminatórias.

Ou então, em vozes inquisitoriais, repetindo mecanicamente a propaganda do regime ou acusando os indivíduos de suas falhas e misérias, como em "1984", de George Orwell.

Os alemães sob Hitler sonhavam que as palavras mais inocentes —"eu", "Deus", "infelicidade"– os condenavam de imediato. Sonhavam que os próprios pensamentos estavam sob escuta. Sonhavam em língua estrangeira (e estranha) para que nem eles pudessem decifrar o que diziam ou pensavam.

Entre 1933 e 1939, sonhou-se muito com narizes grandes e peles morenas, mesmo entre os "arianos", como se as dimensões do corpo ou a pigmentação da pele fossem marcas de infâmia.

Documentos ou passaportes eram constantes nesses filmes oníricos. Como se o papel certo, ou errado, fosse a diferença fundamental entre a vida e a morte. Ver os documentos destruídos, perdidos, esquecidos –o maior dos pesadelos, no sentido literal e metafórico.

E que dizer da professora de matemática que sonhava recorrentemente com uma Alemanha onde até a matemática tinha sido proibida?

Ela, apesar de tudo, conseguia ainda escrever algumas equações em segredo, como se os números a mantivessem ligada a uma vida que perdera.

No livro de Beradt, dois sonhos em especial possuem qualidades literárias que os elevam acima de um simples documento histórico. Poderiam ter sido escritos por Kafka, não fosse ele já o autor de todos os pesadelos possíveis.

O primeiro, recorrente, pertence a um industrial alemão, social-democrata, que recebe a visita de Goebbels na sua fábrica. Em frente aos trabalhadores, o homem demora 30 longos minutos a levantar o braço para fazer a saudação nazi.

Numa das versões, o esforço é tanto que o industrial quebra a coluna, como se fosse um boneco enferrujado.

No segundo sonho, um médico antinazista é chamado de urgência para tratar Hitler. O homem vai, cura o ditador, é elogiado por ele –e sente orgulho pelo seu feito ao mesmo tempo em que chora de vergonha por sentir orgulho.

Nos dois casos, a violência não vem apenas do regime, mas também dos próprios indivíduos contra si mesmos. Essa é uma das conclusões de Charlotte Beradt sobre o totalitarismo: o medo e o terror são tão interiorizados que os indivíduos acabam se tornando "cúmplices" involuntários da própria submissão.

Aliás, se dúvidas houvesse, a autora apenas cartografou um único sonho em que Hitler era assassinado. Matar o tirano era não só indizível como inimaginável.

Nessa galeria de sonhos, Beradt dedica um capítulo aos sonhos dos judeus, que, estranhamente, tragicamente, oscilam entre a tentativa de cortejar as boas graças de Hitler e a imperiosa necessidade de fugir dele.

Num desses sonhos, um judeu viaja ao Único País que não Odeia Judeus (assim referido), atravessando as terras geladas da Lapônia. Mas, ao chegar à fronteira da salvação, até essa última porta se fecha na sua cara.

Entre as portas que não conseguimos trancar e aquelas que não conseguimos abrir, que venha o diabo e escolha.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Não estou nem aí


 Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 29 de juho de 2024

Não estou nem aí

Guerras culturais produziram uma versão horripilante dos cachorros de Pavlov. João Pereira Coutinho para a FSP:

Domingo de manhã. Acordo tarde e a más horas. Ponho os óculos, olho para o celular, fico alarmado com vários telefonemas não atendidos —sempre do mesmo número.

Primeiros pensamentos: a China invadiu Taiwan?

Israel está em guerra com o Líbano?

Putin invadiu um país da Otan?

Calma, deixaram uma mensagem: "Você pode comentar a ‘A Última Ceia’, versão gay, dos Jogos Olímpicos de Paris?".

Confuso, tiro os óculos. Penso: noites de excesso terminam assim. Estou surtando. Tenho de mudar de vida.

Nos entretantos, vou dormir mais um pouco.

Quando a tarde começa, levanto-me, ligo a televisão e a alucinação continua. Agora, há debate: era "A Última Ceia" de Leonardo Da Vinci com o pessoal do alfabeto —ou, cuidado, "A Festa dos Deuses", de Jan van Bijlert?

