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sábado, 13 de setembro de 2025

'A Crise Brasil-EUA', por Fernando Gabeira

Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 12 de setembro de 2025 

A Crise Brasil-EUA 
Por Fernando Gabeira (In Blog)

Empresários brasileiros que foram aos EUA discutir a questão das tarifas foram informados que o principal problema entre os dois países é político. Mais ainda: nesse campo, os canais estão totalmente bloqueados. Talvez seja essa a maior crise na história das relações diplomáticas. Já houve outras. Na verdade, no século 19, os dois países se aproximaram por causa de uma crise entre o Brasil e o Reino Unido. Foi um momento difícil: havia uma tensão por causa do tráfico de escravos, condenado pelos ingleses. Mas o estopim mesmo foi a prisão de alguns oficiais daquele país que se embebedaram e causaram confusão no Rio. O embaixador William Christie exigiu indenização e a Marinha britânica apreendeu navios mercantes brasileiros na Baía de Guanabara. O caso foi resolvido com arbitragem internacional, mas o Brasil rompeu com o Reino Unido. Foi por aí que entrou a América do Norte.

No período Vargas, houve um certo estranhamento porque o presidente brasileiro negociava vantagens com a Alemanha nazista e com os EUA. Em 1942, definiu o apoio aos aliados, assunto encerrado. Ou quase: a instalação de bases militares americanas no Nordeste do Brasil exigia compensações, das quais nasceram grandes empresas: CSN e Vale do Rio Doce.

Durante a guerra fria, o episódio mais importante foi a queda de Goulart, apoiada pelos americanos. Eles criticavam a limitação na remessa de lucros e o apoio a Cuba. Enfim, num mundo dividido, queriam o Brasil sob controle.

Apesar do apoio à ditadura militar, houve tensões quando o Brasil firmou o Acordo Nuclear com a Alemanha, em 1975. E atritos com o governo Carter, que exigia respeito aos direitos humanos.

Em 2013, uma nova crise a partir das revelações de Edward Snowden: Dilma Rousseff e outras autoridades brasileiras foram alvo de espionagem. Dilma fez um forte discurso na ONU contra a vigilância cibernética. Sempre houve alguma tensão também na questão ambiental, sobretudo na defesa da floresta amazônica.

A crise de agora tem outras características. Donald Trump não só impôs a maior tarifa ao Brasil, como também quis evitar o que acaba de acontecer: a condenação de Jair Bolsonaro.

Em alguns momentos, ele reclama da posição do Brasil no Brics e condena qualquer busca por alternativa ao dólar. Nas últimas falas, defende a tese de que o governo brasileiro foi muito para a esquerda e se alinhou com adversários dos EUA. Interessante nessa crise é o fato de que Trump, embora com decisões que nos prejudicam, tem algum apoio popular. A indicação da simpatia foi a grande bandeira americana que desfilou no 7 de Setembro na Avenida Paulista. Isso certamente vai fortalecer seu ego narcísico e dar o argumento de que sua tentativa de interferir no Brasil está projetando positivamente a imagem dos EUA.

Apesar de não haver indícios de uma saída para a crise, a verdade é que algum diálogo entre Trump e Lula precisa acontecer. Se observamos bem, todos os líderes do Brics falam com Trump. O critério de não falar com a esquerda também não vale. Ninguém está mais à esquerda do que o líder norte-coreano Kim Jong-un. No entanto, Trump fala com ele.

O momento da condenação de Bolsonaro não é o melhor. O Brasil tem estabelecido contato com muitos países dentro e fora do Brics. Existe uma boa perspectiva de firmar o acordo Mercosul-União Europeia. Com todos os progressos que possam ser feitos no caminho do multilateralismo, ainda assim é importante reatar o diálogo com os EUA. É uma relação de mais de 200 anos e, na verdade, com um nível de dependência tecnológica ainda grande.

Passada a longa fase de discussão sobre tentativa de golpe com a condenação dos acusados, possivelmente a anistia será colocada na agenda. O debate não impede que se olhe para a frente, para a retomada de uma certa normalidade, que no caso Brasil-EUA não significa ter posições idênticas. Essa tarefa de aproximação não é só de um presidente, mas das forças políticas, movimentos culturais e até clubes esportivos. Mesmo com a resistência de Trump, vitorioso nas eleições, isso não permite generalizações sobre um país complexo e rico do qual nunca se esteve tão afastado nesses dois séculos de relação.

Uma análise do chamado tarifaço mostra que houve inúmeras exceções e que foram trabalhadas nos EUA por quem negocia com o Brasil e se interessa em manter esse fluxo de trocas.

Nas exceções, estão espelhadas as necessidades econômicas. Mas há também outras necessidades ou pelo menos outras visões na sociedade americana que pendem para uma relação com o Brasil. De um ponto de vista exclusivamente político, Trump gostaria de ver no País um governo alinhado com os EUA. Isso pode não acontecer de novo em 2026. E os EUA terão de enfrentar a realidade que não pode mais ser moldada por eles.

Uma aceitação da realidade, de parte a parte, pode garantir o prolongamento de uma amizade sem muitos traumas. Importante que entre os políticos dentro e fora do governo se constitua um grupo para desenhar a reaproximação. E por via das dúvidas, um outro grupo para planejar um nível de autonomia tecnológica para os próximos anos. Parecem iniciativas contraditórias, mas o bom senso mostra que são complementares.

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Crime e Castigo no Brasil de Hoje

Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 9 de setembro de 2025 

Crime e Castigo no Brasil de Hoje 
Por Fernando Gabeira (In Blog)

Julgamento no Brasil, desfile militar na China, navios americanos rondando a Venezuela, projetos de anistia na Câmara, implosão da compra do Banco Master, investigação sobre os Correios, CPI dos descontos aos aposentados — tudo acontecendo na mesma semana.

Para descrever esse intenso fluxo, só um estilo carretel, como o inventado por John dos Passos. Na verdade, houve um colunista no Brasil que unia todos os fatos da semana numa só crônica: assinava Van Jafa. Escrevia no Correio da Manhã. Nem ele nem o jornal existem mais.

Escolho o julgamento, apesar do bombardeio sobre o tema. Minha posição é que tentativas de golpe de Estado devem ser punidas. No entanto, nem sempre concordo com as características da punição.

Isso me vale constantemente ataques de pessoas com a faca nos dentes. Quanto mais severa a pena, melhor para elas, e quem duvidar disso está colaborando com o inimigo.

Não escrevo sobre inimigos, mas sim sobre pessoas. Minha ideia, por mais que me insultem, é que as penas aos amotinados de 8 de Janeiro deveriam ser mais curtas e associadas a processos pedagógicos. A execução da pena deveria ser realizada com todos os cuidados para que não houvesse desrespeito aos direitos humanos.

Para isso, e também para o julgamento em massa, o STF precisaria criar uma estrutura especial à altura do desafio histórico. Uma preocupação exemplar com os presos políticos não seria uma forma de aviltar mais ainda a condição dos mais de 850 mil presos comuns?

A justificativa, no entanto, é esta: um trabalho experimental poderia ser levado para todo o sistema penitenciário. Isso seria um estímulo para a reforma do sistema. O grande adversário da humanização dos presídios sempre foi a direita. Ela não hesita em acusar de cumplicidade com os bandidos qualquer mudança positiva nas cadeias. Assim como nos acusam de cumplicidade com ela se não nos preocupamos com suas condições.

Grandes órgãos da imprensa internacional consideram que o julgamento da trama golpista coloca o Brasil como uma espécie de exemplo. Como um processo semelhante não foi punido nos Estados Unidos, consideram que o eixo democrático se deslocou do Norte para o Sul.

Do ponto de vista de imagem internacional, portanto, o quadro é favorável. Mas quem vive aqui dentro pode desejar um pouco mais. Desde janeiro, ou até antes, a grande questão era a possibilidade de pacificar o Brasil. Pacificar sem luta política transformaria o país num grande cemitério. Mas a grande questão é enfraquecer o discurso do ódio, mesmo num quadro de disputa política.

Creio que isso permite uma discussão mesmo entre os que acham que tentativas de golpe devam ser punidas. As redes sociais estão cheias de denúncias que, no mínimo, deveriam ser respondidas.

O momento é tão especial no Brasil que a defesa de posições se dá num campo minado. Impossível percorrê-lo sem que se joguem pedras dos dois lados. No entanto é uma questão que, cedo ou tarde, poderemos discutir. Partindo da premissa de que tentativas de golpe devam ser reprimidas, qual o caminho para que se faça dessa necessidade simultaneamente uma forma de aperfeiçoar a democracia e de desarmar os espíritos daqueles que investem contra ela?

