Publicado originalmente no site da revista ISTOÉ, em 18/04/2019
Entrevista - MARY DEL PRIORE
As esquerdas tinham um projeto de assalto ao poder
Por André Vargas
Os brasileiros são o objeto de estudo da historiadora social
Mary Del Priore, que ao longo dos últimos 28 anos lançou 15 livros. Ainda que
tenha escrito biografias, como a da condessa de Barral, paixão de D. Pedro II,
ela prefere se dedicar a aspectos menos proeminentes da nossa sociedade, como a
vida das mulheres, as questões do cotidiano, a sexualidade, o amor, a infância
e até nossa relação com o sobrenatural. Seu próximo trabalho será o quarto
volume de “Histórias da Gente Brasileira”. Centrado em torno das memórias da
classe média baixa do interior, cobre o período entre 1951 e 2000, quando surge
e se consolida o Brasil que conhecemos. É daí que ela conclui que o brasileiro
sempre foi mais preocupado com a sobrevivência do que com a política, o que lhe
confere um lado conservador pouco perceptível à intelectualidade. Algo que
explica nosso machismo e consumismo. “Meu novo livro será sobre o impacto do
consumo e do acesso aos bens na formação dessa espécie de não-cidadania que
criou mais consumidores que cidadãos. Isso fez com que os anos de chumbo da
ditadura parecessem anos de ouro para muita gente”, afirma.
Como chegar ao consenso em uma sociedade dividida como a
nossa?
Para realizar as reformas, o diálogo será fundamental. Sem
isso, é impossível conseguir que os quadros corporativistas abram mão de
privilégios em favor da maioria. Ninguém quer sacrifícios, sobretudo, os
habituados a receber benesses desproporcionais. Não me refiro só aos
estapafúrdios beneficiários do Legislativo e do Executivo, mas também aos
executivos de empresas que recebem pacotes milionários ao final do ano,
enquanto a remuneração dos empregados segue baixa, ou aos sonegadores que
deveriam pagar altos impostos, mas declaram valores ridículos. A vida política
está podre — assim como tudo que ela representa —, enquanto a maioria da
população só deseja prosperidade econômica e boa governança, ou seja, “a tal
felicidade”.
O brasileiro se tornou mais conservador?
O conservadorismo sempre esteve aqui. Trato disso em meu
próximo livro [o quarto volume de “Histórias da Gente Brasileira”]. A história
oficial pode ter deixado de lado, por exemplo, as relações complexas entre a
ditadura e a sociedade, mas sabe-se que é um equívoco dizer que os militares
foram os únicos responsáveis pelos anos de chumbo. Vale a pena ouvir a história
de personagens invisíveis da hoje chamada ditadura civil e militar, definição
que reconhece o papel da burguesia e da classe média no golpe de 1964. Milhares
apoiaram o regime que se instaurou em nome da democracia e contra a corrupção
que a vassoura de Jânio Quadros não conseguiu limpar. Também é impossível não
ver que as esquerdas revolucionárias não eram apaixonadas pela democracia. Elas
tinham, pelo contrário, um projeto de assalto ao poder, embora hoje, numa
reconstrução histórica, se queiram como parte da resistência civil da qual
faziam parte legítimos democratas, como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e
outros tantos.
A notícia de que 40% das brasileiras preferem estudar e
trabalhar
a casar-se é a melhor que tivemos nos últimos tempos
O discurso antifeminista vindo de mulheres não é uma
contradição?
O assunto não é novo. Explícito ou camuflado, o
antifeminismo existe desde que as mulheres começaram a lutar pelo sufrágio
universal, no início do século XX. Ao recusar a igualdade entre os sexos, o
assunto surge a cada vez que elas tentam adentrar o território masculino, seja
nos costumes, na política ou na vida profissional. A emancipação feminina,
graças à pílula anticoncepcional e à independência financeira, criou toda a
sorte de fantasmas misóginos. Alguns julgam o feminismo imoral e acusam-no pelo
fim do casamento. Outros o consideram uma ameaça à sobrevivência das nações —
pois negaria a importância da maternidade, de valores e crenças religiosas. O
assunto recrudesceu depois do caso Weinstein, quando um grupo de feministas
francesas publicou um artigo subscrevendo a defesa dos jogos de sedução e a
“liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual”.
E no Brasil?
Aqui, o antifeminismo acompanhou as agendas eleitorais e se
engajou na condenação do aborto e na valorização dos tradicionais papéis
femininos: mãe e esposa do lar. Com lances e atores mais ou menos ridículos,
ecoou os debates que chegam de fora. Todavia, feministas ou não, hoje é visível
a vontade da brasileira de se desenvolver, deixando a miséria para trás e
cultivando valores como o conhecimento, a solidariedade e a cidadania. A
notícia de que 40% das brasileiras preferem estudar e trabalhar a casar-se é a
melhor que tivemos nos últimos tempos.
Há quem diga que a Lei do Feminicídio, de 2015, funciona
como uma espécie de privilégio. Como convencer do contrário?