É um alívio saber que estou são. O mesmo não posso dizer da espécie "homo sapiens": em 2024, uma paródia qualquer alimenta horas de polêmica inflamada.

Eis o mundo que as guerras culturais produziram: uma versão horripilante dos cachorros de Pavlov. Quando um dos lados provoca, o outro começa a salivar.

Desta vez, foi com a religião. Seria a mesma coisa se alguém provocasse com os santos laicos do progressismo "woke".

Nesse pingue-pongue primitivo, haverá ainda espaço para os indiferentes? Para gente que não está interessada, que não quer saber, que não quer participar nessa conversa?

O ensaísta Mark Lilla, no seu "On Indifference", defende bem os indiferentes. Para a mente dogmática, escreve ele, existem dois fantasmas principais: o diferente e o indiferente.

O primeiro é um inimigo óbvio. É aquele que pensa o oposto de mim, pondo em causa os conceitos rudimentares que tenho na minha cabeça rudimentar.

Por experiência própria, confirmo que quanto mais rudimentar é uma pessoa, mais histérica ela se torna na defesa da sua sucata mental.

Onde existe verdadeiro conhecimento —e o conhecimento contém sempre algo de aberto e provisório— não há motivo para alarme só porque uma mosca caiu na sopa.

O dogmático é aquele que declara guerra às moscas.

O diferente é o ateu —para o crente. É o crente —para o ateu. É o progressista —para o reacionário. É o reacionário —para o progressista.

Ironicamente, e apesar de se odiarem em público, um não consegue viver sem o outro. Um não existe sem o outro.

Mas o indiferente é bem pior. Como é possível que exista alguém que boceja quando eu estou disposto a dar a minha vida por uma certeza?

Como tolerar esse desrespeito pela minha vaidade?

O indiferente termina a conversa antes mesmo de ela começar. O indiferente não dá troco. O indiferente não pode ser refutado, como Pascal percebeu ao escrever sobre o cético —e perigoso— Montaigne.

A expressão brasileira "não estou nem aí" capta na perfeição essa ausência ofensiva.

Como lembra Lilla, não foi por acaso que, no século 19, o papa Pio 9º considerou o liberalismo e o indiferentismo como as "pestes" da era moderna.

Mas a importância do ensaio de Lilla está no fato de ele defender como os Estados Unidos se transformaram no inferno dos indiferentes. Se eu não pertenço a uma patrulha, nem estou interessado nas utopias coletivas que elas defendem, que caminho me resta?

Resposta do autor: o caminho da solidão rural, do anonimato urbano ou do exílio voluntário, como sucedeu a incontáveis indiferentes.

Os outros, os não indiferentes, os que aceitam marchar ao som da música, sinalizam a sua virtude como os antigos cristãos faziam prova social da sua fé.

Como reconhece Lilla, já não financiam cruzadas, nem encomendam altares, nem fazem peregrinações aos locais santos.

Mas há outras formas de participar na intensa religiosidade profana em que a política moderna está transformada —repetindo dogmas, perseguindo hereges, prometendo a salvação dos mais fiéis.

Em 2024, uma dose generosa de indiferença não é apenas legítima; é vital, sobretudo perante a americanização do mundo com suas guerras culturais importadas.

Não se trata de uma forma de desistência. Pelo contrário, é uma forma de resistência para não sermos macacos de imitação em jaulas que não nos pertencem.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

domingo, 5 de maio de 2024

Até na ex-Iugoslávia a guerra civil era vista como ficção

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 1 de maio de 2024

Até na ex-Iugoslávia a guerra civil era vista como ficção

Guerra aberta depende da responsabilidade do líder do país em não explorar os medos da população. João Pereira Coutinho para a FSP:

Bons tempos, aqueles, em que as ameaças vinham do espaço –meteoritos, invasões alienígenas, radiações cósmicas.

Ou, para não sermos tão megalômanos, os perigos vinham de uma natureza terrestre sem rosto, sob a forma de tufões, vulcões, terremotos ou pandemias.