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br

domingo, 31 de agosto de 2025

'Soberania além da propaganda', por Fernando Gabeira

Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 29 de agosto de 2025

Soberania além da propaganda 
Por Fernando Gabeira (in blog)

A momentânea crise entre Brasil e EUA colocou a soberania no topo da agenda. É o tema central do discurso do governo, deve se tornar slogan e, possivelmente, ocupar um espaço de destaque na campanha presidencial. Mesmo sem subestimar a importância simbólica da soberania com seus discursos e bonés, é preciso aproveitar a oportunidade para um exame objetivo da real independência de um país. De nada adianta apenas cantar: “Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil”. É preciso examinar, serenamente, os caminhos da soberania, e isso inspira um bom debate para o ano eleitoral que se aproxima.

Um dos temas que me parecem não resolvidos na nossa soberania é o controle efetivo do território. Importantes cidades como o Rio de Janeiro são parcialmente dominadas por grupos armados que impõem suas próprias leis. Uma orientação soberana seria reconquistar essas áreas e liberar milhões de pessoas do jugo do crime organizado. Mesmo o controle efetivo das fronteiras e um pacto de defesa com países amazônicos é essencial porque a Amazônia, principalmente, também tem importantes bolsões dominados pelo tráfico de drogas, animais e contrabando.

Para ser soberano, é também necessário ter uma capacidade de defesa própria, com uma indústria bélica nacional, inteligência estratégica e capacidade de dissuasão. O Congresso tem se omitido na discussão desse tema. Durante a pandemia, constatamos num momento de grande dramaticidade que não tínhamos insumos médicos nem equipamentos para enfrentar a tragédia. Já que o tema é soberania, as eleições de 2026 deveriam fazer um balanço em nossa vulnerabilidade: é menor hoje, quais são os passos para reduzi-la?

No campo tecnológico e digital temos enfatizado o controle das big techs, submetendo-as às leis nacionais. É um importante aspecto da soberania. Mas precisamos desenvolver a capacidade de produzir alguma tecnologia própria (semicondutores, IA, satélites). Nesse caso, estaríamos mais protegidos diante da possibilidade de boicote. Tenho escrito sobre isso e talvez a campanha presidencial possa ser um espaço de discussão do tema.

Outro tema que pode suscitar algum debate é o controle sobre os recursos naturais. O Brasil caminha para uma transição energética. Pode ter energia abundante e barata. Mas é preciso ter um controle maior de seus recursos: água, florestas e minerais estratégicos. Estes estão na ordem do dia. O Brasil precisa ter um levantamento completo dos minerais estratégicos. E uma política de exploração. Dificilmente, será algo estreitamente nacional. Como já não é a esta altura embrionária. Em Goiás, a Serra Verde Mining, que explora terras raras, é de capital norte-americano. Recentemente, o The New York Times revelou que o Brasil e os EUA estudavam um projeto conjunto de mapeamento e exploração desses minérios. Não só o tarifaço, como a hostilidade e a desconfiança entre os governos dificultaram a continuidade dessas conversações.

A ideia de soberania não é contraditória com o multilateralismo. Na verdade, eles podem se reforçar mutuamente. Neste momento de recomposição internacional, quase todos os atores nacionais estão em movimento, se reajustando. São as chances de o Brasil avaliar sua soberania no novo quadro. No caso militar, por exemplo, a dependência dos EUA precisará ser superada com abertura para a Europa, embora o momento não seja bom: os europeus estão se rearmando. Enfim, como a soberania subiu ao topo da agenda, fica a esperança de um bom debate em 2026. Essa esperança existe sempre, mas sempre se frustra. Agora, pelo menos, temos um fio condutor: soberania, quero uma para votar. É possível discutir o tema sem um antiamericanismo estéril. Da mesma forma, não é preciso, como diz o governador Tarcísio, dar uma vitória a Trump. Ele é de um narcisismo sem fim. Basta dizer que se interessa pelas guerras do mundo porque gostaria de ter um Prêmio Nobel da Paz.

As sanções políticas como a Lei Magnitsky também podem nos levar a uma reflexão sobre nosso sistema financeiro. Até que ponto pode se tornar relativamente autônomo, sem uma dependência excessiva de moedas ou bancos estrangeiros?

A verdade é que o tema soberania abre uma avenida para grandes debates e seria uma pena que se limitasse apenas ao lado simbólico das manifestações de afeto pelo Brasil. Se assim acontecer, de uma certa forma vamos ver a passagem de Trump como algo que nos estimulou a avançar, ao invés de ficarmos apenas estupefatos com suas loucuras.

Ele nos colocou num dilema: voltar ao velho discurso nacionalista ou afirmar um projeto soberano que é, na verdade, um antídoto ao isolamento e um passo a mais na maturidade democrática?

Não se trata de um projeto apenas de esquerda ou apenas do tipo Yankees, go home do passado. Na verdade, por mais que tenhamos a tendência de acionar mecanismos passados, eles simplesmente ignoram que o passado passou. Não estamos na revolução industrial, com estradas de ferro e fábricas: hoje as big techs dominam e analisam nossos dados – o que vale uma discussão sobre como trazer isso ao espaço público.

Um projeto de soberania significa também um alto nível de unidade nacional, uma oportunidade de superação de uma atmosfera polarizada. Vê-lo como um simples ativo eleitoral envolto numa superfície politicamente mercadológica é uma forma de reduzir nosso futuro.

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

'Fogo e Fumaça na era Trump', por Fernando Gabeira

Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 26 de agosto de 2025  

Fogo e Fumaça na era Trump 
Por fernando Gabeira (In Blog)

Desde muito jovem sou ligado às notícias. Durante algum tempo, minha tarefa no Jornal do Brasil era ler todos os jornais pela manhã e planejar a edição do dia seguinte. Sou, portanto, um grande consumidor de informação.

De uns tempos para cá, com o advento das redes sociais, o volume se amplificou. Não só jornais e revistas, como blogs, podcasts, robôs, grupos, opiniões, comentários e influenciadores invadiram a cena. O que era uma grande onda virou tsunami, impossível de surfar.

Dentro desse contexto, no entanto, procuro analisar um dado importante em nosso cotidiano: a posição dos Estados Unidos em relação ao Brasil e à América Latina. Para alguns, trata-se apenas de uma repetição da velha tendência imperial de determinar a vida dos países do continente. Acontece que há fatos novos: além da cacofonia das redes, há um presidente especializado em bombardear o mundo com uma sucessão de notícias. É um presidente que tem uma rede própria e usa parte do tempo para postar projetos, ideias, avisos e devaneios.

A incompreensão dessa tática de Trump acaba produzindo um nervosismo inútil e prejudicial. É o caso da Lei Magnitsky aplicada a Alexandre de Moraes. Bastou o anúncio, sem detalhes de como será usada, para que se desencadeasse um psicodrama nacional. Um ministro escreveu um despacho, as ações dos bancos brasileiros caíram na Bolsa de Valores, e as redes estão cheias de ameaças anunciando que o país quebrará.

A Lei Magnitsky se aplica às empresas e indivíduos nos Estados Unidos. Moraes é apenas alguém que vive de salário e faz a maioria de suas compras no território brasileiro. O máximo que pode acontecer é migrar para o Pix. É possível dizer muito sobre isso, menos afirmar que é uma tragédia.

Uma noite dessas, fui dormir depois de ler inúmeros posts sobre um avião da CIA que pousou em Porto Alegre e foi para São Paulo. Eram muitos os boatos. Chegaram a extravasar para a mídia convencional. Fui dormir tranquilo porque sei que a CIA é uma agência que trabalha discreta e clandestinamente. Usa aviões, helicópteros, barcos, carros, ônibus e motocicletas, enfim, o que for necessário. A última coisa que teria é um avião que, ao pousar num país, seria facilmente identificado como sendo da CIA.

Outra notícia que segui de perto: o envio de três destróieres americanos ao Caribe, com a missão de pressionar a Venezuela. Deveriam chegar em 36 horas. Passado o tempo, li no site venezuelano TalCual que os três estavam muito longe: um em Guantánamo, Cuba; outro, no Panamá; o terceiro, na costa americana.

Maduro convocou 4 milhões de milicianos, fez discursos e desfilou com aquele casaco com a bandeira da Venezuela. Os navios americanos não apareceram porque, no seu lugar, o Furacão Erin sacudiu o Caribe. Choveu muito na Venezuela, houve até apagão em Caracas. Se os venezuelanos tivessem se preparado para as inundações, no lugar da invasão americana, talvez tivessem mais eficácia.

O jornalismo explora muito as tensões. Temo estar me transformando num antijornalista porque, na maioria dos casos, vejo crises cheias de som e fúria significando nada. Estou pronto para iniciar um novo gênero: o Correio Zen, órgão destinado a mostrar que, na maior parte das vezes, é melhor não se deixar levar pela confusão das redes e pelas bravatas dos políticos. Preciso apenas de um patrocinador que aceite perder dinheiro com serenidade.

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

A Presença Americana Muda a Política no País

Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 19 de agosto de 2025 

A PRESENÇA AMERICANA MUDA A POLÍTICA NO PAÍS

Por Fernando Gabeira (In Blog)

Um amigo editor de uma revista portuguesa pediu um artigo sobre o Brasil. Escrevi a respeito da crise, mostrando o que o país tem de bom para garantir sua soberania: florestas, água, minerais estratégicos, alimentos, uma lista invejável.

