terça-feira, 5 de março de 2024

O 'bem' contra o 'mal': o apocalipse segundo Michelle

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 3 de março de 2024

O 'bem' contra o 'mal': o apocalipse segundo Michelle.

Ao tratar a política como guerra santa entre o ‘bem’ e o ‘mal’, como fez na Paulista, a ex-primeira-dama deixa claro que espera dos fiéis da seita bolsonarista fé absoluta em seu marido. Editorial do Estadão:

No discurso de abertura da manifestação bolsonarista de domingo passado, Michelle Bolsonaro tratou como um triunfo do “mal” o fato de haver no Brasil a devida separação entre política e religião. “Por um tempo, fomos negligentes ao ponto de dizer que não poderiam misturar política com religião”, disse a ex-primeira-dama. “E o mal tomou, e o mal ocupou o espaço. Chegou o momento, agora, da libertação. ‘Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará’”, concluiu Michelle, reproduzindo o versículo da Bíblia que serviu como mote da campanha de seu marido à reeleição.

Ao questionar a laicidade do Estado, a ex-primeira-dama explicitamente atenta contra essa conquista civilizatória da sociedade brasileira, que remonta ao fim do século 19, e é uma das cláusulas pétreas da Constituição de 1988. Nada disso causa surpresa nem é novidade, dada a sistemática campanha do bolsonarismo para transformar os anseios cristãos, particularmente evangélicos, em arma política. Mas o apelo escatológico de Michelle Bolsonaro neste momento sugere que o bolsonarismo pretende caracterizar as agruras do ex-presidente Jair Bolsonaro na Justiça como parte da luta do bem – Bolsonaro, é claro – contra o mal, isto é, o Supremo Tribunal Federal e, particularmente, o ministro Alexandre de Moraes.

Ao trazer explicitamente a questão política e jurídica para o terreno do fundamentalismo religioso, o bolsonarismo não admite heresias: para ter a bênção de Bolsonaro, é preciso demonstrar fé inabalável em sua doutrina e em seu evangelho. Quando diz e repete que ganhou a eleição de 2022, Bolsonaro não precisa apresentar provas: por sair da boca de um sujeito que se julga escolhido por Deus, sua palavra basta.

“Aprouve ao Senhor nos colocar à frente desta nação. Aprouve a Deus nos colocar na Presidência da República”, disse Michelle na manifestação. Portanto, conforme essa exegese, se Deus pôs, só Deus poderia tirar. Não à toa, uma pesquisa da USP com participantes da manifestação bolsonarista mostrou que, para nada menos que 88% dos entrevistados, Jair Bolsonaro venceu a eleição de 2022 e só não foi empossado porque uma fraude o impediu. Sem qualquer respaldo em fatos concretos, tal conclusão só pode ser resultado de fé absoluta, a mesma que move os 94% dos presentes que, conforme a mesma pesquisa, disseram acreditar que o Brasil vive sob uma “ditadura” em razão do que qualificam como “excessos e perseguições” da Justiça. O fato de que participavam de uma manifestação política de oposição ao atual governo sem serem incomodados pelas forças do Estado, algo que por si só desmente a conclusão de que vivemos sob uma “ditadura”, não parece ter sido suficiente para importar alguma dúvida – prevaleceu a certeza mística produzida pelo bolsonarismo radical.

Diante disso, a aposta de Michelle numa abordagem sobrenatural e escatológica, numa ideia de que estamos testemunhando a luta final do “bem” contra o “mal”, como se a política fosse uma guerra santa de aniquilação, revela-se muito eficaz, sobretudo diante do iminente encontro de Bolsonaro com seu inexorável destino jurídico-penal. Nada, pois, é fortuito.

O fanatismo religioso é, por óbvio, a negação da política. Para os fanáticos, não há adversários políticos a contestar, e sim inimigos demoníacos a eliminar. Não existem dúvidas, apenas certezas, estabelecidas por Deus por intermédio de seus profetas iluminados. O apelo ao mistério é a repulsa aos fatos, sobre os quais é preciso haver consenso mínimo para estabelecer qualquer forma de diálogo. A prevalecer o místico – instrumentalizado por lideranças políticas ou partidos de quaisquer inclinações ideológicas –, tem-se o fim da concertação civilizada entre os interesses em disputa numa sociedade plural e democrática. Certamente é isso o que pretendem os fanáticos bolsonaristas, e é contra isso que devem lutar os que prezam a democracia e a liberdade.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

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