O cinema americano, com uma gula sadomasoquista, sempre gostou de recriar essas destruições com a certeza consoladora de que elas seriam improváveis.

Mas eis que Alex Garland, diretor que se especializou a filmar os nossos medos contemporâneos, resolveu dar carne e osso a uma possibilidade mais real, mais próxima, mais plausível, com seu "Guerra Civil": um conflito nos Estados Unidos entre facções que já não conseguem viver no mesmo território.

O diretor não nomeia essas facções. Prefere mostrar, pelo olhar de quatro jornalistas, as consequências sangrentas de uma guerra entre Washington e os estados rebeldes. Não era a primeira vez. Haverá uma segunda também na realidade?

Profecias não são a minha praia. Mas há certas coisas que até um cego, sem precisar do dom de Tirésias, é capaz de vislumbrar no horizonte.

A primeira evidência é que Donald Trump quer vingança. Não apenas pela derrota de 2020. Por tudo: a derrota, as tribulações judiciais, o ego ridicularizado e ferido.

Não é caso único. O cientista político Ivan Krastev, tempos atrás, explicava que o comportamento é comum a líderes populistas que se sentem injustiçados pelo "deep state", ou seja, por funcionários públicos, burocratas, militares, agentes de segurança, magistrados ou até jornalistas que, segundo esses líderes, operaram na sombra para sabotar o governo.

No leste da Europa, por exemplo, a "limpeza" das segundas oportunidades faz parte dos manuais. Na Hungria, Viktor Orbán, que começou bem como liberal clássico, regressou ao poder em 2010 para se vingar dos socialistas. Ainda lá está, ao leme da sua democracia iliberal.

Na Polônia a mesma coisa: o partido Lei e Justiça, em 2015, também não perdoou os seus adversários quando voltou para ajustar contas.

Por que motivo Donald Trump seria diferente?

Fato: o desejo de vingança não justifica o tipo de guerra civil que Alex Garland apresenta no filme —ataques bombistas, linchamentos, valas comuns. Não aconteceu na Hungria. Não aconteceu na Polônia.

Mas aconteceu na ex-Iugoslávia depois do fim do comunismo, quando as ex-repúblicas cumpriram um calvário conhecido: anocracia, faccionalismo e guerra aberta.

Essa trilogia é apresentada por Barbara F. Walter em "Como as Guerras Civis Começam" (Zahar), livro de 2022 bastante mais perturbador que o filme de Alex Garland. Para a autora, a trilogia pode existir nos Estados Unidos com uma Presidência musculada. As sementes estão todas lá.

Anocracia é um estado intermediário entre democracia e autocracia. Sim, o povo ainda vota; não, o sistema de freios e contrapesos já não funciona como antigamente —o Judiciário foi capturado pelo Executivo, o Legislativo também, as Forças Armadas se encontram divididas em suas lealdades e a segurança da população tem dias.

O faccionalismo vem a seguir. Não confunda com polarização. Sociedades democráticas tendem a ser polarizadas e ninguém morre por causa disso: a defesa vigorosa de propostas antagônicas não é um mal em si. É expressão de liberdade e pluralismo.

O mal acontece quando a polarização extravasa o jogo político pela constituição de facções que se sentem ameaçadas, existencialmente falando, pela existência de outras facções.

Tradicionalmente, Barbara Walter tem razão quando afirma que o faccionalismo que amedrontava os pais fundadores dos Estados Unidos se baseava em diferenças de renda.

Aliás, desde a Antiguidade que assim era: já Aristóteles tinha alertado para o fosso perigoso entre ricos e pobres, preferindo uma "polis" de classes médias.

Hoje, as diferenças étnicas (brancos vs. negros), religiosas (fundamentalistas vs. secularistas) e até geográficas (urbanos vs. rurais) são muitíssimo mais preponderantes.

E hostis: relembra a autora que, em 2017, o número de democratas e republicanos que admitiam o uso de violência para lidar com os adversários não passava dos 8%.

Nos últimos anos, os números subiram para 33% (democratas) e 36% (republicanos). Não admira que 15% dos primeiros e 20% dos segundos desejem a eliminação física de quem está do outro lado.