Depois de enviar o artigo, me dei conta de que não abordei como deveria o que me parece a grande novidade na situação política nacional. Parece que ela mudou completamente. Estávamos acostumados com a polarização entre o governo e a oposição bolsonarista. De repente, entrou em cena um ator gigantesco: o governo americano de Donald Trump. A oposição bolsonarista deixou sua condição de protagonista e se tornou coadjuvante. Ela celebra ações americanas e se dedica a anunciar novas incursões punitivas. Tarifaço, supressão de vistos, Lei Magnitsky, e alguns deliram com a possibilidade de fechamento de bancos e desligamento do Waze. Parecem meninos que se agarram na perna do irmão mais velho que vai brigar por eles.

O resultado disso é que o problema da soberania nacional se tornou decisivo e deverá influenciar fortemente as próximas eleições. Isso fortalece o favoritismo de Lula. A intromissão americana no Brasil é rejeitada pela maioria, ao contrário da Venezuela, onde há uma ditadura, e a eleição foi roubada.

Se o risco de o governo perder as eleições se tornou menor, outros riscos se apresentam no horizonte. Um deles é fantasiar a China como aliado solidário, esquecendo que se trata de uma potência com seus interesses estratégicos bem definidos. No momento, a China negocia com os Estados Unidos a compra de soja americana, o que seria uma perda para os exportadores brasileiros. O ideal para o Brasil é diversificar, fechando o acordo Mercosul-Europa e ajustando sua posição ainda meio ambivalente sobre a guerra na Ucrânia.

Outro perigo é confundir governo Trump com os Estados Unidos e se perder num antiamericanismo estéril. Nem todos concordam com a política para imigrantes, universidades, cientistas, nem com como Trump atropela o sistema legal do país. A verdade é que a resposta ainda é tímida, houve alguma capitulação, mas há uma lenta tomada de consciência.

Um terceiro perigo é entender a questão da autonomia nacional como algo principalmente retórico, subestimando os passos objetivos para que ela possa se afirmar. Há muito o que fazer em infraestrutura digital, redes de alta velocidade, satélites, data centers. O cargo de ministro das Comunicações não pode ser mais algo que se barganhe com o Centrão, como se não tivesse nenhuma importância estratégica.

Finalmente, uma vez que o tema é muito vasto, é preciso tomar consciência da dimensão do adversário que entrou em cena. É simplesmente o mais poderoso do mundo. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos derrubaram 70 governos, em operações abertas ou clandestinas. Trump assinou um decreto autorizando o Exército a fazer operações contra o tráfico nos países latino-americanos, independentemente da autorização de governos. Logo teremos problemas na fronteira norte, com a Venezuela.

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br

terça-feira, 19 de agosto de 2025

'Muitas Crises e Alguma Oportunidade' por Fernando Gabeira


Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 15 de agosto de 2025

Muitas Crises e Alguma Oportunidade

Por Fernando Gabeira (In Blog)

O Brasil não vive uma crise. Vive muitas ao mesmo tempo. Algumas são universais, como a climática e a do comércio internacional, completamente revirado pelas iniciativas de Donald Trump.

É pretensioso supor que uma só pessoa consiga abordar esse punhado de crises, em busca de caminhos para o País. No passado, escrevíamos teses bastante gerais que eram uma espécie de roteiro de discussão ou mesmo um estímulo à pesquisa.

A ordem internacional do comércio foi subvertida por Trump. Isso é irreversível pelo menos durante seu mandato.

Que papel o Brasil pode encontrar neste novo arranjo em que todos se movem em busca de novos mercados? Há consenso de que devemos buscar também novos compradores para nossos produtos. O multilateralismo fortalecido pode ser uma resposta mundial a Trump.

É consensual, também, que devemos ter uma posição serena na defesa da soberania, buscando pacientemente restaurar os vínculos diplomáticos com os EUA.

Não é consensual tanto como a diversidade na exportação, a possibilidade de o Brasil se abrir mais, simplificando sua estrutura tarifária, reduzindo barreiras não tarifárias. Naturalmente, isso deve ser feito com os devidos cuidados, mas não podemos mimetizar a visão primária de Trump, segundo a qual quem vende é sempre um explorador e que o déficit comercial significa perdas. Ele considera que um déficit de, suponhamos, US$ 1 bilhão é um dinheiro jogado fora, abstraindo a mercadoria comprada que poderia ser mais cara se produzida internamente.

Outro aspecto da crise comercial que acaba convergindo para a crise ambiental é o dos recursos brasileiros vitais para a transição energética: sol, vento, água, florestas, minerais estratégicos, tudo isso deve ser levado em conta numa reavaliação geopolítica do Brasil.

Já produzimos lítio no Vale do Jequitinhonha, começamos a explorar terras raras com a Serra Mining em Goiás, temos uma reserva de nióbio que pode abastecer todo o planeta – enfim, o Brasil tem um papel central na superação do modelo poluidor e suicida.

No campo digital, a ideia de soberania tem sido sintetizada no poder do Brasil de impor suas leis às big techs que aqui funcionam. Mas ela precisa ser estendida à própria infraestrutura – já escrevi artigos mostrando, por exemplo, a dependência que um setor da economia tem do WhatsApp.

O Brasil é um importante espaço para data centers, pois dispõe de energia e água, fatores consumidos em larga escala. Pode oferecer isso às big techs, mas pode também construir os seus próprios.

Já escrevi artigos mais amplos sobre os passos para um nível de autossuficiência, já alcançado pela China, por exemplo. Satélites, redes de alta velocidade, plataformas de cloud, tecnologias de inteligência artificial e algoritmos – um caminho que permite não apenas aplicar a lei às big techs, mas sobreviver a um possível boicote.

Toda essa temática precisa repercutir nas eleições de 2026 e funcionar como estímulo para a escolha de pelo menos um pequeno núcleo de parlamentares que aborde as necessidades do País.

A tendência à escalada da tensão com os EUA é muito forte no campo político. Além das pressões de Trump no caso Bolsonaro, ele assinou um decreto autorizando ações militares na América Latina para o combate ao tráfico de drogas. Essas ações independem da autorização dos governos. Provavelmente, começarão pelo México e virão para a Venezuela, onde o governo de Nicolás Maduro foi considerado envolvido com o tráfico. Os EUA acusam Maduro de participar de um cartel e de ter relações com outros dois: Tren de Aragua e Sinaloa.

Essa disposição de combater o tráfico de drogas em alguns casos, como o da Venezuela, converge com a vontade de derrubar o governo. Um exemplo histórico é o de Manuel Noriega, no Panamá.

Qualquer operação na Venezuela terá repercussão no Brasil, que, por sua vez, já foi instado por Trump a considerar o PCC e outros grupos de crime organizado como terroristas.

O Brasil recusou, mas, de qualquer forma, o decreto é o anúncio de problemas, pois a volta da guerra às drogas com tropas americanas é um filme antigo, que saiu de cartaz por falta de eficácia.

A melhor forma de navegar neste mar tão revolto é ter objetivos claros neste mundo em mudança.

O governo tem possibilidade de prosseguir até 2030. Tanto a serenidade como a definição de objetivos são fatores essenciais nessa transição.

No momento, a polarização domina o cenário político. Tem sido assim nos últimos anos. O dado novo é a entrada de um ator muito mais forte que a extrema direita brasileira. Em outras palavras, um dos decisivos temas é a relação Brasil-EUA.

A soberania é um tema inescapável. Mas ela não pode ser apenas um discurso empolgado. Demanda serenidade, passos concretos e uma visão de mais longo prazo. Isso tudo é artigo raro num processo eleitoral. Mas, infelizmente, não temos mais tempo. É hora de nos reposicionarmos no mundo.

Apesar de todos os obstáculos, é mais uma oportunidade de o Brasil alcançar a grandeza sempre postergada em nossa história.

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br

terça-feira, 12 de agosto de 2025

'Em Gaza, tragédia dentro da tragédia', por Fernando Gabeira

Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 12 de agosto de 2025

Em Gaza, tragédia dentro da tragédia
Por Fernando Gabeira (in blog)

Corações partidos diante de mais de 61 mil mortes e 146 mil feridos encontram-se com uma nova tragédia em Gaza: Israel decidiu ocupar militarmente a região. O principal alvo é a cidade de Gaza, ao norte da Faixa. Mais de 1 milhão de pessoas terão de deixar suas casas de agora até 7 de outubro. Para onde vão, como comerão?

Existem apenas quatro pontos de distribuição de comida. Cerca de 1.400 palestinos foram fuzilados perto desses postos. Apenas 1,5% das terras agrícolas não foram destruídas. Só a ajuda de fora pode conter a fome.