Os dados são chocantes e intoleráveis [a cada 36 horas uma
mulher é vítima de feminicídio em São Paulo]. Eles já chamavam atenção nos anos
1970 e 80, quando as manchetes da imprensa eram acompanhadas de fotos de
mulheres mortas, espancadas e estupradas. Antes da chegada da aids e com a revolução
sexual em curso, os homicídios eram regra. Quem não lembra da Ângela Diniz? Seu
assassino [Doca Street] foi aplaudido na saída do tribunal por um grupo de
mulheres, revelando o machismo das brasileiras. As fotos foram banidas da
imprensa, mas a violência continuou. E a razão não mudou: o sentimento de
posse, a exigência de submissão e obediência. Na herança machista do Ocidente
cristão, a mulher é a guardiã de valores de honradez e pureza. Quando essa
função não é preenchida, o seu mau comportamento fica publicamente assinalado.
A honra manchada incita à punição. Esse fenômeno está presente em todo o mundo,
embora no Brasil as negras sejam as maiores vítimas. A atualidade de Simone de
Beauvoir é gritante. Segundo ela, é fundamental “transcender-se através de
projetos próprios”. Ou seja, a mulher deve pensar, agir e trabalhar nas mesmas
condições dos homens.
O Ministério da Educação defende que a saída está na
iniciativa privada. É por aí?
Num país tão injusto quanto o nosso, a educação deveria ser
totalmente pública. Mas diante dessa impossibilidade, não discordo da presença
da iniciativa privada e penso nos benefícios que a opção trouxe para países
como Chile e Coreia do Sul. Ou nas parcerias público-privadas que existem na
Holanda. Mas prefiro centrar a resposta nos estilos de gestão que caracterizam
os sistemas público e privado. A história demonstra que o ensino público é o
único que atinge as classes desfavorecidas. Mas o faz de forma ineficiente e,
por vezes, excludente. O setor privado é muito mais eficiente, criativo e
flexível, mas está dirigido a quem pode pagar. As características de cada setor
deveriam se complementar. As bolsas oferecidas pelas privadas têm remediado o
problema. Já introduzir dinamismo na gestão pública é bem mais difícil, diante
do encruado corporativismo. Sem contar a dificuldade de ter diretores que sejam
gestores e não executores de instruções. Já no privado, é fundamental ter um
controle rígido e punitivo sobre as universidades caça-níqueis, que roubam e
enganam alunos pobres, além de desqualificar o sistema.
Há 40 anos o Brasil adota a educação sexual nas escolas
públicas. Como é que esse tema foi virar polêmica agora?
O debate tem antecedentes. Desde 1990 as escolas foram
convocadas para discutir educação sexual e gênero. O problema era então as DSTs
e a gravidez precoce. O que existe hoje é a preocupação em abordar mensagens
transmitidas pelas mídias à sociedade e à família. Profissionais de ensino, por
sua vez, comunicam sem perceber, valores relacionados à sexualidade nas suas
atitudes cotidianas ou na forma de responder aos alunos. Daí a importância da
formação do professor para além de exposições teóricas. É fundamental
esclarecer, informar, porém sem transmitir seus próprios preconceitos. O
importante é trabalhar a tolerância, a diferença, evitar preconceitos e,
sobretudo ter uma postura profissional frente aos temas diversos. Esses, por
sua vez, podem ser abordados usando matérias como Biologia, História ou
Filosofia. O mais importante é estabelecer um diálogo entre alunos, mestres e
pais, estes últimos muito ausentes das escolas — segundo queixa dos educadores.
Num país tão injusto, a educação deveria ser toda pública. Diante dessa
impossibilidade, não discordo da iniciativa privada
O Brasil do terceiro volume de seu “Histórias da Gente
Brasileira”, que cobre do início da República até 1950, poderia se reconhecer
na atualidade?
Trabalhei com memórias, que mostram o cotidiano e a
intimidade das pessoas. Acho interessante perceber que aquilo que definimos
como sociedade não é exatamente a gente brasileira, formada pelas classes média
e baixa nos pequenos municípios do interior. Para eles, a sensibilidade dessa
gente está voltada para a vida prática. Os problemas políticos não são
fundamentais. O que dá uma certa coesão à obra é essa coletividade, nem sempre
perceptível para os intelectuais e para a grande imprensa. Podemos discutir se
a Coluna Prestes foi boa ou não, mas o memorialista do interior escreve sobre o
temor de perder sua vaca ou suas galinhas. Isso vale tanto para o passado
quanto para o presente.
O próximo livro, o quarto da série, vai tratar de quê?
Será sobre o impacto do consumo e do acesso aos bens na
formação dessa espécie de não-cidadania que criou mais consumidores que
cidadãos. Isso fez com que os anos de chumbo da ditadura parecessem anos de
ouro para muita gente, com o surgimento do emprego, do 13º salário e das férias
anuais. A partir daí, surge a televisão, o turismo, a praia, o biquíni, a moda,
os esportes ao ar livre. As modificações nas grandes cidades, a partir dos anos
1960 e 70, com edifícios altos, piscinas, playground, eletrodomésticos para
facilitar a vida da mulher — que entra no mercado de trabalho —, o aparecimento
da comida congelada e dos restaurantes a quilo. Não se trata de ser de direita
ou de esquerda. É pagar o carnê ou poder comprar um Fusca. Tento traduzir esses
anos por meio do consumo e desse certo bem-estar que criou o que chamaríamos de
conservadorismo. Só não sei se quando questionadas, essas pessoas se diriam
conservadoras ou sequer saberiam responder essa pergunta.
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