A formação de milícias, pró e antigoverno, é o passo seguinte. A guerra aberta depende da responsabilidade do líder do país em não explorar os medos da população armada. Ou da falta de responsabilidade.

Demasiada ficção?

Todos os civis que Barbara Walter entrevistou para o seu livro —na Bósnia, na Sérvia, em Kosovo— acreditavam que sim. Até o dia em que deixaram de acreditar.

Parafraseando Ernest Hemingway, as guerras civis são como a falência de certos negócios: tudo acontece gradualmente, e depois subitamente.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

domingo, 29 de janeiro de 2023

Eleitores de Bolsonaro que não se fanatizaram podem abandonar o barco...

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 27 de janeiro de 2023

Eleitores de Bolsonaro que não se fanatizaram podem abandonar o barco com genuína vergonha do capitão.

Um centro-direita reconstruído talvez entenda o erro de abraçar os extremos, fazendo uma oposição leal ao novo governo, como é próprio das democracias civilizadas. João Pereira Coutinho para a FSP:

Assistindo aos selvagens em Brasília, dei por mim otimista. Será que alguma coisa boa pode sair daqui?

Na teoria, talvez. Os eleitores de Bolsonaro que não se fanatizaram podem abandonar o barco com genuína vergonha do capitão.

Um centro-direita reconstruído talvez entenda o erro de abraçar os extremos, fazendo uma oposição leal ao novo governo, como é próprio das democracias civilizadas.

E, se calhar, até os fanáticos podem aprender uma lição importante: só existem eles e as suas fantasias, isolados numa camisa-de-força. Os soldados com que tanto sonharam não mexeram um dedo para finalizar o serviço.

Por outro lado, se o assalto aos Três Poderes foi uma imitação do Capitólio, é preciso seguir os mesmos passos dos Estados Unidos. Em duas palavras, investigação e punição dos culpados, estejam onde estiverem. Sem estados de alma e dentro da alçada da lei.

Se Donald Trump é hoje um embaraço para uma parte cada vez mais crescente de republicanos, isso se deve à inteligência do Congresso e da administração Joe Biden em agir com dignidade institucional. "Acerto de contas" é linguagem de marginais; um estado de direito não ajusta contas, aplica a lei.

No fundo, é preciso transformar a violência em política outra vez, para usar as palavras de Michael Ignatieff. Em artigo para o Journal of Democracy que parece ter sido escrito para o Brasil de hoje, o conhecido biógrafo de Isaiah Berlin relembra algumas verdades duras e desencantadas.

Sim, podemos escrever sonetos à democracia. Mas a democracia, despida de toda retórica, é uma competição pelo poder. E existem duas formas de o alcançar: pela violência ou pela hipocrisia.

Sobre a violência, pouco haverá a dizer —qualquer animal é capaz de a praticar. Vence quem quebra mais ossos.

Mas há muito a dizer sobre a hipocrisia, uma importante virtude democrática. Como lembra Michael Ignatieff, é do interesse dos participantes no jogo manterem a temperatura baixa, mesmo que o adversário seja a encarnação do demônio. Quando a temperatura sobe, todos podem perder.

É isso que explica certos rituais democráticos, como a transição pacífica de poder entre as elites e aquele momento em que o derrotado felicita o vencedor. Se a hipocrisia é o tributo que o vício presta à virtude, qualquer político inteligente está interessado em fazer esse investimento, o que por definição exclui Jair Bolsonaro e seus asseclas.

Espero que os Três Poderes agora atacados sejam mais inteligentes do que os seus agressores. "A democracia não é a guerra por outros meios. É a única alternativa à guerra", conclui Michael Ignatieff. Assino embaixo.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Lealdade ideológica e estupidez estão por trás de quem recusa a vacina

Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 10 de agosto de 2021

Lealdade ideológica e estupidez estão por trás de quem recusa a vacina

Nos dias de hoje, o político funciona como uma marionete do povo, e não o contrário. João Pereira Coutinho via FSP:

Houve um tempo em que as pessoas que desconfiavam das vacinas estavam nos asilos psiquiátricos. Minto. Algumas viviam entre nós, comiam com a gente e gostavam de partilhar as suas descobertas “científicas” sobre o assunto, depois de um doutorado instantâneo na internet.