Netanyahu chegou a negar essa fome, mas foi contestado pelo próprio Trump. É impossível ignorar a imagem das crianças esquálidas. O que acontecerá nas próximas semanas não só pode acentuar o isolamento internacional de Israel, como reacender uma importante tradição local: o intenso debate sobre o futuro do país.

Alguns sinais são públicos: o chefe do Estado-Maior do Exército, Eyal Zamir, já expressou sua oposição às novas manobras militares:

— Continuaremos a expressar nossas posições sem medo, de forma pragmática, independente e profissional.

A divergência está aberta. A posição do Exército é cercar as zonas onde podem estar os reféns, enfraquecer o Hamas e libertá-los. O Centro Moshe Dayan de Estudos do Oriente Médio e da África parece também ter a compreensão de que é impossível, ao mesmo tempo, destruir o Hamas e libertar os reféns. O próprio Clausewitz, o grande teórico da guerra, não recomendaria um claro desalinho entre objetivo estratégico e ação militar.

Mas a coligação de direita insiste nessa aventura, submetendo as forças militares já exaustas a uma guerra de guerrilhas nos escombros da cidade. Israel já perdeu meia centena de soldados em Gaza. Dezesseis se suicidaram. Enquanto isso, os reféns esquálidos aparecem em imagens vazadas pelo Hamas cavando a própria cova.

Um dos objetivos do governo de Israel ao decidir pela ocupação é entregar a Faixa de Gaza a uma administração independente do Hamas e da Autoridade Palestina. Esse é o objetivo manifesto. No entanto a destruição pode tornar a vida impossível para os 2,1 milhões de palestinos.

Nesse caso, estaríamos mais perto do sinistro sonho de Trump de fazer da região um espaço para o turismo de luxo. E mais longe da proposta da existência de dois Estados independentes. A esperança está na opinião internacional, na resiliência dos palestinos e na própria riqueza política da oposição em Israel.

Já houve manifestações de 500 mil pessoas depois da morte de seis reféns, e a História recente registra uma greve geral, pouco antes da guerra em Gaza, que obrigou Netanyahu a recuar de sua proposta para o Judiciário que ameaçava o Estado de Direito.

O problema são as próximas semanas, talvez meses. Antes de as coisas melhorarem, ainda piorarão muito, e a tragédia em Gaza é uma devastação cotidiana da sensibilidade mundial, diante de crianças famintas, reféns esquálidos e gente morrendo fuzilada na fila de distribuição de comida.

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br

domingo, 10 de agosto de 2025

Mara Luquet do MyNews ENTREVISTA Fernando Gabeira


Mara Luquet, do Canal MyNews, conversa com o ex-deputado federal Fernando Gabeira, que abre o jogo, em uma entrevista exclusiva, sobre os principais dilemas do Brasil atual ( 7 de agosto de 2025 ).

terça-feira, 5 de agosto de 2025

'O Pesadelo Trump', por Fernando Gabeira

Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 05 de agosto de 2025 

O Pesadelo Trump 
Por Fernando Gabeira (In Blog)

Estive em Paraty para falar de um belo livro de fotos de João Farkas: “Costa norte”. Escrevi um texto de apresentação e, no debate sobre manguezais, dunas e petróleo na Foz do Amazonas, um homem perguntou:

— E o fator Trump, que dizer sobre ele?

Fugia um pouco do tema, mas respondi com sinceridade que Trump me tirava algumas horas de sono. Sou jornalista, ele é o homem mais poderoso do mundo. Terei de falar sobre ele nos próximos anos, é um inescapável pesadelo.

Seu narcisismo e estreiteza de ideias colocam um perigo ao analista: cair na zona de conforto da crítica fácil e deixar de evoluir como faria se estivesse diante de alguém com ambiguidades e zonas de sombra típicas da riqueza humana.

Não posso desistir. Preciso trabalhar e, além do mais, Trump influencia a sorte do Brasil. É um momento de todos ajudarem, dentro de seus limites. O que posso fazer é estudar mais.

Estou iniciando o clássico “Fantasias masculinas”, de Klaus Theweleit, uma análise profunda e inquietante de um grupo de soldados que tiveram papel crucial na ascensão do nazismo. Os soldados eram integrantes dos Freikorps, unidades paramilitares que lutaram e triunfaram sobre o movimento revolucionário alemão, imediatamente depois da Primeira Guerra.

Talvez possa avançar em minhas análises. Mas o fator Trump implica mais que um esforço individual de interpretação. É um desafio que pede uma estratégia nacional. Quando houve o tarifaço, sugeri que concentrássemos a energia tentando mobilizar as forças internas nos Estados Unidos, onde a medida repercutiu mal. Intelectuais, políticos e jornalistas criticaram Trump, sem falar nos grupos econômicos descontentes, que serão úteis nas eleições que se aproximam.

Passado o primeiro momento, é necessário continuar negociando. Mas sugiro que o Brasil inicie uma longa mudança. Primeiro ponto tático: é preciso recuperar ao máximo os contatos com os Estados Unidos. A Frente Parlamentar Brasil-Estados Unidos ainda não fez uma única reunião neste ano. Nossa inteligência, se podemos chamá-la assim, não acompanhou os passos dos lobistas que influenciaram a Casa Branca e contavam diariamente seus feitos.

De modo geral, nos comportamos como se o fator Trump nunca fosse chegar a nossa praia. As divergências não podem evitar o diálogo. Precisamos ampliar nosso conhecimento sobre o que se passa nos Estados Unidos, identificar interlocutores e compartilhar com os americanos este momento difícil, que parece desembocar num governo autoritário.

Em termos estratégicos, há um consenso de que devemos ampliar os negócios com o mundo, abrir mercados na Europa. Lula trabalha para fechar o acordo Mercosul-União Europeia ainda neste ano. Mas há também Canadá, México e todos os países que, de certa forma, foram atingidos pelas tarifas de Trump, inclusive na Ásia.

Existe outro nível de abertura, talvez difícil de trafegar numa maré nacionalista. É a abertura da própria economia brasileira, simplificando a estrutura tarifária, removendo barreiras não tarifárias, avançando no que o Banco Mundial chama de caminhos da prosperidade. Claro que uma abertura assim implica riscos internos que precisam ser minimizados. Podemos sair mais fortes de tudo isso. Por que não tentar?

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br

quarta-feira, 30 de julho de 2025

'O Brasil depois das tarifas', por Fernando Gabeira

Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 28 de julho de 2025 

O Brasil depois das tarifas 
Por Fernando Gaabeira (In Blog)

Não exporto nada para os Estados Unidos, exceto algumas perguntas. Uma delas é esta: por que o país não tem um embaixador no Brasil? Somos o maior país da América do Sul, a décima economia do mundo, compramos mais do que vendemos para eles. A resposta razoável não pode apontar para diferenças ideológicas. Nesse caso, os Estados Unidos não teriam embaixada na China.

O interessante é que estão construindo uma nova embaixada em Brasília num terreno de 50 mil metros quadrados ao custo de R$ 3,5 bilhões. O prédio será inaugurado em 2030. Será que vão esperar que Lula deixe o poder? Estão cavando o solo para construir instalações subterrâneas. Será que cavarão infinitamente e buscarão o embaixador no Japão?

Trump vive um momento especial, e isso pode jogar a nosso favor. O escândalo Jeffrey Epstein chegou a ele. O milionário que se suicidou na cadeia e gostava de menininhas deixou um rastro que envolve várias personalidades. O príncipe Andrew já pagou a sua cota.

Trump lidera o Make America Great Again, e nesse movimento há muita gente que acha que os políticos são corruptos e pedófilos. O que acontecerá se concluírem que Trump é como os outros?

Punido com uma tarifa absurda, o Brasil encontrará solidariedade internacional, pois são muitos os países que se sentem atacados por Trump. O interessante é que, em termos brasileiros, ele conseguiu o contrário do que pretendia. Fortaleceu Lula, afundou o bolsonarismo, parece que não tem noção do efeito de seus atos.

Aliás, isso é algo que pretendo estudar melhor. Existe um componente autodestrutivo na direita. Nem sempre é necessário combatê-la, apenas deixar que desenvolva suas tendências suicidas.

Foi assim com a pandemia. Quando Bolsonaro concluiu que era apenas uma gripezinha e imitou pessoas sufocadas, ele estava roubando o oxigênio de seu futuro político.

Agora, Trump anuncia uma tarifa exorbitante, pede por Bolsonaro, que agradece a medida americana, dando a entender que a apoia e conta com ela em sua defesa. Mais uma vez, ele entra num processo de autodestruição que dispensa adversários. Está inelegível, será condenado por tentativa de golpe e consegue, no meio do caminho, personificar uma campanha antinacional.

As pessoas que combatem Bolsonaro podem ter seu mérito, mas é inegável que as escolhas dele definem as derrotas. Pessoas mais preparadas que Trump já produziram efeitos opostos ao que intencionavam.