As vacinas eram, consoante os gostos, uma criação de extraterrestres —ou, em alternativa, um complô comunista para castrar os homens e arruinar a fertilidade das mulheres.

Havia contradições, claro: como era possível ter mulheres estéreis e, ao mesmo tempo, filhos autistas por causa das vacinas?

Pormenores. A sensibilidade “científica” dos antivacinas lidava bem com contradições.

Uma pessoa ria, chorava, ficava indiferente a essa loucura. Mas uma pergunta democrática pairava sobre as nossas cabeças assustadas: e se essa gente toda começa a ser eleitoralmente relevante?

Nos Estados Unidos, já é. Leio artigo de Daniel Gros no Project Syndicate com números delirantes. Só metade da população americana está vacinada —e a “imunidade de grupo” muito dificilmente será atingida com esse ceticismo.

Mas o interessante é ver a lealdade ideológica dos americanos em matéria vacinal. Entre os republicanos, 54% tomaram a vacina. Entre os democratas, 86%.

Em regra, os condados que votaram Trump estão dez pontos abaixo das regiões que votaram Biden. O que explica essa diferença?

Para usar uma categoria científica altamente sofisticada, eu diria que é a estupidez. Daniel Gros acrescenta: uma desconfiança sobre a ciência que começa nas teorias evolucionistas e termina nas vacinas. Quem não acredita em Darwin também não vai acreditar na Pfizer.

Mas a importância do artigo de Gros não está apenas nesses números. Está na hipótese apresentada de que as lideranças populistas não são propriamente lideranças. Elas limitam-se a recolher e a amplificar o que as massas pensam e desejam.

É uma boa hipótese, apesar de terrivelmente antidemocrática. Explico: quando se fala de populismo, a nossa atenção recai sempre sobre os políticos que “exploram” as massas rumo ao abismo. O que significa que as massas são inocentes; a culpa é sempre dos demagogos.

O caso das vacinas é um exemplo: se os republicanos não fossem seres cavernícolas, os eleitores não iriam para a caverna com eles. Nessa visão vitimária, nunca se admite que os cavernícolas são os eleitores; e que os republicanos de agora são meros oportunistas que se limitam a seguir a estupidez das massas por interesse eleitoral.

Como é evidente, essas hipóteses não seriam estranhas para nossos antepassados. Falo sobretudo de autores liberais clássicos, como Tocqueville ou John Stuart Mill, que apreciavam as virtudes da democracia mas temiam os vícios do “demos”.

De tal forma que, no caso de Stuart Mill, esse grande defensor da liberdade e do progresso, o direito ao sufrágio não deveria ser concedido a ignorantes. Antes de votar, é preciso estudar, acrescentava Mill. Caso contrário, a sociedade ficaria refém de uma maioria de brutos.

Esses temores foram confirmados no século 20, quando as massas se entregaram a salvadores ocasionais, que no essencial mimetizavam as sujidades mentais do eleitorado (antissemitismo, revanchismo etc.).

E continua na política contemporânea: anos atrás, um marqueteiro português dizia-me que as ideologias já acabaram.

Hoje, antes do político abrir a boca para apresentar as suas ideias, é preciso saber primeiro quais são as ideias dos eleitores. E repeti-las sempre, incessantemente, como se fossem uma originalidade.

O candidato, no fundo, é uma marionete do povo (e não o contrário). E a prova final de excelência política só acontece quando o eleitorado se identifica com o líder, sem perceber que o líder é um plagiário.

Como sair desta perversidade democrática? Descanse, leitor: ainda acho que a democracia representativa é o menos mau dos regimes, sobretudo quando existe um mínimo de educação cívica e moral.

Além disso, as preocupações populares são o primeiro passo, mas nunca o último, de qualquer governação responsável.

Mas convém não abusar do romantismo democrático: para haver um parasita, é preciso um hospedeiro.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com