Não sabemos se ele é capaz de elaborar isso. Mas a verdade é que influenciou as eleições de 2026 apenas com uma cartinha, parcialmente copiada de outras cartas, contendo alguns erros essenciais como ignorar o déficit brasileiro em relação aos Estados Unidos.

Quem visse Lula dando uma corridinha para fazer um discurso em Santiago, constataria que ele rejuvenesceu dez anos e está pronto para um novo mandato até 2030. Esse é o horizonte que se abre a partir de 1º de agosto. Para mim, nada de novo, pois já me acostumei com o PT no governo, desde o princípio do século.

Vou tocando o barco, sem saber se chegarei até lá, quando Lula deixar o poder, e os americanos inaugurarem sua nova embaixada em 2030. Apesar de tudo, será interessante.

Pelo menos, Trump já não estará mais por perto, e a política americana pode recuperar o mínimo de bom senso, melhor dizendo, começará a fazer sentido.

Texto e imageem reproduzidos do site: gabeira com br

quarta-feira, 23 de julho de 2025

'Hora de ser brasileiro', por Fernando Gabeira


Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 21 de julho de 2025

Hora de ser brasileiro 
Por Fernando Gabeira (In Blog)

Isso de ser brasileiro é estranho porque, às vezes, passa um tempo esquecido; às vezes, uma certa decepção com as elites políticas aborrece. Mas, ao contrário do verso de Drummond, há um momento em que todos os bares se abrem, e todas as virtudes se afirmam. A carta de Trump fixando uma tarifa absurda sobre os produtos brasileiros é um desses momentos. Como assim, logo o Brasil, que tem déficit comercial com os Estados Unidos?

Felizmente, sou carta fora do baralho em Brasília. Mas isso não me exime de pensar e fazer algo. É uma oportunidade para que todos façam, pois é um tipo de luta aberta a todos, por menor que seja a contribuição de cada um. Pelo menos é assim na visão estratégica que me parece adequada.

Creio que, apesar de certo conformismo nos Estados Unidos, ainda existe capacidade crítica no país. Dentro de nossos limites, precisamos despertá-la por meio de microiniciativas que podem ser cartas, mensagens, conversas em fóruns internacionais. Temos algo a dizer: somos um exemplo singular de injustiça e de truculência de Trump.

Minhas expectativas vão se confirmando progressivamente. No início, um Prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman, ressaltou o absurdo da medida. Outros economistas também a criticaram. Hillary Clinton, adversária de Trump na primeira campanha, se manifestou contra a decisão.

Em seguida, a Câmara de Comércio dos Estados Unidos pediu revisão. Afinal, mais de 6 mil empresas americanas comerciam com o Brasil e serão atingidas pela tarifa draconiana. Em pouco tempo, a Justiça poderá ser acionada, pois a fixação de tarifas extraordinárias depende de condições legais. No caso brasileiro, estão ausentes.

Há uma luta de longo alcance a travar, e isso pode nos revigorar como país. Certamente, beneficia o governo, influencia as eleições e pode marcar nosso futuro, pelo menos até 2030.

Isso não significa que se deva concordar com tudo. Já fiz críticas à política externa de Lula, argumentando que não expressa a frente democrática que o levou ao poder. É algo dele e do PT. Mas essa é uma questão que tem de ser resolvida no debate democrático interno. Parceiros de Lula na frente, Alckmin e Simone Tebet jamais se pronunciaram, pois estão satisfeitos em seus cargos e não querem transtornos, como criticar Putin e sua política nefasta na Ucrânia.

Da mesma forma, a cruzada para desbancar o dólar parece um pouco voluntarista. O que mantém o dólar como padrão são fatores econômicos e políticos desde 1944, com o Acordo de Bretton Woods. Discretamente, em vez de discursar, a China criou um banco de pagamentos e negocia em sua própria moeda. Já alcança 4% do movimento mundial. Se, de um lado, não se derruba o dólar apenas com discurso, de outro, não se mantém o dólar na base da repressão, como quer fazer Trump. É algo que desafia a vontade de um governante.

De qualquer forma, desejar uma unidade nacional que transcenda nossas divergências políticas não significa que elas desapareceram. Significa apenas que podem ser tratadas num contexto democrático e apenas nele. De modo geral, sanções contra um país fortalecem governos e empobrecem o povo. Isso é válido para alguns, mas, no caso brasileiro, com uma economia mais poderosa, as chances de atenuar o baque econômico são maiores.

Resta esperar o resultado da investigação que os americanos farão no Brasil, baseados na Seção 301 do Trade Act. Ela é pensada para investigar países hostis aos interesses americanos. Será que o Brasil é realmente hostil? De qualquer forma, estamos diante de um processo longo e difícil. Começou um novo tempo — não nos afastemos uns dos outros.

A unidade nacional implica usar toda a nossa imaginação. Mas não pode se tornar um mecanismo de unanimidade forçada, sobretudo porque não há concordância total com a política externa do PT.

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sábado, 19 de julho de 2025

'Uma Semana para a História', por Fernando Gabeira

Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 18 de julho de 2025

Uma Semana para a História 
Por Fernando Gabeira (In Blog)

Desde a semana passada, o Brasil vive uma singularidade planetária. Neste ano, o déficit comercial com os Estados Unidos alcançou US$ 1,7 bilhão e fomos punidos com uma tarifa de 50%, a maior do mundo.

Superado o impacto inicial, é possível fazer algumas projeções, baseadas na experiência. Na maioria dos casos em que países são punidos com sanções, o objetivo é atingir o governo. Mas como as sanções atingem todos, a tendência é fortalecer as autoridades que querem punir e contribuir com o empobrecimento do país. O resultado é este: o governo se eterniza junto com a pobreza.

No caso das sanções ao Brasil, o resultado é o fortalecimento do governo, mas não necessariamente o empobrecimento do País, cuja economia diversa e sofisticada tem condições de se recuperar de um golpe.

Recuperar-se significa diversificar exportações, encontrar novos mercados. Mas não suprime a possibilidade de negociar. O problema é que, de um ponto de vista econômico, há pouco o que negociar. As condições impostas por Trump são políticas e inegociáveis, inclusive uma anulação de processo no Supremo Tribunal Federal (STF).

São muito grandes as possibilidades de uma unidade nacional. Poucos conseguem concordar com a punição de empresários e trabalhadores. Mesmo entre aqueles que apoiam Bolsonaro e o consideram inocente, é possível estabelecer uma divisão, atraindo os que acham que isso deva ser demonstrado no curso do processo legal, e não por meio da intervenção truculenta de um presidente norte-americano.

É difícil prever o futuro de nossas relações com os Estados Unidos. Bolsonaro deve ser condenado, assim como o núcleo próximo a ele, acusado de golpe de Estado. A intervenção de Trump não alterou o quadro e ele deve reagir em caso de condenação. Quanto a isso, nada pode ser feito.

Existem muitas declarações segundo as quais a política externa de Lula seria um dos motivos para o tarifaço.

Tenho criticado a política externa do governo, argumentando que não expressa a riqueza de uma frente democrática, mas sim a posição do presidente e de seu partido. Mas essa é uma questão que se resolve num debate civilizado, nunca por meio das ameaças de Trump.

Mesmo a esperança de superar o dólar como moeda padrão nas negociações internacionais não deveria ser dramatizada.

Isso não se resolve com discurso. A China, que é bastante discreta, lançou um sistema de pagamento internacional, o China Interbank Payment System. O uso global do yuan ainda não supera os 4% das transações internacionais.

O dólar é o que é por causa do tamanho da economia americana, estabilidade política, liquidez dos ativos e confiança internacional. Há um fator histórico: em Bretton Wodds, em 1944, as principais moedas foram atreladas ao dólar, que foi lastrado ao ouro, até 1971.

Se é verdade que a superação do dólar não se fará por simples ato voluntarista, também é verdade que sua manutenção não pode ser baseada em repressão tarifária, pois é algo que depende de fatores muito mais amplos do que a vontade de um governante. Isso mostra claramente como é absurda a decisão tarifária de Trump, que dificilmente resistirá ao tempo

Desde o princípio, apostei numa estratégia que usasse as forças internas americanas para questionar essa agressão econômica ao Brasil. Muitos, inclusive de dentro dos Estados Unidos, eram céticos porque a conjuntura é de resignação diante da política errática de Trump. Figuras como o prêmio Nobel de Economia Paul Krugman já manifestaram sua oposição, assim como Hillary Clinton. Empresas americanas que negociam com o Brasil por meio da Câmara de Comércio pedem negociação.

Não seria nada espantoso que a decisão de Trump fosse levada às cortes, pois existem condições legais condicionando a decretação de tarifas. No caso brasileiro, estavam ausentes. A decisão do governo americano, além de absurda, é ilegal.

É possível que essa maré passe sem causar grandes danos econômicos ao Brasil. No entanto, ela teve o poder de alterar a correlação de forças políticas, jogando o bolsonarismo para a margem e abrindo uma forte possibilidade de o governo se prolongar até 2030.

Muitas coisas acontecem por aqui, mas há situações que se tornam inesquecíveis. O primarismo político de supor que a truculência externa pode resolver questões no interior da democracia brasileira é algo suicida.

Os sobressaltos econômicos passam, mas as consequências políticas continuarão ecoando não só na decadência do bolsonarismo como também no desgaste daqueles que hesitaram em condenar o tarifaço pensando no apoio de Bolsonaro em 2026.

Tudo parece, pelo menos nesse momento, ser arrastado pelo equívoco de não reconhecer o interesse nacional e lutar por ele, no momento em que Trump o negou.

É uma avaliação tão corrosiva como aquela que comparou a epidemia de Covid-19 a uma simples gripe.

Em dois grandes momentos, a fragilidade política do bolsonarismo mostra que não tem condições de ocupar cargos majoritários. E é preciso considerar que o mundo se torna cada vez mais complexo, exigindo decisões cada vez mais elaboradas, jogando para a margem os aprendizes de feiticeiro que pensam em punir o País para salvarem a própria pele.

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terça-feira, 15 de julho de 2025

O que aprender com as meninas do Texas

Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 14 de julho de 2025

O que aprender com as meninas do Texas 

Por Fernando Gabeira (In Blog)

Escrevo sobre o que me impressiona e confesso que não consegui tirar da cabeça essa história das 27 meninas e monitoras que morreram no Rio Guadalupe, no Texas. As enchentes mataram mais de 120 pessoas. As meninas estavam num acampamento, algumas talvez tenham feito sua primeira viagem na vida. Os celulares estavam guardados para que interagissem melhor entre elas e com a natureza. Muitas devem ter morrido sem saber exatamente o que acontecia.

Parece que o Guadalupe enche muito rápido com as tempestades. Um sistema de alarme mais sofisticado poderia ter salvado mais gente. Leio nos jornais americanos que ele foi discutido, mas descartado por economia. Leio também que Trump fez inúmeros cortes de pessoal no serviço de meteorologia. Coisas que não compreendo: como economizar em sistemas de alarme no auge das mudanças climáticas? Como cortar pessoal da meteorologia? Como negar o aquecimento global num país com tanto acesso a informação de qualidade?

A morte das meninas deveria inspirar uma virada. O fato de terem economizado dinheiro num país com tantos recursos não serve de álibi para nós. Mesmo mais pobres, precisamos compreender que economia é investir na prevenção. As perdas humanas, e mesmo a destruição material, são um preço muito mais alto.

Estamos preparando uma conferência da ONU que será realizada em Belém. Nela, um dos temas centrais será o financiamento aos países mais pobres para que possam se adaptar às mudanças climáticas. É um tema recorrente pelo menos desde 2015, quando se assinou o Acordo de Paris. O combinado era os países desenvolvidos destinarem US$ 100 bilhões por ano. Esse dinheiro nunca apareceu como foi prometido. Fala-se agora em aumentar para US$ 300 bilhões.

Sou um pouco cético. Os Estados Unidos saíram do Acordo de Paris e não contribuirão com nada. Cortam gastos dentro do seu próprio território, expondo vidas irresponsavelmente. A Otan — acossada pela Rússia e abandonada pelos americanos — resolveu aumentar seus gastos militares para 5% do PIB. Onde acharemos esses US$ 300 bilhões? Naturalmente continuaremos tentando arrecadar, por meio dos inúmeros mecanismos possíveis, como o mercado de carbono.

Isso nos obriga também a um nível de criatividade e a um esforço coletivo para adaptar o país e evitar perder tanta gente e tantos recursos com os eventos climáticos extremos. Precisamos pensar nisso tudo, inclusive nos detalhes.

O que aconteceu no Rio Guadalupe me lembra muito um perigo que vivemos no Brasil, no verão. Turistas usam muito as cachoeiras e, às vezes, chove violentamente no alto da montanha. Como não há boa sinalização e sistemas de alarme, muitas vidas se perdem. O detalhe serve para acentuar que há muito por fazer. Tive esperanças de que o tema fosse discutido nas eleições municipais, a adaptação aos novos tempos.

Houve avanço quando Lula reconheceu que o Brasil tinha papel de liderança na proteção ao meio ambiente. Mas será preciso muito mais que apenas aspirar à liderança. Dificilmente conseguiremos convencer nesse papel apenas com discurso oficial. Toda a sociedade precisa ser mobilizada. Neste momento, as chuvas castigam a Amazônia, meio milhão de pessoas foi atingido. A Amazônia não é só floresta, mas também a população que vive nela.

O governo destinou R$ 5 milhões, mas não mandou um ministro, não participou diretamente do socorro. Os defensores da Amazônia também não conseguiram criar uma rede de apoio aos atingidos pelas cheias.

A morte das meninas no Rio Guadalupe, meninas católicas em férias de verão, me deixou bastante abalado com o descaso geral diante da crise climática. Sófocles, um autor grego, fazia uma diferença entre sabedoria e argúcia. São qualidades diferentes. Será mesmo que somos o homo sapiens?

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br

terça-feira, 1 de julho de 2025

Mulheres são a esperança do Irã

Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 30 de junho de 2025 

Mulheres são a esperança do Irã
Por Fernando Gabeira (In Blog)

A guerra nos bombardeia com fatos e versões. No curto tempo que sobra, tento entender um pouco melhor seus grandes atores: Israel e Irã. A história de Israel como Estado é curta, mas cheia de peripécias. No caso do Irã, tentei revisitar alguns textos, enquanto caíam as bombas.

Um documento muito discutido na época foi a série de reportagens de Michel Foucault no Irã, feitas na véspera da Revolução Islâmica. Ele foi a Teerã duas vezes em 1978, a convite do jornal italiano Corriere della Sera. O regime do xá Reza Pahlavi estava no fim, com o Exército massacrando milhares na Praça Jaleh.

A leitura da Revolução Islâmica realizada por Foucault foi tema de muita discussão. Ele parecia mais interessado na emergência de novas ideias, vindas de baixo, fora dos círculos universitários, que traziam um sopro de modernidade à política: a variável espiritual.

A modernização representada pelo governo do Xá era limitada e tinha fortes componentes arcaicos. Mas a Revolução Islâmica, no meu entender, não poderia ser vista apenas como introdução da espiritualidade. Era a vitória de uma visão religiosa rígida, que determinava como os iranianos deveriam se comportar em suas vidas. As meninas passariam a usar véu.

Por isso, além da visão de Foucault, me interessou muito há alguns anos a leitura do livro de memórias de Azar Nafisi, “O que eu não contei”. Uma professora de literatura ocidental cuja família de políticos e intelectuais nos dá, por meio de sua história, um vislumbre da evolução do país. Nafisi é uma estudiosa de Vladimir Nabokov e escreveu um best-seller mundial: “Lendo Lolita em Teerã”. A mãe de Nafisi foi deputada, o pai prefeito de Teerã. Aos olhos de mulher, a Revolução Islâmica foi um grande retrocesso:

— Vimos as mulheres tornando-se ativas em todos os setores da vida, governando no Parlamento, entre elas minha mãe, e tornando-se ministras. Então em 1984, minha filha, nascida cinco anos depois da Revolução Islâmica, volta a viver as mesmas leis repelidas por minha avó e minha mãe. Sua geração terá de encontrar seu próprio caminho de coragem e resistência.

Uma importante profecia. De lá para cá, as mulheres resistem bravamente ao regime teocrático. Na verdade, o livro de Nafisi fala do primeiro protesto. Por causa da decretação do uso obrigatório do véu (hijab), houve uma grande manifestação no 8 de março de 1979. Vigilantes do novo regime chegaram a usar ácido contra mulheres sem véus, que gritavam:

— A liberdade não é ocidental nem oriental, é global.

Em 2006, elas realizaram a campanha por 1 milhão de assinaturas para exigir mudanças em leis discriminatórias sobre divórcio e guarda de filhos. Em 2009, o Movimento Verde, para denunciar fraudes nas eleições, foi amplamente divulgado no mundo, com a imagem de Neda Agha-Soltan, assassinada durante os protestos.

A luta das mulheres jamais parou. A partir de 2017, elas subiram em postes e retiraram o hijab em sinal de protesto. Em 2022, de novo grandes protestos pelo fim da jovem curda Mahsa Amini, que morreu sob a custódia da polícia moral, presa sob a acusação de uso inadequado do véu. A polícia moral era uma decorrência da visão religiosa rígida, que não é subproduto da espiritualidade.

Nafisi, que nasceu e viveu no Irã, refletindo sobre a vida de suas antepassadas, talvez tenha percebido melhor que Foucault a trajetória da Revolução Islâmica. A aplicação da sharia, a lei islâmica, ou mesmo a substituição de um texto constitucional pela Bíblia, como querem alguns no Brasil, deveriam ser rejeitadas. As sociedades se tornam complexas, e a tolerância com a diversidade é essencial.

Dito isso, é preciso reconhecer que regimes revolucionários não caem por impulso externo. Será preciso que a oposição derrube. Assim como a destruição do aparato nuclear por meio das bombas não é o melhor caminho, diante da possibilidade de acordo, no quadro do Tratado de Não Proliferação. No momento de guerra, essas teses são subestimadas. Logo, logo, sua força se imporá.

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br

terça-feira, 24 de junho de 2025

'Empatia com quem sofre na guerra', por Fernando Gabeira


 Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 23 de junho de 2025

Empatia com quem sofre na guerra.
Por Fernando Gabeira (In Blog)

Escritores têm uma característica comum: o impulso irresistível de se colocar no lugar do outro. Logo, não importa onde estoura uma guerra, a tendência é estar mentalmente no teatro de operações. Sofri muito com o frio e a bruma sobre o oceano na Guerra das Malvinas. O desconforto voltou na madrugada em que Israel iniciou uma série de bombardeios em Teerã, e alguns mísseis foram disparados contra Tel Aviv. Fui ao banheiro e lembrei-me da guerra começando. Acendi a luz, abri a torneira e tive certo alívio: a água corria, havia eletricidade.

Pensei em Teerã e Tel Aviv. Será que, com esses bombardeios, tudo está funcionando? Tel Aviv dispõe de abrigos subterrâneos; logo, as pessoas têm para onde ir. E Teerã, uma cidade com 10 milhões de habitantes, sem nenhum abrigo? Não há saída, exceto deixar a capital.

Milhões se deslocando criam enormes engarrafamentos nas estradas. Os postos de gasolina fecham ou reduzem suas vendas a 10 litros. Lembrei-me de uma reportagem no Jornal do Brasil na década de 1960: Copacabana pode morrer de susto. Se todos saíssem de carro ao mesmo tempo, seria um desastre no bairro. Imaginei-me vizinho de um cientista nuclear. Minha garganta estaria em fogo, os olhos ardendo pela fumaça das explosões. E a fuga? Para onde ir de repente?

Leio o relato de um poeta iraniano. Ele foi para uma cidade do interior, onde moram parentes. Mas a pequena cidade já estava cheia; os mercados esgotados com tanta procura. Já que tinha perdido o sono, imaginei-me em Tel Aviv. Sirenes tocando, corrida para os abrigos. Passei a tarde lendo um livro sobre o Mossad, “Rise and kill first”, de Ronen Bergman. É sobre o serviço secreto israelense, cuja história se confunde, a partir de certo momento, com a própria História do país.

Leio que existia uma discussão interna sobre o que fazer com o programa nuclear iraniano. Bombardear ou matar seletivamente os cientistas? Matar era mais fácil. No princípio, seis cientistas foram mortos, e o método era relativamente simples: motociclistas armavam as bombas nos carros deles. Imaginar-se em Tel Aviv significa conviver com algo que nem todos os países têm: a sensação de perigo existencial.

Foi ela que determinou os passos do Mossad e o transformou, parcialmente, num órgão especializado em matar. No princípio, era preciso matar cientistas alemães, ex-nazistas que foram ao Egito ajudar a produzir mísseis. Depois, foi necessário matar alguns militares egípcios que ajudavam árabes a realizar atentados; em seguida, foi necessário matar alguns líderes palestinos; finalmente, os cientistas iranianos e alguns generais que comandam a Guarda Revolucionária.

Foi tanta necessidade de matar diante da ameaça existencial que, em certo momento, um líder político indagou: como pode uma nação tão idealista e sensível adotar tal política? Parece que as durezas do destino acabaram chegando à tese de um famoso agente do próprio Mossad, Natan Rotberg, que acabou formulando uma saída para conciliar idealismo e assassinato seletivo:

— Você precisa aprender a perdoar o inimigo. No entanto, não temos autoridade para perdoar gente como Bin Laden. Isso, apenas Deus pode fazer. Nosso trabalho é arranjar um encontro entre eles.

A ameaça existencial é um forte argumento, assim como a punição aos terroristas do Hamas que invadiram Israel. No entanto o sofrimento da população de Gaza mostra que essa longa luta arruinou a visão humanitária do jovem país. É um caminho de que não se sai incólume.

A ameaça existencial criou uma dívida de gratidão com o Marrocos. Segundo o livro de Bergman, o Mossad ajudou a matar o líder marroquino Ben Barka, em Paris, causando um grande trauma na França. O Mossad contribuiu com uma técnica que ajuda a dissolver o corpo da vítima, por meio de uma combinação química que o elimina com a chuva. O que restou de Ben Barka foi sepultado na área construída da Fundação Louis Vuitton.

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br

terça-feira, 3 de junho de 2025

'Brasil e EUA, a primeira crise', por Fernando Gabeira

Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 2 de junho de 2025

Brasil e EUA, a primeira crise 
Por Fernando Gabeira (In Blog)

Os Estados Unidos anunciaram sua política de restrição de vistos para autoridades estrangeiras que reprimem a livre expressão de americanos, quando estão fisicamente dentro do país. Isso aconteceu quando eu havia terminado um artigo, afirmando que era preciso tirar Eduardo Bolsonaro do caminho para entender o que se passa.

Não queria me indispor com os dois polos, apenas alargar um pouco o espectro da discussão. Creio que, ao processar Eduardo Bolsonaro, o Supremo deu a ele mais importância do que tem, atribuindo-lhe o poder de coagir os ministros. Esse movimento acaba encobrindo alguns fatos importantes. O primeiro é que o Departamento de Estado tem um setor que estuda e discute a América Latina, apesar da estreiteza de Donald Trump.

É ilusório supor que Eduardo Bolsonaro possa manipular a opinião do governo americano. A nota mostra um alcance mais amplo, que escapou apenas aos que continuam vendo o mundo dividido entre bolsonaristas e petistas. Ela não se limita a falar da restrição a autoridades que reprimem o direito de expressão. Isso é apenas o lado mais brando. A nota condena os países que tentam obrigar as big techs americanas a mediar as intervenções nas redes.

Em outras palavras, os países não lhes podem impor suas leis nacionais, dentro de seu território. Isso envolve um choque não só com o Brasil, mas também com Europa e Austrália. É possível até que os Estados Unidos não divulguem a lista dos que não podem entrar no país. Ela fica como uma espada, suspensa na cabeça dos alvos. Não poder entrar nos Estados Unidos não é o fim do mundo. Muita gente passou por esse transtorno — Charles Chaplin, por exemplo.

Existem dentro do governo americano, ou mesmo próximo a ele, poderosos indispostos com Alexandre de Moraes. Um deles, Elon Musk — eu me arrisco a dizer —, é muito mais influente que Eduardo Bolsonaro. Há alguns meses, a plataforma Rumble, associada à empresa de mídia de Trump, entrou na Justiça americana contra Moraes.

Todo o quadro ficará mais claro se realmente, como quer o STF, os diplomatas forem chamados para dar informações. Eles sabem que as sanções a Moraes são defendidas por vários brasileiros que atuam nos Estados Unidos, antes mesmo de Eduardo Bolsonaro. Além disso, a argumentação americana é que agem em defesa de sua soberania, pois Moraes impõe restrições a cidadãos americanos ou detentores do Green Card, portanto com direito constitucional à livre expressão.

Como assim, os dois lados — Brasil e Estados Unidos — sentem sua soberania ameaçada um pelo outro? Abre-se um espaço para explicações mútuas, que podem resultar em algo menos dramático do que a aplicação de uma lei como a Magnitsky, que implica proibição não só de entrar nos Estados Unidos, como muitas sanções financeiras.

É muito difícil a relação com um governo instável como o de Trump, mas esse desafio acabou amadurecendo as reações de países como o México e o Canadá. Ambos souberam encontrar um espaço de resistência digna. O Brasil enfrenta uma situação específica, talvez mais delicada ainda que o debate sobre tarifas comerciais, embora esse tema também esteja na agenda.

Previ a colisão com as big techs há algum tempo. Minha tese é que, se for necessário um confronto, é preciso se preparar para ele, analisando nossas vulnerabilidades e necessidades em termos objetivos (infraestrutura) e subjetivos (formação de gente), para que o Brasil possa funcionar sem elas, em caso de boicote.

Em outras palavras, o momento pode ser muito fértil para saídas demagógicas, mas implica uma complexa reflexão do tipo que a empobrecida e radicalizada atmosfera política no Brasil não deixa acontecer. Resta um bom tema para a psicologia: os Estados Unidos lançam a bandeira de liberdade de expressão no mundo, precisamente no momento em que mais a reprimem em estudantes, professores e cientistas.

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br

sexta-feira, 16 de maio de 2025

'Um Golpe Contra a Esperança', por Fernando Gabeira


Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 12 de maio de 2025 

Um Golpe Contra a Esperança 
Por Fernando Gaeira (in blog)

O Brasil de hoje me entristece. Macunaíma sentiria apenas preguiça. Os grandes escândalos de corrupção se sucedem. É triste ver os velhos roubados por entidades-fantasmas, com descontos em sua aposentadoria, roubados nos empréstimos consignados, cartão de crédito e quase roubados com a promessa de devolução rápida do dinheiro roubado.

Viramos o paraíso do estelionato. Neste momento, recebo ligações com a voz da assistente digital do banco, falando de uma absurda compra numa loja de construção. Disque 1 para confirmar, dois para rejeitar. Disco coisa nenhuma porque sei que é golpe. Nas cadeias e nas ruas, centenas de golpistas inventam formas de lesar. Tenho amigos que perderam suas economias. Os bancos são implacáveis, não devolvem 1 centavo.

O espectro de golpes é tão amplo que há listas deles na internet, desde as falsas centrais de atendimento até falsos motoboys. Eu mesmo já comprei um tênis para presentear a filha: jamais chegou.

Leio que a indústria hoteleira está alarmada com os golpes de falsas reservas em hotéis. Só em São Paulo foram R$ 25 bilhões perdidos, diz a notícia. Isso sem contar as passagens de avião baratas que você compra e não vai a lugar nenhum: golpe.

O Congresso maneja bilhões em emendas, e muitas delas são ainda secretas. Os juízes ganham mais que o teto legal de salários, e o presidente viaja com volumosas comitivas pelo mundo. Nos últimos dias, esteve ao lado de Putin, que invadiu e massacra a Ucrânia, que envenena opositores, que persegue gays, que apoia os partidos de extrema direita na Europa.

Há um lado positivo a consignar: o ministro Haddad tenta atrair centrais de dados para o Brasil, oferecendo energia barata e sustentável. Haddad fala num futuro verde e digital, felizmente.

Subimos cinco posições na pesquisa sobre IDH no mundo. Ainda estamos atrás de México, Colômbia, Chile, Peru, Argentina e Uruguai. Batemos Bolívia e Venezuela. Estamos estagnados no quesito educação.

A política em Brasília, esta entristece e dá preguiça. Lula trocou um desconhecido ministro das Comunicações por outro desconhecido. O primeiro era conhecido demais pela polícia. Trocou o Lupi acusado de omissão na Previdência pelo secretário executivo do Ministério, encarregado de executar a omissão.

Às vezes, penso em me tornar cronista esportivo, apesar da idade. Mas há escândalos na CBF, golpes nas apostas, e o futebol brasileiro me parece pouco intenso e burocrático. Não há para onde escapar. A direita, com tantos erros do governo, pode ganhar força e reassumir. Uma terceira força dificilmente quebra a polarização. O mais provável é que Lula continue até 2030, tem recursos políticos e saúde para isso.

Eu é que não tenho. Não suporto ver o país tão distante de seu potencial. Analisar a política é tirar leite das pedras. Não há o que analisar, exceto contar segredinhos de bastidores. Não me interessa a intimidade de pessoas que, na maioria, considero tediosas e pouco inspiradas.

Com tantos golpes, ainda não roubaram totalmente minha esperança. Resta a poesia capaz de fazer nascer uma flor no asfalto. Meio profeticamente, antes das eleições, previ que nos livraríamos do horror e cairíamos na mediocridade.

Os governistas não precisam comer meu fígado por essa profecia. O Brasil se configura de tal forma, são tantas as seduções do poder que é fácil se julgar realizando uma tarefa histórica, quando se está apenas navegando no pântano.

Quem vencer em 2026 encontrará todos estes probleminhas pela frente: a Justiça continuará muito dispendiosa, o Congresso se perpetuará apoiado nos bilhões das emendas, a educacão continuará empacada, o crime organizado mais forte e a epidemia de golpes revitalizada pela inteligência artificial.

Ainda bem que não desistimos nunca.

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br/blog

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Estelionato como esporte nacional

Artigo compartilhado do site do GABEIRA, de 9 de maio de 2025

Estelionato como esporte nacional 
Por Fernando Gabeira (In Blog)

O escândalo envolvendo descontos no salário de 4 milhões de aposentados revelou apenas uma ponta do iceberg no Brasil. Por meio dele, ficamos sabendo que os idosos no Brasil não são apenas roubados por entidades fantasmas que os relacionam em suas listas, sem consentimento.

Outra modalidade de golpe se dá por meio do crédito consignado. Sem que fosse consultada, uma mulher do Rio Grande do Sul teve descontos em sua aposentadoria referentes a 45 empréstimos, um rombo de R$ 170 mil.

O valor dos golpes dados pelas entidades fantasmas ronda os R$ 6 bilhões. O crédito consignado em 2023 movimentou R$ 90 bilhões.

Para comprovar a tese de que os idosos, principalmente os que vivem no interior e não manejam bem as ferramentas digitais, são vítimas fáceis, surgiu um novo golpe: alistá-los para receber, hipoteticamente, o dinheiro roubado pelas entidades fantasmas.

O que se passa entre os aposentados é apenas uma exacerbação do clima nacional.

Diariamente, recebemos chamadas de supostas centrais do banco, com a voz de suas atendentes virtuais, comunicando uma compra e pedindo que confirmemos ou não a autenticidade. São-nos dadas duas opções: um para sim, dois para não. Como a compra não existe, a tendência é apertar o dois para não e ter seus dados capturados pela quadrilha.

Há casos em que, além da atendente virtual, aparecem vozes de falsos funcionários dos bancos alertando para trocar o dinheiro da conta para um lugar mais seguro e esse novo lugar é apenas um abismo de onde o dinheiro nunca mais voltará.

Os golpes desse gênero cruzam os ares com grande intensidade. Há muitas quadrilhas trabalhando nesse campo. Mas eles não significam tudo.

A indústria hoteleira revelou que os golpes de falsas hospedagens chegaram a produzir um prejuízo às suas vítimas da ordem de R$ 25 bilhões somente em São Paulo.

Não devem estar computados aí os prejuízos causados pelas agências de viagem que vendem passagens baratas, mas não entregam. Elas estão fechando, uma atrás da outra.

Na internet, há um ranking dos principais golpes, uma variação extraordinária que vai da falsa central de atendimento ao falso motoboy.

Isso sem contar as inúmeras empresas na internet que se dispõem a vender, mas não entregam nunca. Eu mesmo já comprei um tênis para presentear minha filha, mas ele jamais chegou.

Não é preciso muito argumento para convencer que estamos cercados pelos estelionatários. Há quem considere que a lei deveria ser mais pesada contra eles, pois raramente vão para a cadeia.

Minha indagação é diferente: existe algo cultural que torna o estelionato mais comum no Brasil do que em outros países?

Não vou culpar de novo os degradados que vieram nos colonizar nas caravanas portuguesas.

Minha pergunta é sobre a atmosfera brasileira agora, na qual as próprias instituições são vistas como entidades que tiram vantagens de suas prerrogativas e pouco devolvem. O Executivo é visto como gastador, sobretudo em viagens internacionais com numerosas comitivas; o Judiciário vive uma situação excepcional em que os salários acima do teto são apenas uma parte do problema; e o Legislativo mobiliza R$ 50 bilhões em emendas parlamentares, algumas delas ainda secretas.

Será que isso não influencia o comportamento com a mensagem de que é importante garantir o melhor para si próprio, independentemente das necessidades coletivas?

É claro que o comportamento das elites não atenua o de milhares de estelionatários no País. Mas pode contribuir indiretamente.

O Brasil, como outros países, sempre viveu o problema desse tipo de golpe. Na era analógica, era muito comum uma modalidade chamada conto do vigário, que aparecia com frequência nas páginas policiais.

Mas os golpes do passado quase sempre jogavam com a ilusão da vítima de obter dinheiro fácil. Ela entregava pouco na expectativa de ganhar muito.

As vítimas de hoje, sobretudo os aposentados, são indefesas.

Grande parte dos golpes contra aposentados se volta para o interior de Estados como Piauí e Maranhão, com baixo índice de alfabetização digital.

Estamos preparados para esta guerrilha de golpes? No INSS, ela aconteceu ao longo dos anos, sem que fosse debelada – ao contrário, ela cresceu recentemente.

O índice de solução dos golpes aplicados, de um modo geral, ainda é baixo. Eles se multiplicam porque representam também uma boa parte de atividade no interior das cadeias, onde nunca foi possível, efetivamente, controlar a entrada de celulares.

Os bancos, por sua vez, quase nunca restituem o dinheiro perdido, embora muitas vezes os golpes sejam precedidos do uso de vozes idênticas às que fazem comunicados oficiais. Tudo o que puderam oferecer foram campanhas orientando seus clientes a não cair em golpes.

Diante disso, talvez fosse necessária uma grande força-tarefa nacional destinada a reduzir drasticamente esta praga. Ela precisa ser eficiente, bem equipada e também tomar cuidado para que não falsifiquem suas coordenadas e se torne também o tema de um novo golpe.

Texto e imagem reproduzidos do site: gabeira com br